Há uma transformação de modelo eclesiológico a partir das práticas digitais. A teologia não pode menosprezar os efeitos que a transversalidade das redes digitais tem sobre o tecido eclesial, particularmente em uma Igreja local.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, professor da PUC Minas.
Nesta quinta-feira, 14, a Santa Sé divulgou um documento da Secretaria Geral do Sínodo que apresenta o esquema de trabalho para os 10 grupos de estudo desejados pelo Papa Francisco para aprofundar questões relevantes sobre a vida e a missão da Igreja em uma perspectiva sinodal.
Entre elas, destaca-se “a missão no ambiente digital”. Entretanto, ao se falar de “missionários no ambiente digital”, a pergunta que logo vem à mente é: missionários em nome de quem e com qual missão? Vejamos alguns detalhes do documento a fim de desdobrar essa questão.
Segundo a Secretaria do Sínodo, as 10 temáticas a serem trabalhadas pelos grupos de estudo alcançaram um consenso consistente por parte dos membros sinodais na última assembleia geral de outubro de 2023, quase sempre superior aos 90%. Principalmente porque “incidem na fisionomia e no estilo de uma Igreja sinodal”. O foco central desses grupos de estudo será justamente responder à pergunta que estará no centro da segunda sessão do Sínodo em outubro deste ano: “Como ser uma Igreja sinodal em missão?”.
Em relação à missão no ambiente digital, o documento da Secretaria do Sínodo se baseia principalmente no relatório de síntese da assembleia geral de 2023 e afirma que tal ambiente “envolve todos os aspectos da vida humana e deve, portanto, ser reconhecido como uma cultura e não só como uma área de atividade”. Entretanto, assume o texto, “a Igreja custa a reconhecer a ação no ambiente digital como uma dimensão crucial de seu testemunho na cultura contemporânea”.
De modo central, o documento da Secretaria do Sínodo convida o grupo de estudo a aprofundar as implicações em nível teológico, espiritual, canônico, estrutural, organizacional e institucional da missão digital. Por isso, levanta algumas questões específicas, que aqui desdobraremos com novas perguntas e reflexões.
A primeira questão aborda “o que uma Igreja sinodal missionária pode aprender a partir de uma maior imersão no ambiente digital”. A primeira aprendizagem parece ser a de ser uma Igreja em rede, uma experiência fundamental para a prática da sinodalidade. Em rede, o poder de ação é distribuído entre todos os pontos, e não centralizado em um só. Todos inter-agem.
E a rede nunca é algo pronto e já dado, mas envolve um trabalho de construção contínuo (net-work). É autopoiética, não dependendo exclusivamente de nenhuma de suas partes, mas, por sua vez, são as inter-relações entre suas partes que moldam a forma da rede. Além disso, especificamente as redes digitais são facilitadoras ou realçadoras de redes humanas (cf. José van Djick): não há dicotomia nem separação entre essas experiências de vida.
Por isso, o fenômeno digital revela um desafio positivo à Igreja tanto no sentido de aprender a repensar suas próprias linguagens para facilitar o diálogo com a cultura contemporânea quanto no sentido de justamente aprender a dialogar com públicos diversos, com muitos dos quais a Igreja talvez não esteja acostumada a interagir.
A segunda pergunta é “com que critérios podemos [...] identificar quais poderiam ser os benefícios duradouros para a missão da Igreja no ambiente digital?”. Basicamente, cremos que devem ser conceitos próprios da experiência eclesial, à luz da fé cristã e dos Evangelhos, e certamente não derivados do campo empresarial, político ou mercadológico. Se estamos falando de “missão da Igreja”, não estamos falando de nada que se compare ao que é feito por outros indivíduos, grupos ou instituições em geral nos ambientes digitais.
Alcance, engajamento, cliques, visualizações etc. podem ser critérios muito importantes para qualquer outra instituição social, mas dizem muito pouco à Igreja, chamada a “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii gaudium, n. 176). E o Reino de Deus não é mensurável, nem previsível, nem quantificável, nem controlável. É como uma semente de mostarda e o fermento escondido na massa (Lc 13,18-21), é “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17). Os critérios, portanto, precisam ser outros, novos e inovadores.
O documento pergunta ainda “como é possível integrar a missão digital de uma forma mais ordinária na vida da Igreja e nas estruturas eclesiais, aprofundando as implicações da nova fronteira missionária digital para a renovação das estruturas paroquiais e diocesanas existentes?”.
Na mesma linha, a preocupação é como adaptar a noção de “jurisdição” aos ambientes digitais, já que, como afirma o relatório de síntese do último Sínodo, “as iniciativas apostólicas online têm um alcance e um raio de ação que se estende para lá dos confins territoriais entendidos de forma tradicional” (17h). Por isso, o Sínodo questiona como tais iniciativas podem ser regulamentadas e a qual autoridade eclesiástica competiria sua vigilância.
E essa é uma questão fundamental para a eclesiologia contemporânea. Há uma transformação de modelo eclesiológico a partir das práticas digitais. A teologia não pode menosprezar os efeitos que a transversalidade das redes digitais tem sobre o tecido eclesial, particularmente em uma Igreja local. Tais práticas digitais podem efetivamente subverter e até corromper processos basilares da experiência do catolicismo, como a construção da identidade católica, a configuração da comunidade eclesial e a orientação da autoridade eclesiástica.
Do ponto de vista da jurisdição eclesiástica, é preciso investir, primeiro, na formação teológica das pessoas e comunidades locais, para que saibam lidar com elementos exógenos que possam atrapalhar e até prejudicar a vida, a identidade e as relações internas da comunidade. Aqui, a personalização da formação é crucial, para que a própria pessoa tenha os elementos teológicos suficientes para discernir aquilo que circula em rede.
Também é preciso reforçar muito mais os laços de colegialidade, para que o trabalho de um bispo e de Igreja local não seja afetado por “missionários digitais” ligados a outro bispo e a outra Igreja local. Todo missionário que deseja entrar em um território eclesiástico precisa da autorização do bispo ou do pároco local. Entretanto, hoje, as fronteiras digitais não têm controles nem alfândegas de nenhum tipo. Por isso, é preciso repensar os processos de diálogo e de ação entre bispos, para que casos extremos de “invasão religiosa” possam encontrar uma solução colegiada.
Tais medidas podem ser mais eficazes do ponto de vista de “missionários digitais” clérigos, mas, para indivíduos e grupos leigos, a situação é ainda mais complexa. Por isso, é necessário um amplo debate eclesial, para que essas questões sejam levantadas e refletidas sinodalmente, pois as soluções não são simples.
Aqui, é preciso reforçar muito mais – por meio de processos formativos e vivências espirituais – a identidade de cada pessoa e comunidade cristãs (paróquia, diocese etc.) à luz do Evangelho, para que elementos externos não descaracterizem uma determinada experiência comunitária de fé, no respeito a seu contexto sociocultural, a seu caminho histórico e à sua organização eclesial específica.
Surpreende, nesse sentido, que o documento da Secretaria do Sínodo reitere, retomando o relatório de síntese, que “os seminaristas, os jovens padres e os jovens consagrados e consagradas, que, muitas vezes, têm uma experiência direta profunda destas realidades [digitais], são os mais adequados para levar a cabo a missão da Igreja no ambiente digital” (n. 17d).
A ideia de fundo é de que os resultados são mais positivos quando jovens evangelizam jovens. Embora reconheça que o fenômeno diz respeito a toda a sociedade, a Secretaria do Sínodo afirma que a ação no mundo digital é marcada por uma atenção particular justamente ao mundo juvenil, porque “muitos jovens abandonaram os espaços físicos da Igreja, para os quais tentamos convidá-los, a favor dos espaços online”.
Mas aqui é preciso levantar algumas perguntas prévias: será que uma maior presença da Igreja nos ambientes digitais garantiria uma renovada presença de jovens na Igreja? Será que o desafio estaria apenas no ambiente digital ou também está nos próprios ambientes tradicionais e “físicos” da Igreja? Será que estes não deveriam também ser repensados à luz daqueles, isto é, dos novos processos de comunicação? De que adiantaria uma comunicação inovadora e contemporânea do ponto de vista das linguagens e dos processos digitais se depois a prática religiosa e a convivência comunitária na Igreja local são vivenciadas de um modo que não fazem mais sentido aos jovens de hoje, pela incoerência, pela superficialidade ou até pelo vazio de sentido em tais experiências?
Além disso, por que apenas os jovens “vocacionados” seriam os “mais adequados” para essa missão? Não há, aqui também, um risco de clericalização da missão? Ao menos do ponto de vista brasileiro, são justamente seminaristas, padres jovens e jovens consagrados/as que, em grande parte, em suas presenças nas redes digitais, frequentemente aderem a um tradicionalismo católico que não dialoga com a cultura contemporânea, nem mesmo com a Igreja contemporânea pós-Vaticano II e sob a liderança de Francisco.
Sob uma superfície de suposta “modernização midiática” do catolicismo, muitas vezes se encontra uma pré-modernidade teológico-eclesial, que tenta perenizar ou reconstruir digitalmente um “passado” perdido e idealizado do catolicismo (cf. Brenda Carranza), distanciando-se de um “presente” eclesial supostamente “progressista”, “esquerdista”, “marxista”, “comunista” e até “herético”. É esse tipo de missão digital que a Igreja realmente deseja promover?
Como afirmamos no livro “Influenciadores digitais católicos: efeitos e perspectivas”, certamente há casos de bons evangelizadores nas redes (e não necessariamente jovens), que dão a primazia ao Evangelho e são fiéis ao magistério da Igreja e do pontífice atual. Entretanto, muitos outros influenciadores pautam suas práticas digitais, não raramente, pela “propagação de informações e conteúdos superficiais, equivocados ou até mesmo falsos” sobre a fé cristã, chegando, no extremo, à prática da “intolerância e do ódio (intra)religioso, proferindo discursos agressivos e violentos contra pessoas ou grupos específicos, que podem levar a conflitos, hostilidades e divisões no interior das comunidades religiosas ou entre elas”. Por meio desse processo, “antes desconhecidos do ponto de vista sociorreligioso, convertem-se em verdadeiras autoridades religiosas midiáticas” (p. 22-23), sobrepondo-se, muitas vezes, às autoridades constituídas e instituídas pela Igreja.
Livro recentemente publicado (Foto: divulgação)
O livro aponta justamente para o impacto que a ação desses influenciadores tem sobre a instituição eclesiástica em suas estruturas, “sejam as arqui/dioceses ou outros espaços de comunhão e diálogo em escala nacional, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)”. Constata-se “uma divergência às vezes velada, outras vezes escancarada, em relação ao caminho eclesial e pastoral da Igreja contemporânea” ou, em outros casos, “há um ‘silêncio gritante’ em relação ao magistério de Francisco e da CNBB. Desse modo, as grandes questões eclesiais são simplesmente ignoradas, em favor de uma fé mais individualista e devocional, desconectada das problemáticas socioculturais e eclesiais contemporâneas” (p. 23).
Pelo contrário, a sinodalidade deve ter uma primazia também na missão digital. “Um evangelizador digital é chamado a escutar, dialogar e caminhar junto com os demais irmãos e irmãs de fé, construindo juntos espaços de iniciativa e de visibilidade para todos e todas, para superar o individualismo e o clericalismo, e mostrar a força da comunidade” (p. 405).
No caminho deste Sínodo, ainda há muitos passos a serem dados, e há muitas redes a serem (re)costuradas para que a missão certa seja feita no Nome certo.