02 Março 2024
"Mamãe, os turcos!”: nessa expressão popular, que muitas vezes pontilhava histórias e fábulas, reúne-se a memória de um pesadelo repetido, a partir daquele ano de 1453 em que Maomé II - que conhecemos pelo intenso retrato que lhe foi dedicado por Gentile Bellini, pintor veneziano convocado para a sua corte – conquistou Constantinopla transformando-a na capital do Império Otomano. Pesadelo que apavorou a Europa quando em 1529 o exército turco sitiou Viena, ameaçando (em vão) espalhar-se pelo continente. Foi precisamente naquele ano que Martinho Lutero escreveu o livro Guerra contra os turcos, que logo teria sete edições, refletindo o pânico que permeava a sociedade da época", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 25-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A questão turca. O protestante escreveu contra o pesadelo muçulmano na Europa, mas no livro de Paolo Ricca vai mais longe: com a autocrítica dos cristãos, as desconfianças resultantes de contingências, o embate entre civilizações e, talvez, uma mudança de perspectiva. O caminho a seguir hoje é o diálogo inter-religioso, como o Papa repete na esteira do Vaticano II.
Lutero e l’Islam. Cinque scritti sulla “questione turca”, livro de Paolo Ricca (Foto: Divulgação)
“Mamãe, os turcos!”: nessa expressão popular, que muitas vezes pontilhava histórias e fábulas, reúne-se a memória de um pesadelo repetido, a partir daquele ano de 1453 em que Maomé II – que conhecemos pelo intenso retrato que lhe foi dedicado por Gentile Bellini, pintor veneziano convocado para a sua corte – conquistou Constantinopla transformando-a na capital do Império Otomano. Pesadelo que apavorou a Europa quando em 1529 o exército turco sitiou Viena, ameaçando (em vão) espalhar-se pelo continente. Foi precisamente naquele ano que Martinho Lutero escreveu o livro Guerra contra os turcos, que logo teria sete edições, refletindo o pânico que permeava a sociedade da época.
Temos agora a oportunidade de ler esse ensaio, traduzido e apresentado com o texto em alemão, juntamente com quatro outros escritos que enfocam a "questão turca" e que podem ser rotulados sob o título mais geral, Lutero e o Islã, também porque era aquele povo que encarnava na época o mundo muçulmano.
O mesmo acontecerá com os sarracenos, tribo árabe sinaítica unida aos corsários árabo-berberes. Depois de ter aprofundado o vínculo complexo e espinhoso entre o Reformador com a outra religião monoteísta no ensaio Os judeus de Lutero de Thomas Kaufmann, a série "Opere scelte - Lutero", da editora Claudiana, agora se foca na igualmente atormentada relação com o Islã. A nos guiar nesse vasto e ramificado horizonte é o extraordinário estudioso valdense Paolo Ricca: a ele devemos, de fato, uma introdução que é efetivamente um verdadeiro ensaio, cujo viés científico em nada impede uma leitura agradável também devido a um estilo quase narrativo. Ele analisa todos os dados desses escritos luteranos de vários gêneros e abordagens, mas os submete a uma aguda e necessária hermenêutica contextual. O Islã, encarnado pelos turcos, é visto por Lutero como um dos dois perigos maiores para a cristandade, juntamente com o papado, um risco já ventilado em outras de suas páginas anteriores a partir de 1513-1515, onde era associado aos judeus, aos hereges e aos pagãos.
Naquele período, Erasmo de Roterdã também havia ficado perturbado com a irrupção desses “bárbaros”, mas nesse âmbito, como em outros, revelava uma atitude mais refinada e “ecumênica”, lembrando que os turcos "são antes de tudo seres humanos e, mais ainda, meio cristãos", endossando a hipótese então difundida de que o Islã era uma heresia de matriz judaico-cristã (Dante também coloca Maomé no canto XXVIII do Inferno entre os semeadores da discórdia e, portanto, os herege-cismáticos). Outra abordagem menos agressiva e até dialogante foi demonstrada também por Raimundo Lúlio e Nicolau de Cusa.
Mas voltemos à Guerra contra os turcos e aos outros escritos de Lutero. Ele apoia a guerra de Carlos V em defesa dos cristãos como ato político, excluindo, no entanto, que seja uma guerra santa: “A espada do imperador não tem nada a ver com fé”. Também é interessante o convite para conhecer a doutrina muçulmana para evitar “mentiras grosseiras sobre os turcos usadas para incitar a nós, alemães, contra eles". É claro que são “servos do diabo”, mas podem manifestar “outras boas e belas virtudes, já que nenhuma pessoa é tão má que não tenha algo de bom em si", até revelando-se melhor do que certos cristãos, permanecendo, contudo, sempre diabólicos porque o demônio pode vestir-se como anjo.
Dois dos prefácios de Lutero alinham-se justamente no conhecimento do pensamento muçulmano: um livreto sobre a religião e os costumes dos turcos (1530) e, surpreendentemente, uma nova edição do Alcorão em versão latina, publicada em Basileia em 1543. Anterior (1529) é, no entanto, um Sermão de campo contra os turcos, na verdade jamais proferido na frente de militares, baseado no c. 7 do livro bíblico de Daniel, que era uma síntese simbólica do juízo de Deus sobre os impérios do antigo Oriente Próximo. Nesse discurso, Lutero tinha em mente o destino dos reféns cristãos nas mãos dos otomanos, tentados à abjura para salvar as suas vidas.
Depois, vale assinalar também o último dos cinco escritos, a Exortação à oração contra os turcos (1541), onde emerge uma severa autocrítica porque os cristãos são primeiro pecadores e devem "fustigar-se" e aprender "a temer a Deus e a rezar" porque a Alemanha "está cheia de todo tipo de pecados contra Deus”. Por um lado, portanto, é claro em Lutero um preconceito anti-islâmico, causado por uma espécie de atmosfera apocalíptica gerada pelo avanço turco pelo qual, como observa Ricca, “com o inimigo de Deus, não se dialoga nem se discute: a única possibilidade é combatê-lo, esperando derrotá-lo”.
Por outro lado, porém, o mesmo estudioso desses textos luteranos nos convida a discernir dentro de uma demonização do Islã, resultado de contingências histórico-culturais, alguns componentes que possam ser acolhidos – ainda que desmistificados pelas coordenadas contextuais – também hoje, enquanto estão se alinhando reações explosivas moldadas no esquema do choque entre civilizações. Basta pensar no tema do conhecimento genuíno do Islã, na autocrítica que os cristãos devem opor ao seu comportamento incoerente, na distinção entre política e religião, pela qual é ilícita a "cruzada", ou seja, a guerra santa, e na preocupação pastoral pelos prisioneiros cristãos e escravos dos turcos. É claro que a sensibilidade para o diálogo inter-religioso é agora muito diferente e esse é o caminho a seguir, como repete o Papa Francisco na esteira do Concílio Vaticano II, mesmo que seja sempre um caminho acidentado.
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Lutero e o Islã, preconceitos e diálogo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU