04 Mai 2024
Em seu novo livro, “Gesù in cinque sensi” [Jesus em cinco sentidos], publicado pela editora Marsilio, o Pe. Spadaro propõe uma série de comentários sobre os Evangelhos que se inserem em um novo trabalho mais amplo, que explica o compromisso do jesuíta e a proximidade à mensagem do Papa Francisco sobre a figura do filho de Deus.
O comentário é de Riccardo Cristiano, publicado em Formiche, 03-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A introdução começa assim: “Cristo é um ‘personagem em busca de autor’. Jesus é ‘um, nenhum, cem mil’, muito mais do que Vitangelo Moscarda. E, com ele, entende-se melhor por que, na realidade, o protagonista de cada história pode realmente parar de repente, romper a ‘quarta parede’, virar-se para nós e nos perguntar: ‘E vocês, quem dizem que eu sou?’”.
Teólogo presbiteriano, Joseph Butler também é lembrado por ter dito que “tudo é o que é, e não outra coisa”. Encontrei-me por acaso diante dessa sua frase justamente poucos minutos antes de abrir o livro “Gesù in cinque sensi”, o novo volume de Antonio Spadaro (Ed. Marsilio), que eu li sentindo o nexo evidente com o seu recente “Dialoghi sulla fede” [Diálogos sobre a fé], proposto em forma de entrevista de suas conversas com Martin Scorsese, e com o menos recente “Una trama divina”, que, assim como a nova obra, propõe uma série de “comentários” sobre os Evangelhos.
É disso que se trata esse livro? Certamente. Mas esses comentários se inserem em um trabalho mais amplo, como se fosse um entalhe, parece-me, que explica o compromisso do jesuíta, do homem, e talvez do atual subsecretário do Dicastério para a Cultura e a Educação.
A esse respeito, não posso deixar de partir da notícia, amplamente retomada pelos jornais, da reabilitação, ocorrida na Bienal de Veneza, da Ir. Corita Kent, que, pela potência pop de suas obras, foi definida como blasfema e forçada a abandonar o hábito antes de morrer. Uma das inspiradoras de Andy Warhol, Corita Kent figurava entre os artistas hospedados no pavilhão vaticano na Bienal de Veneza, visitado pelo papa, que disse justamente ali que “os artistas são chamados a ir além. Penso em Frida Kahlo, Corita Kent ou Louise Bourgeois e muitas outras. Espero de todo o coração que a arte contemporânea possa abrir o nosso olhar, ajudando-nos a valorizar adequadamente a contribuição das mulheres, como coprotagonistas da aventura humana”.
Um dos primeiros a enfatizar essa reabilitação foi o Pe. Spadaro, que não é um novato na recuperação de autores outrora considerados blasfemos, como o superlativo Pier Vittorio Tondelli, ao qual dedicou anos de estudo. Parece-me evidente, portanto, que seu livro é uma coisa, e não outra: é uma tentativa de contribuir para que o nosso olhar saiba ir além, além daquela imagem um tanto estereotipada que reduz Jesus, não oferecendo “um relato de carne e osso” sobre ele.
É isso que Francisco pede aos artistas? Eu acho que sim. Outro relato, escrito, fílmico, em poesia, mas que, de todos os modos, vá além, saiba tocar a carne e a mente das pessoas de hoje. Na introdução a seu novo volume, Spadaro recorda que o papa, no prefácio de sua primeira série de comentários evangélicos, definira Jesus como um “inadaptado”, como alguém que não se adapta. Ele joga pelos ares as mesas dos mercadores do Templo, se detém para conversar com uma mulher perto de um poço, e ela, além disso, é uma samaritana, o que na época significava herege.
Não, ele não se adaptava. Portanto, podemos intuir o que é este livro: é uma peça embutida no grande afresco que, a meu ver, parte da mais simples das constatações: Jesus vai, nunca fica parado, caminha sempre no Evangelho, encontra os pecadores de todos os tipos, não passa o tempo em seu “espaço”, ou seja, apenas com os seus. Estamos na presença, eu diria, de um homem em saída.
Em seu prefácio, Liliana Cavani define o livro como “um filme escrito”. O cinema da palavra não funciona, pois justamente as imagens podem “tornar-se para quem lê um estímulo para ‘ver’, para construir as imagens com a imaginação e seguindo as sugestões do autor, agindo de acordo com a própria atitude e o próprio caráter”.
Spadaro escreve pelas imagens narradas, reconstrói as cenas evangélicas descrevendo o ambiente e os movimentos. E Cavani convence ao dizer que “é bom ler o texto de Spadaro justamente porque ele estimula a pensar sobre a Fé. Ela é um caminho que envolve a investigação do ser que somos e do Universo em que vivemos. Mas a fé não é uma investigação científica. É uma investigação em um território que pode ter fronteiras muito distantes para alcançar, mas também – pode acontecer – pode estar perto, tão perto a ponto de estar em cima de nós”.
O que Spadaro deixa claro de imediato é que tudo se baseia na liberdade: “No Evangelho, está em jogo a liberdade. Quem escreveu os quatro Evangelhos teve de lidar com a liberdade de Jesus. O Filho de Deus, o Mestre, não é um replicante divino que cai de paraquedas na terra para ser o porta-voz do Eterno aos ouvidos humanos. Ele é Deus e homem. E sua história é uma trama que não teria sentido sem a liberdade. Não basta a carne para ser humano. É preciso a liberdade”.
Esse é o motivo pelo qual o autor sobe o tom apenas ao falar (na narração com Martin Scorsese) da calvinista Marilynne Robinson: ele obviamente reconhece sua grandeza artística, mas “quem crê no fato de que você está predestinado à salvação ou à condenação não pode escrever histórias interessantes, porque falta uma peça fundamental para que uma história funcione: a liberdade”.
Uma história já escrita pode nos interessar? O que nos prende é que aconteça algo ao sujeito “que ponha em movimento sua liberdade, sem acorrentá-lo a um destino já escrito em algum lugar: quer seja a mente do Pai Eterno ou de um escritor, isso pouco importa”.
Portanto, podemos mudar. Precisamente porque somos livres, podemos tomar um rumo diferente. É a graça de Deus? Evidentemente “basta um toque dele, seja uma carícia ou uma bofetada, para mudar de vida, não apenas de ideia”.
Essa liberdade inclui obviamente também a de não crer, e isso por si só tira do discurso aquele sabor impositivo, transformando-o em uma oferta, que especialmente hoje, neste tempo de crises entrelaçadas, oferece a todos a possibilidade de se sentirem acolhidos e desafiados. Porque adaptar-se, especialmente nestes tempos de fratura, é fácil, mas dramático.
Então, o desafio torna-se maior, mais forte e mais fascinante, porque não nos deixa adormecer, confortando-nos na certeza de que o pior virá depois, não hoje, não aqui e, em todo o caso, depois de nós.
A chave do “inadaptado” pode nos deixar indiferentes? Talvez me pareça um despertar! Mas, então, deve ser entendida, como diz o subtítulo, como um desafio que não é teórico, mas “de carne e osso”. Eis, então, que o projeto não é um “projeto cultural”, mas sim um choque elétrico, que tem fases, momentos, etapas que se sucedem não para nos inserir em um programa pré-definido, mas para despertar a audição, a visão, o tato, enfim voltado a nos despertar de verdade.
Essa perspectiva, essa trama divina me fez lembrar de Pier Paolo Pasolini, para quem Jesus, ao dizer “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, não podia convidar, como muitos acreditam, a sermos sempre obsequiosos tanto com um quanto com o outro, quase como um arlequim servo de dois senhores: para ele aquele “e” é de oposição em relação a todo poder terreno. Ou você está com Deus ou está com o “mundanismo”, e fazer a primeira escolha não significa estar contra alguém “preconceituosamente”, mas, simplesmente, não se adaptar.
Um pouco alarmado com o que está acontecendo conosco, eu me pergunto: não é disso que precisaríamos hoje? Mas do que estamos falando, de ideologias?
Dos muitos relatos relativos a Jesus, aqueles aos quais eu mais recorro são os relacionados com suas conversas com os doutores da Lei. O exemplo mais eficaz para dizer o que eu pretendo expressar encontra-se em uma destas conversas.
“Lucas enquadra um ‘doutor da Lei’, um homem culto, especialista na lei dada por Deus. Ele se levanta. Quer fazer uma pergunta a Jesus. Seu objetivo é ‘pô-lo à prova’. Fixemos seu olhar investigativo, superior. Ele pronuncia estas palavras: ‘Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?’ A vida eterna... Sim, custamos a ‘salvar’ a nossa vida dia após dia. Como faço para dar sentido aos meus dias? Lembremos que o doutor quer pôr Jesus à prova. Está realmente interessado em sua resposta ou é apenas uma forma de entender o que ele pensa e se o que ele pensa é ortodoxo ou não? Jesus responde fazendo outra pergunta: ‘O que está escrito nas leis? Como você lê?’. O Mestre não é aquele que responde com as respostas exatas, mas sim aquele que escava no coração e na inteligência do interlocutor para verificar suas perguntas e para guiá-lo para as respostas que busca. Um doutor da lei é remetido de volta à própria Lei para encontrar as respostas que procura. Eis a resposta do doutor: ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo’. Jesus lhe responde: ‘Você respondeu bem. Faça isso e viverá’.”
Fiz essa longa citação para dar a entender o estilo narrativo e também para dizer que somente neste ponto chega a famosa pergunta “quem é o meu próximo?” É uma pergunta que muitos ainda hoje não sabem responder, embora talvez se digam cristãos. Mas alguns podem ficar surpresos que aqui chega a parábola do bom samaritano, que vê pela estra um homem espancado e roubado pelos ladrões e, embora seja um samaritano, com quem os judeus tinham péssimas relações, ao contrário do que foi feito anteriormente por um sacerdote e por um levita, detém-se, cuida dele e o leva a uma hospedaria, onde pede para atendê-lo pagando adiantado: se houvesse uma diferença, ele pagaria o restante em seu retorno.
“Tomados pelo relato, esquecemos que a resposta de Jesus é ao doutor da Lei. Mais uma vez, Jesus lhe faz uma pergunta: ‘Qual destes três você acha que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos bandidos?’ O outro responde: ‘Quem teve compaixão dele’. Jesus lhe diz: ‘Vá e faça o mesmo também’. É Jesus quem põe à prova o doutor, no fim. Não sua ortodoxia, mas sua vida e sua capacidade de lhe dar um sentido válido e eterno”.
É assim que eu entendo a vida eterna. E o fato de não se adaptar também fica mais claro.
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Nos Evangelhos, está em jogo a liberdade. O novo livro de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU