06 Mai 2024
Ele concelebrou o funeral de Michela Murgia e conversou sobre Jesus com o diretor Martin Scorsese: “Nada do que é humano me assusta”, diz o Pe. Antonio Spadaro. Nem o “gênero”, nem sua “família queer”.
A reportagem é de Nicola Mirenzi, publicada no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 03-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em certo ponto, sob a luz de uma janela que se assoma para a colunata da Praça São Pedro, o subsecretário do Dicastério para a Cultura da Igreja de Francisco, Antonio Spadaro, conta ao Venerdì o desejo sentido em agosto passado de concelebrar o funeral da escritora Michela Murgia.
“Se este termo ambíguo não se prestasse a equívocos, poderia dizer que a minha família, assim como a de Michela, também é uma família queer. Eu vivo na comunidade da Civiltà Cattolica. Das refeições à oração, minha vida é compartilhada. Desenvolve-se junto com a de outras pessoas. Está aberta à multiplicidade das relações, à coparticipação. Enquanto a família burguesa mononuclear, composta exclusivamente por mãe, pai e filhos, era o que Michela Murgia queria superar. Mas eu também convido a sair da família fechada em uma bolha, rígida. Eu sou siciliano. Michela Murgia era da Sardenha. Ambos experimentamos a família ampliada, aquela em que se vivia com os tios, os avós, os primos, sem que os papéis estivessem estabelecidos desde o início. Às vezes, o ponto de referência era um pai. Outras vezes, era uma avó. Acho que é essa a matriz da família queer, da qual Michela Murgia falava, ao mesmo tempo antiga e moderníssima.”
Aos 57 anos de idade, ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica, autor da primeira e mais disruptiva entrevista com o Papa Francisco, o Pe. Spadaro é um jesuíta fiel ao ensinamento de Santo Inácio de Loyola, segundo o qual é preciso buscar a Deus onde Ele se encontra, não onde se acredita que esteja. Spadaro identificou Seus traços em lugares onde outros veem o escândalo, a provocação ou o efêmero, por exemplo na literatura do libertino homossexual Pier Vittorio Tondelli, na iconografia de Andy Warhol, nas canções cantadas com os dentes fechados de Bruce Springsteen em “Nebraska”, nos romances de Flanery O’Connor, cuja indicação da “graça no território do diabo” é, para ele, um manifesto.
Com o diretor Martin Scorsese, autor, entre outros, de “Taxi Drive”, “Os bons companheiros” e, por último, “Assassinos da lua das flores”, Spadaro escreveu recentemente um livro-entrevista, “Dialoghi sulla fede” [Diálogos sobre a fé] (Ed. La Nave di Teseo), que se conclui com um roteiro para um possível filme sobre Jesus. “Um texto pelo qual tenho um carinho particular”, diz ele, acolhendo-nos na sede do seu ministério.
Mas o que Deus tem a ver com o cinema de Scorsese?
Martin me contou que, quando era pequeno, ao sair da missa, perguntava-se como é que as pessoas podiam continuar vivendo normalmente depois de terem comido e bebido o corpo e o sangue de Cristo. É a partir daí que nascem todos os seus filmes, a partir da consciência de que a vida pode ser posta de cabeça para baixo, revolucionada pela Graça. Esse é o motor da ação. A necessidade de acompanhá-la com uma câmera cinematográfica.
E, por sua vez, qual foi a sua revolução?
Eu era estudante de filosofia na Universidade de Messina e estava passando por um período de crise pessoal. Eu fazia política nos grupos católicos, frequentava a livraria Obelix, dirigida por amigos militantes da Democracia Proletária. Sentia o desejo de algo mais intenso e profundo de tudo o que havia. Um dia, acompanhei minha mãe a uma aula de teologia. Na sala de espera, encontrei um panfleto que promovia um curso de exercícios espirituais no interior da Toscana. Eu fui. E imediatamente senti uma correspondência exata entre o desejo que eu sentia e a experiência que eu acabara de viver. Entendi naquele momento que o meu caminho era o sacerdócio.
E como sua família recebeu a notícia?
No início, eu não disse nada, mas, um dia, minha mãe leu no diário que eu tinha começado esse percurso e correu para protestar com o padre, furiosa. Nem os jesuítas encorajavam meu entusiasmo, pelo contrário, tendiam a esfriá-lo. Concordaram que o melhor era que eu terminasse a faculdade e depois eu escolheria. Acreditavam que o tempo faria com que a vontade passasse. Ao invés disso, eu acelerei os estudos enlouquecidamente e fiz as provas do último ano em uma única sessão. Naquele ponto, ninguém conseguiu me impedir.
Você conhecia Bergoglio antes de ele se tornar papa?
Não pessoalmente. Eu estava na praça quando seu nome foi anunciado. Pensei que era outro cardeal homônimo no conclave que eu talvez tivesse ignorado. Parecia-me impossível que um jesuíta se tornasse papa.
Quando o conheceu pessoalmente?
Como diretor da revista, eu acompanhava seus primeiros passos como pontífice. Eu costumava escutar seus discursos e ouvi-los multiplicados. Ele pronunciava uma palavra, e eu entendia outras três ou quatro. Voltava à tona toda a minha formação jesuíta. Publiquei um livro sobre a passagem da Igreja de Bento XVI a Francisco e, um dia, recebi um telefonema de um número anônimo. Atendi. Do outro lado, ouvi uma voz dizendo: “Sou eu, o papa”.
O que ele lhe disse?
Ele me convidou para uma audiência, e, naquela ocasião, pela primeira vez, pedi-lhe uma entrevista. Ele me respondeu que não, que ele não dava entrevista. Mas, ao mesmo tempo, vi em seu rosto que ele tinha começado a pensar nisso. No fim da audiência, pediu-me que eu lhe mandasse as perguntas por escrito e que ele refletiria sobre isso. Passaram-se algumas semanas e, na volta de uma viagem ao Brasil, ele me chamou de novo. “Li as perguntas. Venha para a entrevista.”
Aonde você foi?
A Santa Marta. Passamos três tardes consecutivas juntos. Foi avassalador. Parecia que eu estava diante de um vulcão em erupção. Ele dizia coisas impactantes, desestabilizadoras. Eu lhe dizia: “Santidade, isto eu não preciso escrever, certo?”. Eu imaginava a repercussão que aquelas palavras teriam no mundo e tentava suavizar o tom, exercer uma forma de prudência. Ele, ao invés disso, respondia serenamente: “Não, não, escreva também isso que eu lhe disse”.
Quando Bergoglio aconselhou que os ucranianos levantem a “bandeira branca”, não teria sido bom que ele tivesse sido mais supervisionado?
A imagem não é de Francisco, mas do jornalista que fez a pergunta. “Quem ama, defende.” Essa é uma frase do papa que indica claramente a plena consciência que ele tem da heroica resistência ucraniana. Tratava-se de um convite dele à negociação, a renunciar à guerra, não à rendição.
Muitas pessoas continuam se perguntando se Francisco é de direita ou de esquerda. Você entendeu o que ele é?
Não é nem uma coisa nem outra. Francisco é um homem convencido de que a vida é feita de grandes contrastes. A pulsão à conservação e a pulsão ao progresso convivem, mesmo que em oposição. Quando a existência se achata em uma das polaridades, a tensão vital se apaga. Vi o papa perturbado em uma única ocasião: quando as coisas estavam ocorrendo de uma forma suave demais.
Você também acredita, assim como Francisco, que Cristo foi para seus contemporâneos um “inadaptado”?
É claro que sim.
Então, o anti-Cristo é aquele que se adapta?
É quem se conforma. Quem aceita o poder da realidade sem se interrogar. Não é a tranquilidade, mas sim a inquietação que dá a paz.
O que você pensa quando vê Salvini mostrando o terço, Giuseppe Conte exibindo na TV a imagem do Padre Pio e Giorgia Meloni dizendo que “é preciso defender Deus”?
Que há uma distinção. Uma coisa é um político que crê e deixa que a fé molde sua própria ação política. Outra coisa bem diferente é explorar a fé para fins eleitorais.
Você tem medo do “gênero”?
Nada do que é humano me assusta. Acho que os estudos de gênero podem se tornar perigosos, como afirma o último documento do Dicastério para a Doutrina da Fé, quando são transformados em uma ideologia, em uma abstração dissociada da realidade das pessoas como elas verdadeiramente são.
Mas como você podia apreciar Michela Murgia, que foi uma porta-bandeira dessas batalhas?
Não é preciso estar de acordo com as ideias de uma pessoa para reconhecer seu valor.
E o que você reconhecia nela?
No fundo, uma qualidade semelhante àquela que eu aprecio no Papa Francisco.
Qual?
A capacidade de sacudir as águas e de imaginar a vida para além do ordinário.
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Confissões de um jesuíta inquieto. Entrevista com Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU