06 Março 2024
Durante a sua estadia como correspondente em Israel, Antony Loewenstein (Melbourne, 1974), um jornalista de investigação australiano, interessou-se pela opaca indústria israelense de armas e segurança e como ela não teria se desenvolvido sem ter utilizado os territórios ocupados da Palestina como um macabro laboratório de testes. Fruto deste trabalho, escreveu o livro El laboratorio palestino, recém-publicado [em espanhol] pela editora Capitán Swing. Agora, em meio a uma guerra brutal em Gaza, suas revelações ganham maior relevância.
A entrevista é de Ricardo González, publicada por El Salto, 03-03-2024. A tradução é do Cepat.
Qual é a importância do setor de armamentos e segurança para Israel?
É muito importante. Israel é o décimo maior exportador de armas e, em 2022, o seu volume de negócios subiu para 12,5 bilhões de dólares. O setor, em nível global, ultrapassou os dois trilhões de euros. Mais importante ainda é uma apólice de seguros para Israel, consciente desde o início da ocupação de Gaza e da Cisjordânia, em 1967, que muitos Estados são contrários às suas ações. Ao mesmo tempo, estas nações queriam contar com o apoio de Israel no campo da segurança, sobretudo para controlarem a sua própria população.
E isso explica o fato da reação internacional à possível prática de genocídio em Gaza estar sendo bastante branda?
Exatamente. Israel vende armas para cerca de 130 países e muitos não querem abrir mão disto. Um bom exemplo são os Estados Árabes. Quase um quarto das exportações de Israel foi para ditaduras árabes, como os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita. Nenhum Estado árabe cortou relações com Israel por causa da guerra, e não cortarão. Limitam-se a condenar os abusos israelenses. Seus líderes estão morrendo de medo da possibilidade de que ocorra uma segunda Primavera Árabe. Querem que Israel os ajude a se proteger de suas próprias populações.
De fato, os acordos de normalização entre vários Estados Árabes e Israel, promovidos por Donald Trump, os Acordos de Abraão, em essência, eram acordos de venda de armas. Além disso, não se deve esquecer que boa parte dos líderes árabes odeiam o Hamas. Não se importariam se o Hamas fosse destruído e desaparecesse. Sobretudo, o Egito, que aprisiona milhares de Irmãos Muçulmanos.
Considera que esta indústria pode ser afetada em Israel pelo fiasco em prevenir o ataque do Hamas, em outubro?
No momento, não vejo nenhuma evidência a esse respeito. Por causa da invasão da Ucrânia, os negócios destas empresas multiplicaram. Muitos países europeus recorreram a Israel para coisas como os sistemas antimísseis. E isso não mudará. A venda de programas de espionagem cibernética, como o Pegasus, continuará crescendo. Agora, as empresas estão testando drones suicidas, ferramentas de Inteligência Artificial, que são vendidas como uma forma mais eficiente e humana de travar a guerra, mas é justamente o contrário.
O fracasso do dia 7 de outubro não foi apenas tecnológico, mas também político e ideológico. Um ano antes, tinham informações sobre os planos do Hamas, mas não fizeram nada porque pensaram que o Hamas não conseguiria agir. Israel se convenceu erroneamente de que pode ocupar outro povo indefinidamente e que este povo não se rebelará.
Como a ocupação dos territórios palestinos contribuiu para o desenvolvimento desta indústria de ponta?
Tem sido fundamental. Muitos países vendem armas, mas em Israel o fato de ter ocupado um povo, durante tanto tempo, em seu quintal é singular. Os Estados Unidos usaram o Iraque e o Afeganistão para testar as suas novas armas. Contudo, foi por tempo limitado e longe de casa. No entanto, Gaza fica a apenas uma hora e pouco de Tel Aviv. A Palestina é para Israel um laboratório permanente para novas armas e programas de vigilância. De fato, a experiência da ocupação é, inclusive, utilizada como marketing por essas empresas.
Algumas ditaduras estão entre seus principais clientes?
Sim, entre as quais as ditaduras mais brutais e, inclusive, regimes que cometem genocídio. E para mim, como judeu que perdeu boa parte da família no Holocausto, é indignante. Existe uma consciência mais ou menos generalizada de que a política externa dos Estados Unidos apoiou os ditadores mais sanguinários, mas a mesma coisa não se dá com Israel, em parte porque essas relações têm sido secretas. Porém, agora, sabemos que Israel foi o principal fornecedor de armas destes regimes.
Você pode dar alguns exemplos?
Sabe-se que Israel teve uma estreita relação com a África do Sul do apartheid até o final, e isso explica a posição da África do Sul na ONU, mas não tanto que foi o principal fornecedor de armas a Pinochet quando o seu governo cometia as piores atrocidades. E ficamos sabendo disto recentemente, por meio da desclassificação de documentos da CIA. Israel também foi o principal fornecedor da Guatemala, nos anos 1980, quando cometia um genocídio contra a população indígena. Mais recentemente, mesmo após a ONU ter declarado que Mianmar cometeu um genocídio, Israel continuou vendendo armas para eles.
Isso diz pouco sobre a democracia israelense…
Efetivamente, nas últimas duas décadas, a indústria de armamentos recebeu do Governo todas as licenças de exportação solicitadas e os tribunais também não intervieram para impedir. Israel é uma democracia apenas para os judeus, porque os não-judeus em Israel são cidadãos de segunda, e os palestinos dos territórios ocupados vivem em uma ditadura. Há uma obsessão no Ocidente por Netanyahu, mas o problema vai além dele. Existe um amplo consenso no país, incluindo a oposição, para a manutenção da ocupação, para a forma como a guerra em Gaza está sendo conduzida, apesar de poder ser um genocídio.
Contudo, na sociedade israelense existem movimentos que se opõem a tudo isso. Eles são a esperança?
A única forma de mudar esta situação é com a pressão internacional. Certamente, há grupos, mesmo entre a direita, que acreditam que o fato de Israel, fundado das cinzas do Holocausto, vender armas às piores ditaduras, algumas inclusive genocidas, é horroroso. No entanto, são uma minoria. Sem pressões, sanções, movimentos de boicote como o BDS etc., nada mudará. No futuro, poderá existir mandados de prisão contra generais ou ministros emitidos por alguns países. Poderão ser julgados? Veremos. É importante acabar com o sentimento de impunidade total que impera em Israel.
Na Palestina, alguns confiam que a ascensão de novas potências globais em detrimento dos Estados Unidos possa ajudar em sua causa, mas visto o comportamento da Índia, não é algo certo...
Antes do atual líder Narendra Modi assumir o poder, dez anos atrás, a Índia era um país muito mais pró-Palestina. Tudo isso mudou com Modi. A Índia compra uma grande quantidade de armas israelenses e, agora, os dois países são aliados próximos. A Índia está se tornando um país perigosamente fundamentalista e o Ocidente ignora porque considera Nova Deli um aliado-chave em sua luta com a China.
A Índia é um país importante, o mais populoso do mundo e a maior democracia do planeta, mas a sua evolução é perigosa. Muitos líderes indianos admiram o que Israel faz nos territórios palestinos e gostariam de fazer o mesmo na Caxemira. Desde o dia 7 de outubro, o Governo Indiano afirma que apoia incondicionalmente as ações israelenses em Gaza. E isto não surpreende porque a Índia situa a sua luta contra o “extremismo” sob o mesmo prisma que o israelense.
Uma das alianças mais curiosas é a de Israel com a extrema direita...
Sim, Israel se tornou um modelo para a extrema direita europeia. E é algo surreal porque esses ultradireitistas são antissemitas e neonazistas. Às vezes, quando eu denuncio, as pessoas ficam surpresas, mas faz sentido. Estas pessoas odeiam os judeus, mas admiram a identidade etnonacional de Israel, o fato de Israel dar prioridade aos judeus acima de qualquer outro grupo.
Eles também querem criar o seu próprio Estado etnonacionalista, branco, cristão etc. O seu inimigo comum são os migrantes e o islã. Os líderes do partido neonazista da Suécia, que é muito influente, foram recebidos pelo Governo israelense, foram vistos apertando as mãos, sorrindo etc. Disseram que “compartilham valores comuns”. E me pergunto: quais valores podem compartilhar? O ódio ao islã…
É importante destacar que sou judeu, e para mim, como judeu, 80 anos após o Holocausto que matou boa parte da minha família, o fato de que se faça vista grossa a esta aliança de Israel com a extrema direita global é indignante e vergonhoso. Este comportamento torna todos nós, judeus, mais inseguros e vulneráveis. A ideia original do sionismo era que os judeus só poderão se sentir seguros após a criação de Israel. Contudo, agora, as ações de Israel, como a ocupação e a reação brutal ao dia 7 de outubro, não trazem maior segurança aos judeus, muito pelo contrário.
Faz muito tempo que se denuncia que as grandes empresas tecnológicas, como o Facebook e o WhatsApp, são hostis à causa palestina. Qual tem sido o seu comportamento na guerra atual?
As grandes empresas tecnológicas e o Vale do Silício censuram e proíbem agressivamente o conteúdo pró-Palestina desde o dia 7 de outubro. Muitas vezes, sob a direção e pressão do governo israelense. No entanto, apesar disso, eu diria que se trata de uma estratégia perdida para Israel e os seus partidários, porque a opinião pública está fortemente a favor dos palestinos em muitas nações do Norte e do Sul Global.
Há muito tempo, Israel acredita que a melhor forma de convencer as pessoas da sua causa está em estabelecer melhores relações públicas, mas as imagens da matança em massa em Gaza falam por si. Milhões de pessoas em todo o mundo compreendem, agora, que o governo israelense e muitos cidadãos israelenses apoiam a desumanização e destruição em curso das vidas e das infraestruturas palestinas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Há uma obsessão no Ocidente por Netanyahu, mas o problema vai além dele”. Entrevista com Antony Loewenstein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU