11 Janeiro 2024
Decreto de “guerra civil” no Equador movimenta as redes da ultradireita, que usa o caso para legitimar o uso das Forças Armadas na segurança pública. Objetivo: apoiar a violência por parte de agentes do Estado como “solução mágica” na guerra às drogas.
O artigo é de Glauco Faria, publicado por Outras Palavras, 10-01-2024.
Glauco Faria é jornalista, ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual. Co-autor do livro Bernie Sanders: A Revolução Política Além do Voto (Editora Letramento). Leia outros artigos no Substack.
A atual crise de segurança pública no Equador tem sido explorada por perfis bolsonaristas nas redes sociais para mobilizar sua base e reforçar conceitos já defendidos por este segmento no Brasil. Não à toa, já que o atual cenário do país sul-americano contém elementos centrais no discurso de quase qualquer segmento de extrema direita no mundo.
Primeiro, é sempre importante lembrar que enquanto os extremistas usam o Foro de São Paulo como espantalho de uma coalizão entre movimentos de diversos países, algo hoje já consolidado no imaginário do grupo, são eles que de fato efetivam uma colaboração internacional. Isso se nota em especial nas plataformas digitais, como ficou evidente, por exemplo, na eleição de Javier Milei na Argentina, que animou bolsonaristas no Brasil.
Com o Equador, a relação dos perfis extremistas brasileiros é de apoio ao presidente Daniel Noboa, que decretou estado de exceção e de conflito armado interno, autorizando militares a agirem como se estivessem em guerra. Ou seja, tendo licença para desrespeitar padrões da polícia.
Diversos vídeos de militares nas ruas com discursos patrióticos realizados para seus colegas (bem ao estilo das preleções de treinadores de futebol a seus times antes das partidas) passaram a circular, buscando uma legitimação não só das Forças Armadas em sua atuação na segurança pública, como também apoio a medidas que possam ir além da legalidade.
São inúmeras também as referências a um recente herói do segmento, o presidente de El Salvador Nayib Bukele, que, na prática, instaurou um regime de exceção para combater a criminalidade, com supressão de direitos e militarização. Ali, destaca-se uma declaração dele, sobre o Equador, dizendo que “os direitos humanos das pessoas honestas são mais importantes do que os dos criminosos”.
Também é possível ver vídeos com cenas de violência policial sendo celebradas, algumas ironicamente chamadas de “audiências de custódia”, outro alvo permanente da extrema direita brasileira. Em suma, trata-se de um combo para reforçar o viés da violência do Estado como suposta única solução possível, a “ordem” diante do “caos”.
Obviamente, não se trata apenas de consolidar conceitos caros ao segmento. A rede bolsonarista faz comparações com o Brasil, por exemplo, quando traz imagens da ação de militares nas ruas do Equador.
É neste momento que surgem as comparações e reclamações diante da suposta inação do Exército brasileiro, que não teria respondido quando chamado a “defender o país”. Aqui, é necessário entender o contexto.
O aniversário da tentativa de golpe de 8 de janeiro refrescou a memória e trouxe mais uma vez fatos mostrando que os acampamentos pedindo por intervenção militar próximos a quartéis não teriam ocorrido sem a cumplicidade de integrantes das Forças Armadas e/ou a omissão que, bem lida no interior de uma estrutura fortemente hierarquizada, se traduz em apoio aos golpistas.
Assim, a comparação com os militares do país sul-americano segue apontando a caserna como espaço de atuação política. É um queixume, mas também um afago de quem diz: ainda contamos com vocês.
Não faltam ainda “alertas” de que o Equador seria o “Brasil amanhã”, por conta do poder que as facções do crime organizado teriam no país.
A onda de violência no Equador já havia sido tema deste Substack quando o candidato à Presidência do país, Fernando Villavicencio, de 59 anos, foi assassinado na capital do país, Quito. O panorama de hoje é resultado de múltiplos fatores, como a ausência do Estado, a adoção de modelos punitivistas/proibicionistas ultrapassados, com facções criminosas aumentando seu poder e estabelecendo conexões políticas dentro do aparelho institucional equatoriano.
Entra na conta a geopolítica do narcotráfico, modificada após o acordo de paz estabelecido entre o governo colombiano de Juan Manuel Santos com as FARC e o início de um processo similar com o ELN, em 2016. A partir dali, houve um vácuo de poder na área de cultivo de coca e gestão da produção, fabricação e distribuição de narcóticos na Colômbia.
Facções dedicadas ao negócio se multiplicaram, e, com a pandemia, ficou mais difícil transportar drogas internacionalmente por vias aérea e terrestre, com as rotas marítimas passando a ser mais visadas. Cidades portuárias como Guayaquil ganharam importância e os entorpecentes passam a ser coletados em inúmeros pontos do Equador, antes um local somente de trânsito, e enviados ao seu destino, geralmente, a Europa.
Mas há outros fatores que pioraram a situação desde então. “A [questão da] segurança pública é a só a parte mais visível desse iceberg. Esse episódio de hoje remonta ao candidato assassinado em agosto, […] estava visível o descontrole absoluto. Qual a solução que as urnas apontaram? A solução das urnas foi entregar o Estado ao homem mais rico do Equador”, pontua o professor de relações internacionais da ESPM Leonardo Trevisan, em entrevista ao Uol.
“[Daniel Noboa] Que prometeu exatamente isso que tá fazendo: privatizar a segurança pública, transformar a segurança pública em um negócio muito eficiente. Acho que esse talvez é o processo mais periclitante e o que estamos assistindo é o resultado disso”, diz o professor. “[No] Equador, teve uma absurda privatização da segurança pública – talvez o mais alto índice de toda América Latina: o país tem mais de 125 mil homens armados em segurança privada, isso é o dobro dos policiais”.
O encarceramento em massa e a situação carcerária precária também se tornaram o ambiente ideal para as facções criminosas poderem crescer, a exemplo do que aconteceu no Brasil. Como dizia a matéria publicada aqui em agosto:
No Equador, houve um crescimento de 469,29% da população carcerária no período de 20 anos até 2021, aponta o relatório, ressaltando ainda que as políticas de drogas e reformas legislativas promovidas pelo Estado aumentaram as penas para crimes relacionados ao uso de substâncias proibidas e impossibilitou a aplicação de benefícios aos condenados. A prisão preventiva, expediente banalizado também no Brasil, é ainda outro fator que contribui para o encarceramento em massa: até 29 de outubro de 2021, mais de 39% da população carcerária total encontrava-se neste regime.
Não há solução mágica, ainda mais quando questões estruturais e conjunturais se misturam. E há tempos seria necessária uma discussão conjunta entre países do continente para somar esforços de inteligência na área de segurança que seriam vitais em momentos de crise como o atual.
Mas, além disso, é preciso enfrentar o debate nas redes e desmascarar o negacionismo das supostas respostas baseadas no modelo repressivo de sempre. Há muito as ciências criminais e outras áreas acadêmicas se dedicam a estudar a questão e é incrível que ainda hoje se aposte em algo que nunca funcionou e, quando teve resultados aparentemente razoáveis, causou mais danos do que ganhos.
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Como crise no Equador assanha o bolsonarismo. Artigo de Glauco Faria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU