09 Janeiro 2024
"Depois de um ano de governo Lula 3, é possível concluir que foi conquistada uma subordinação dissimulada dos militares" escrevem pesquisadores do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Jorge Rodrigues, Carla Teixeira, Rodrigo Lentz, Ana Penido, Ananias Oliveira, Pollyana Andrade e Suzeley Mathias, em artigo publicado por Brasil de Fato, 08-01-2024.
Nem parece que foi há um ano, mas o período de transição para o governo eleito foi trepidante com os militares: acampamentos da “família militar” em frente aos quartéis; nota pública do Comando das Forças em apoio aos acampados, críticas veladas ao Poder Judiciário e ausência de reconhecimento do resultado eleitoral, alimentando a narrativa golpista. Além disso, a Defesa foi a única área a ficar de fora dos grupos de transição.
Com esse cenário, Lula optou por uma solução bastante favorável aos militares: acenou com a preservação dos espaços “tradicionais” de poder dos militares no executivo (Ministério da Defesa e Gabinete de Segurança Institucional), somada à autonomia nas políticas militares (carreira e quartéis) e de defesa nacional (política e estratégia). Além disso, a busca pelo apaziguamento também assegurava que o governo não buscaria “vingança”, se abstendo de responsabilizar militares que aderiram ao governo Bolsonaro, e prometia investimentos na indústria de defesa e nos projetos estratégicos das forças, engajando os militares na agenda de desenvolvimento nacional a partir da reindustrialização do país.
Apesar disso, vieram os ataques de 8 de janeiro, produzindo uma grande perturbação da ordem política-institucional. Ainda que perdurem discussões teóricas sobre a classificação do fenômeno (revolta, insurreição, tentativa de golpe), restou clara a participação das cúpulas da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), do Exército e do GSI na sabotagem do sistema de segurança que permitiu tanto a mobilização quanto a execução dos ataques. Se formou um cenário perfeito para legitimar novamente a entrega ao Exército de poderes excepcionais de “mantenedor da ordem”.
Superado o ataque por uma intervenção na segurança pública do Distrito Federal, tendo à frente um civil (Ricardo Capelli), Lula nomeou o general Tomás Paiva como novo Comandante do Exército que, ao assumir, promoveu atos simbólicos de subordinação ao presidente. Depois disso, o governo claramente buscava distância de qualquer iniciativa que “estressasse” a subordinação negociada recém pactuada com os militares, inclusive se postou contra a instalação da CPMI do 8 de Janeiro.
Na inteligência, fortemente abalada pelos ataques de 8 de janeiro, Lula retirou dos militares a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e promoveu reformas no sistema de inteligência, mas mante o Gabinete da Segurança Institucional (GSI) com o Exército. Na segurança pública, o governo conseguiu promover uma mudança na política armamentista, mas no restante perduraram atos que revelam ausência de programa ou políticas públicas que se diferenciem da solução bolsonarista. Em outra ponta, o governo também tem cedido no enfrentamento do passado autoritário da instituição militar, em relação a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos (CMDP), ao não retomar as políticas da Comissão de Anistia e em não retomar a implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Para além desses recuos ou inações, o governo confirmou altos investimentos para a área de defesa no orçamento de 2024.
Com esse cenário de “acomodação”, a consequência de médio prazo dessa tática será a ampliação dos poderes políticos dos militares e seu fortalecimento para serem reengajados na disputa de poder com eventual crise econômica, política e social.
Outro importante desdobramento será em relação às Polícias Militares (PMs). Ao contrário das Forças Armadas, o desengajamento político-partidário desses militares sequer foi alvo de proposta governamental. Além disso, foi aprovada uma reforma do regulamento geral das PMs que ampliou a autonomia dessas corporações em relação aos governadores. Mantidas como forças auxiliares e reservas do Exército, as PMs também tiveram suas competências expandidas.
Apesar de alguns avanços de controle da política pública de segurança, o novo desenho institucional tenderá a aumentar o poder político de corporações altamente ligadas à extrema direita no Brasil, sobretudo ao bolsonarismo. Assim como historicamente ocorreu com as Forças Armadas, parece haver uma crença disseminada entre a esquerda institucional que é possível cooptar oficiais e até mesmo disputar tais corporações.
Depois de um ano de governo Lula 3, é possível concluir que foi conquistada uma subordinação dissimulada dos militares. Assim como ocorre no Congresso, o governo navega em águas turbulentas e buscou pactuar com o generalato um contrato de convivência entre opostos a partir da institucionalidade. Em outros termos, Lula precisou negociar o respeito ao resultado eleitoral e a aceitação de sua posição de governante, apenas voltando ao molde da tutela militar pós-1985.
Se Bolsonaro termina enfraquecido, sem a disposição do atual comando em protegê-lo, é de se duvidar que o mesmo ocorra com o bolsonarismo. É verdade que uma parte da queda da imagem do Exército corresponde à frustração de uma parcela do bolsonarismo militante com o desembarque dos militares no golpe. Contudo, se entendido como um subproduto da ideologia dos militares e da extrema direita no Brasil, o bolsonarismo tende a sobreviver atento às rápidas mudanças conjunturais, sobretudo por sua penetração entre neopentecostais, agronegócio e empresariado. Ademais, muitos coronéis, a camada do oficialato mais militante do bolsonarismo, em breve ascenderão na carreira com a possibilidade de chegarem ao generalato.
Já no plano internacional, o pragmatismo das Forças Armadas em seus negócios na indústria bélica foi favorecido pelos termos pactuados com o governo e se mostra adaptado à agenda de projeção internacional considerando a nova ordem multipolar. Sem prejuízo do retorno dessa “normalidade”, posições internacionais que confrontem símbolos da extrema direita no mundo – sionismo e anticomunismo – tendem a ser mobilizadas por lideranças como Milei e Trump. Caso se confirme o retorno deste nos EUA, é de esperar um reencontro entre Bolsonaro e bolsonarismo com reflexo nos militares.
Em miúdos, a relação entre Lula 3 e militares tende a ser orientada por acordos em troca da governabilidade, seguindo a aposta da priorização da agenda econômica. Enquanto na extrema direita a segurança continua sendo o foco mobilizador, com a esquerda, os militares parecem ter encontrado uma fenda histórica na crença de seu justo engajamento no desenvolvimento econômico. E assim a tutela sobrevive com um, pelo braço forte; com outro, pela mão amiga.
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Governo Lula 3 navega em águas turbulentas na relação com as Forças Armadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU