26 Abril 2024
Reunidos em Brasília para a 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), mais de 200 povos indígenas de todo o Brasil estão mobilizados para pedir rapidez nas demarcações de terras indígenas e a retirada de tramitação no Congresso Nacional de propostas que ameaçam direitos constitucionais dos povos originários. No primeiro dia do ATL, nesta segunda-feira (22), a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e sete organizações de base divulgaram uma carta que será encaminhada aos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) com as reivindicações.
A reportagem é de Nicoly Ambrosio, publicada por Amazônia Real, 23-04-2024.
“Nosso tempo é agora, urgente e inadiável. Enquanto se discutem marcos temporais e se concede mais tempo aos políticos, nossas terras e territórios continuam sob ameaça”, diz trecho do documento.
A carta “Vinte anos de Acampamento Terra Livre e urgência de ação” foi lida por Juliana Kerexu, coordenadora executiva da Apib, e faz uma cobrança direta ao presidente Lula (PT). “Presidente Lula, não queremos viver em fazendas! A proposta feita de comprar terras para assentar nossos povos afronta o direito originário de ocupação tradicional assegurado pela Constituição Federal de 1988. Já estamos no segundo ano de governo, e as suas promessas sobre demarcações continuam pendentes”, diz a carta.
A maior mobilização dos indígenas do país segue até sexta-feira (26) e deve reunir mais de 8 mil representantes dos povos originários no acampamento montado no gramado do Eixo Cultural Ibero-Americano, antiga Funarte.
Coordenado pela Apib, o ATL deste ano é norteado pelo tema “Nosso Marco é Ancestral: Sempre Estivemos Aqui!”, em alusão à luta contra o Marco Temporal, tese segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação de terras que estavam ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988).
A tese foi aprovada pelo Congresso Nacional e vetada por Lula. Os congressistas, no entanto, derrubaram o veto do presidente, tornando-se a Lei 14.791, de 29 de dezembro de 2023. Há uma expectativa de que o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirme a inconstitucionalidade da medida.
Nesta segunda, o ministro Gilmar Mendes, do STF, suspendeu todas as ações judiciais que tratam do Marco Temporal até que o tribunal se manifeste definitivamente sobre o tema. Segundo ele, a medida visa evitar o surgimento de decisões judiciais que possam prejudicar as partes envolvidas (comunidades indígenas, entes federativos ou particulares). Na mesma decisão, o ministro começou um processo de mediação e conciliação no STF, com o objetivo de buscar uma solução para o reconhecimento e demarcação de terras indígenas.
De acordo com a Apib, pelo menos nove lideranças foram assassinadas e mais de 23 conflitos foram registrados em territórios indígenas desde a aprovação da lei do Marco Temporal no Congresso.
Apesar de reconhecerem os avanços da retomada das demarcações, os movimentos indígenas cobram mais agilidade. Lula assinou dez homologações desde o ano passado. A expectativa era que o governo tivesse concluído 14. A Funai estima que há pelo menos 26 terras indígenas aguardando portaria declaratória. A informação foi dada por Janete Carvalho, diretora de proteção territorial da Funai, em live realizada na semana passada, coordenada pela presidenta do órgão, Joenia Wapichana. Além destas, há outras outros territórios em diferentes estágios de demarcação, sem previsão de avanços no processo de demarcação.
A liderança Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, aponta para a interferência da bancada ruralista nas decisões do governo federal. Ele observa ainda a existência do ódio bolsonarista contra as pautas indígenas.
“Estamos vendo o crescimento da interferência política de parlamentares conservadores, da bancada do agronegócio, de inimigos dos povos indígenas que estão interferindo nessa política de demarcação de terra junto ao governo. Eles estão frustrando toda a nossa expectativa”, avalia.
No entanto, dentro do proprio governo Lula a agenda indígena também encontra dificuldades de avanço, conforme apurou a Amazônia Real, em uma disputa interna dentro do Palácio do Planalto, com a demarcação de terras indígenas de um lado, e a defesa da mineração e do agronegócio de outro lado.
Na quinta-feira (18), véspera do Dia dos Povos Indígenas, o recuo de Lula na decisão de homologar seis terras indígenas e assinar apenas duas gerou frustração no movimento, que protestou em Manaus. O presidente assinou a homologação das terras indígenas Aldeia Velha, do povo Pataxó, em Porto Seguro (BA), e Cacique Fontoura, do povo Iny Karajá, em Lagoa da Confusão (TO), Luciara (MT) e São Félix do Araguaia (MT), que somam 34.070 hectares de área.
Lula justificou a decisão alegando que algumas das terras que faltam ser homologadas estão ocupadas por fazendeiros ou por camponeses. “Não podemos chegar sem dar uma alternativa a essas pessoas”, disse o presidente, que citou o pedido de governadores para solucionar a questão de forma negociada.
Segundo Kleber Karipuna, o movimento indígena continua acreditando no governo Lula e entende “o cenário político que está inserido, tendo que trabalhar com as oposições”.
No entanto, os indígenas esperam que o governo se posicione contra a tese do Marco Temporal. “A gente quer que o governo compre essa briga para avançar nessas pautas de demarcação. Vamos continuar resistindo e lutando”.
As terras indígenas que não têm nenhum impedimento jurídico ou administrativo para serem homologadas e ainda aguardam a assinatura do governo federal são: Potiguara de Monte-Mor, em Rio Tinto (PB); Xukuru-Kariri, em Palmeira dos Índios (AL); Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC); e Toldo Imbu, em Abelardo Luz (SC).
Outra questão diz respeito ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 3), uma medida que pode impactar negativamente os territórios indígenas. Lançado em agosto de 2023, o PAC vai financiar grandes empreendimentos.
“Não existe ainda um diálogo direto com o movimento sobre como esses empreendimentos estão sendo planejados e pensados. A gente vê com uma certa preocupação essas movimentações do governo brasileiro, que é o governo que a gente acredita e quer ter como aliado, mas que nos preocupa”, afirma Kleber Karipuna.
O financiamento do PAC 3 prevê a construção de hidrelétricas e estradas, como a ferrovia EF-170, a Ferrogrão, que foi condenada à extinção imediata em um tribunal popular e simbólico realizado no dia 4 de março, em Santarém (PA).
Os trilhos da Ferrogrão vão passar no entorno de terras indígenas e áreas preservadas. A obra enfrenta oposição das comunidades tradicionais, que alegam não terem sido consultadas a respeito dos impactos socioambientais da construção. Setores do governo Lula defendem a Ferrogrão e recursos para seus estudos foram assegurados pelo novo PAC.
“É um projeto único e exclusivamente para atender o setor do agronegócio e sem uma preocupação da importância".
Nas últimas duas edições do ATL, Lula foi convidado e compareceu ao evento. Em 2022, ainda como pré-candidato à Presidência da República e, no ano passado, já exercendo o cargo. Até o momento, a presença do petista na ATL 2024 não foi confirmada.
No primeiro dia do ATL, o ministro Wellington Dias, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, recebeu os representantes da Apib para falar sobre temas relacionados ao Cadastro Único, segurança alimentar, saúde e acesso à água.
“Acertamos, a partir de uma integração com outros ministérios, a criação de um grupo de trabalho para que as lideranças possam levar aos seus territórios e conhecer mais sobre o Cadastro Único e sobre os programas que o presidente Lula coloca para beneficiar os povos indígenas”, disse o ministro.
A Apib também anunciou uma reunião com o Ministério do Meio Ambiente.
Nesta terça-feira (23), os indígenas vão marchar em direção ao Congresso Nacional. Já na quinta-feira (25), a marcha será rumo ao Palácio do Planalto. A expectativa, segundo Kleber Karipuna, é que Lula receba os indígenas na sede do governo, mas ainda não há confirmação oficial sobre o encontro.
De acordo com o coordenador, na sexta-feira (26) as lideranças esperam conseguir uma reunião com o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para discutir sobre a cota de candidaturas indígenas nas eleições.
Durante toda a semana serão realizados debates, apresentação de relatórios, marchas, atividades políticas no Congresso Nacional, apresentações culturais e exposição de artesanato e arte indígena de todos os biomas brasileiros.
O acampamento énorganizado pela Apib e suas sete organizações regionais de base, sendo elas: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (ArpinSudeste), Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), Aty Guasu, Conselho Terena, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coaib) e Comissão Guarani Yvyrupa.
Durante roda de conversa sobre o atual cenário dos territórios indígenas e a retirada de direitos na Amazônia, lideranças indígenas denunciaram nesta segunda o desmatamento, a crise climática, a exploração de minérios e o garimpo ilegal que devastam os seus territórios. O evento, na tenda da Coiab, contou com delegações dos nove estados amazônicos.
Edina Shanenawa, primeira cacica do povo Shanenawa e vice-coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), expôs a situação dos territórios indígenas do Acre, severamente atingidos pela crise climática. Ela falou sobre o cenário na Terra Indígena Katukina-Kaxinawá, no município de Feijó, onde nasceu.
“No meu território não tem a questão do garimpo, mas tem o desmatamento, tem as secas, têm o veneno do agrotóxico que está chegando com muita força, trazendo doenças que a gente nem sabe curar”, alerta.
Na Terra Indígena Mamoadate, localizada entre os municípios de Assis Brasil e Sena Madureira, também no Acre, e habitada pelos indígenas Manchineri, Mashko Isolados do Rio Iaco e Yaminawá, o principal problema é o alto índice de contaminação por mercúrio.
“A matança dos peixes continua acontecendo, é um problema que está ocorrendo desde que vim pela segunda vez ao ATL e que temos estudado”, diz o cacique Alberico Manchineri.
“Queremos o avanço de políticas públicas para garantir a presença do estado naquela região do Pará, como é o caso das desintrusão da Terra Indígena Apyterewa, que era uma das mais desmatadas em uma linha do tempo de 10 anos, e a gente conseguiu que o governo tivesse uma ação mais efetiva na retirada de todos os invasores”, afirma Kleber Karipuna.
Mulheres indígenas dos seis biomas brasileiros firmaram o compromisso de demarcar ‘com seus corpos’ a plenária que comemora os 20 anos do Acampamento Terra Livre. Com seus filhos e netos na tipoia, elas declaram que também são parte da mobilização histórica.
Mulheres Biomas, elas começaram a participar de plenárias oficiais somente a partir de 2018 e este ano debaterão a construção e articulação de agendas para a COP30, que acontecerá em Belém, no Pará, em 2025. Essa é a principal pauta da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) para o ATL 2024. As mulheres da Anmiga ocupam a plenária do acampamento nesta terça-feira (23).
“Lutamos pelo bem-viver, pelos nossos povos, por nossos filhos, pela biodiversidade, pela floresta em pé. Nós mulheres indígenas somos corpos-território em movimento. Somos o ‘reflorestarmentes’, construindo possibilidades de enfrentamento às mudanças climáticas, pela vida no planeta”, enfatiza a diretora executiva da Anmiga, Jozileia Kaingang, do bioma Pampa, do Sul do Brasil.
Durante toda a programação do ATL, a Anmiga irá promover atividades voltadas às guerreiras da ancestralidade na tenda da organização, localizada no gramado do Eixo Cultural Ibero-Americano.
As mulheres indígenas irão discutir as eleições de 2024, violência política de gênero, justiça climática, bioeconomia indígena, entre outras pautas que dialogam com a defesa e proteção dos seus corpos-territórios.
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“Nosso tempo é agora”, dizem indígenas em carta aos três poderes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU