03 Janeiro 2024
Pesquisadores veem hesitação do governo diante da necessidade de fortalecer o controle civil sobre as Forças Armadas.
A reportagem é de Daniel Giovanaz, publicada por Brasil de Fato, 28-12-2023.
Despolitização e pacificação. Esses são alguns dos termos mais usados por interlocutores de Lula (PT) e do Ministério da Defesa (MD) quando questionados sobre as estratégias do atual governo para prevenir que integrantes das Forças Armadas voltem a atentar contra a democracia.
O número de militares da reserva e da ativa no governo Jair Bolsonaro (PL) superou os 6 mil, um recorde desde a redemocratização. Conforme relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro, ao menos 8 generais do Exército e um almirante da Marinha teriam participado, de diferentes formas, dos atos golpistas em Brasília (DF).
Esta é a terceira reportagem de uma série sobre o Programa Calha Norte (PCN), que aborda o desafio de aprimorar o controle civil sobre as Forças Armadas, com ênfase para a Amazônia Legal e as áreas de fronteira. As duas primeiras matérias apresentaram o contexto histórico da criação do programa, ao final da ditadura, e os impactos socioambientais e aos cofres públicos desde então.
A nomeação do engenheiro civil e ex-presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) José Múcio como ministro da Defesa, em 1º de janeiro de 2023, encerrou um período de quase 5 anos em que a pasta foi chefiada por militares.
Sem experiência na área, Múcio tem perfil conciliador e mantém bom relacionamento com o alto escalão verde-oliva. A escolha agradou mesmo aqueles alinhados ao bolsonarismo – o próprio Bolsonaro disse ser "apaixonado" pelo engenheiro quando este deixou o cargo no TCU, em 2020.
"No final de 2022, a única área importante do governo que não teve um GT [Grupo de Trabalho] de transição foi a Defesa", observa Thiago Rodrigues, professor no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF). "A escolha do Múcio e dos chefes das Forças Armadas foi feita em conversas veladas, sem debate público e sem incidência de especialistas no tema, com uma intenção clara de não desagradar a corporação militar".
Ainda nos meses iniciais de governo, Lula reduziu de 2.067 para 1.871 o número de militares da ativa com cargos comissionados no governo e transferiu a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para a Casa Civil.
Após o fracasso no enfrentamento às queimadas sob a liderança do general Hamilton Mourão, o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) deixou de fazer parte das atribuições da vice-presidência em 1º de janeiro de 2023 e foi substituído por uma comissão interministerial permanente de prevenção e controle do desmatamento. Ainda em relação à Amazônia, em 18 de janeiro Lula exonerou 17 dos 24 militares da reserva ou reformados que ocupavam cargos na Fundação dos Povos Indígenas (Funai).
No dia em que tomou posse pela terceira vez, Lula também revogou o Decreto nº 10.966/2022, de Bolsonaro, que regulamentava o chamado "garimpo artesanal"; destravou o Fundo Amazônia, abandonado pelo ex-presidente, com mais de R$ 3 bilhões paralisados; e agiu emergencialmente para expulsar garimpeiros da terra Yanomami, assistir aos indígenas e enfrentar a crise humanitária – relatos recentes indicam que o garimpo ilegal está se estruturando novamente no território.
Em meio ao conjunto de ações para remediar danos da gestão bolsonarista, com maior ou menor efetividade, entrevistados ressaltam que o Calha Norte permanece intacto, como um "elefante na sala" do governo Lula. A avaliação é de que, enquanto o programa existir no atual formato, não será possível "desidratar" as Forças Armadas nem conter eficazmente suas ingerências em outras áreas da vida nacional.
Pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Adriana Aparecida Marques lembra que em maio, durante os debates sobre a reestruturação ministerial, "ninguém no governo falou em reestruturação do Ministério da Defesa. Se houvesse essa intenção, aquele era o momento".
"Infelizmente, nem o 8 de janeiro foi capaz de fazer com que este governo enfrente, de fato, uma discussão séria sobre qual deve ser o papel das Forças Armadas no Brasil", completa.
Conforme levantamento do Brasil de Fato no Portal da Transparência em 26 de novembro, há 1.354 convênios em execução com estados e municípios por meio do PCN, com valor total celebrado de R$ 2,99 bilhões – e um vasto histórico de irregularidades, conforme descrito na segunda reportagem desta série. Os repasses, alocados no MD, abrangem 783 municípios dos 9 estados da Amazônia Legal e do Mato Grosso do Sul e incluem desde obras de infraestrutura e saneamento, construção de escolas e instalação de pelotões militares, até serviços como vacinação e assistência social.
Irrigado pelo orçamento secreto durante o governo Bolsonaro, o programa continua sob críticas devido à militarização, aos impactos ambientais e à ausência de participação comunitária indígena. Ao mesmo tempo, funciona como instrumento de legitimação da atuação das Forças Armadas regionalmente, tornando a Amazônia um "laboratório para um país militarizado", nos termos do artigo como diz o relatório "Os militares na Amazônia no contexto da Nova República: uma gestão militarizada de territórios e populações", de Licio Caetano do Rego Monteiro.
No final de setembro, o jornal O Estado de S. Paulo apurou que o governo Lula avaliava transferir o Calha Norte do MD para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. A pasta é liderada por Waldez Goés (PDT-AP), ex-governador do Amapá, que foi indicado ao cargo pelo senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) – o mais beneficiado por emendas parlamentares via PCN no final do governo Bolsonaro. A reportagem entrou em contato com a Presidência da República e com a Casa Civil para checar essa intenção e obter mais informações, mas não houve resposta até a publicação desta matéria.
Em paralelo, o governo federal estuda aumentar a faixa de fronteira, de 150 km para 250 km de largura ao longo da linha divisória terrestre do território nacional, o que poderia significar mais municípios – e mais recursos – no guarda-chuva do Calha Norte. Nos últimos 20 anos, o número de municípios abrangidos pelo PCN aumentou 10 vezes.
"Um programa como o Calha Norte deveria ser temporário. O ideal seria fortalecer a institucionalidade, as agências estatais, de forma a diminuir gradativamente a importância dos militares no âmbito da Amazônia", analisa o geógrafo Licio Monteiro, professor da UFRJ. "Hoje eles continuam tendo legitimidade regional, porque em alguns lugares fala-se que não se combate incêndio sem o apoio dos militares; não se resolve problema de saúde indígena sem os aportes militares. Eles mesmo se arvoram a condição de 'única instituição do Estado' presente em alguns territórios."
Não à toa, segundo o pesquisador, os próprios militares se mostram refratários à ideia de fortalecer políticas públicas que não dependam do MD nessas regiões. "Em vez de ser um programa temporário, excepcional, o Calha Norte foi se tornando um mecanismo de proliferar essa vinculação e essa importância do Ministério da Defesa no aporte de recursos para os municípios, e isso de alguma forma permitiu à Defesa incidir sobre os demais campos da sociedade, da política", afirma.
Dos mais de 1,3 mil convênios em execução por meio do PCN, quase 400 foram publicados a partir de 1º de janeiro, quando Lula tomou posse como presidente pela terceira vez. No final de outubro, o presidente sancionou uma lei que garantiu mais R$ 80 milhões para o MD aplicar no Calha Norte, por meio de créditos extraordinários. O general Ubiratan Poty, atual diretor do DPCN, é o mesmo desde o início do governo Bolsonaro.
Chama atenção que, durante a votação desses créditos orçamentários na Comissão Mista de Orçamento (CMO), as críticas à "desvirtuação" e "uso político" do programa foram vocalizadas principalmente por parlamentares da direita liberal – enquanto Carlos Zarattini (PT), relator do texto, defendeu a aplicação dos recursos nos moldes atuais.
Pesquisadores ouvidos pela reportagem não questionam a importância das obras em si – escolas, unidades de saúde e asfaltamento de rodovias, por exemplo –, mas a forma como os recursos são alocados e distribuídos.
"O caminho seria desidratar todos esses espaços em que os militares tomaram para si atribuições ou responsabilidades que não são propriamente militares. Por exemplo, avaliar a possibilidade de um programa do Ministério da Educação, ou da Saúde, do Meio Ambiente, para demarcar presença nesses lugares onde hoje estão os militares", sugere o professor Licio Monteiro. "É claro que isso esbarra no fato de que grande parte do orçamento ainda está nas mãos do Legislativo, por meio das emendas parlamentares."
Autor do livro "Esperando os bárbaros: geopolíticas da segurança no Brasil do século XXI", Monteiro pondera que "é difícil fazer grandes projetos em um contexto de meta fiscal, de arcabouço fiscal; só que, ao mesmo tempo, a verba para Defesa no novo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] é enorme".
Dos 9 eixos do PAC, anunciados por Lula em agosto, o setor de Defesa teve o quarto maior investimento. Foram alocados cerca de R$ 52,8 bilhões para "modernizar e equipar as Forças Armadas", montante superior ao destinado à Ciência e Tecnologia (R$ 45 bilhões), Educação (R$ 45 bilhões) e Saúde (R$ 30,5 bilhões), por exemplo.
Chico Gunther, integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ressalta outro motivo para fortalecer políticas públicas sem depender das Forças Armadas ou de recursos alocados no MD.
"As ações dos militares [em terras indígenas, por meio do PCN] sempre são muito pontuais, carecem de uma continuidade. É muito mais interessante e efetivo investir nas políticas existentes, como os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, na atenção básica, do que em ações emergenciais, que acabam desconectadas das políticas mais amplas", avalia.
"Os militares poderiam ter um papel subsidiário nas ações do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], da Polícia Federal e de órgãos de fiscalização, por exemplo, em relação a temas como narcotráfico, contrabando, invasão de terras indígenas, etc. Seria interessante, desde que estivessem subordinados ao controle civil e supervisionados por outros órgãos governamentais. Dar autonomia total para as Forças Armadas ou permitir que extrapolem suas atribuições gera um problema grande, porque elas acabam criando suas próprias leis”, completa Gunther.
O que fazer com as Forças Armadas? O dilema que parece acometer o terceiro governo Lula acompanha a história da Nova República.
"Muita gente se pergunta onde estavam os militares antes de eles assumirem a cena central da política, com Bolsonaro. É preciso refletir sobre o que eles estavam fazendo nos últimos 20, 30 anos, e que os habilitou para isso", afirma Licio Monteiro, da UFRJ. "O governo Fernando Henrique [PSDB], por exemplo, deixou a Defesa à míngua. A estratégia de neutralização dele foi simplesmente não ter recursos. Já o governo Lula elevou muito os investimentos, com a ideia de dar aos militares uma 'missão nobre' e, assim, afastá-los da política. Na minha visão, olhando para o que foi o governo Bolsonaro, o 8 de janeiro, não deu certo".
"Ao longo da história, sempre houve esse eterno retorno dos militares. Para mim, este é o nó da República: como manter uma Força Armada capaz de manter sua função constitucional de defesa do Estado sem que ela se insurja contra o próprio poder político", reflete o professor.
Entre 2003 e 2010, período compreendido pelos dois primeiros governos Lula, o orçamento anual da Defesa saltou de R$ 25 bilhões para R$ 59 bilhões. Como eram anos de crescimento econômico, o percentual em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) se manteve estável – cerca de 1,5%.
Monteiro chama atenção para a participação do Brasil na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), de 2004 a 2017. "Basicamente, foi uma ação de controle de população urbana, de favelas, que depois seria usada na Favela da Maré, no Complexo do Alemão, e para combater o tráfico de drogas nas fronteiras". Na interpretação do pesquisador da UFRJ, o Estado brasileiro mostrou-se incapaz de desenvolver mecanismos para lidar com essas crises sem recorrer às Forças Armadas.
A continuidade dos investimentos do Calha Norte, no mesmo formato do governo Bolsonaro, não é o único exemplo da hesitação do atual governo Lula diante do desafio de neutralizar os militares. Segundo os entrevistados, a instituição da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e autorização para atuação das Forças Armadas nos portos e aeroportos, a partir de novembro, é reveladora.
"Com a intervenção nos aeroportos, o governo admite que as forças civis não são capazes de garantir a segurança pública. Partimos da ótica de que sendo duros, por meio do hard power, é possível resolver os problemas, mas na realidade as GLOs tem se mostrado ineficazes", pontua Samuel de Jesus, professor do Grupo de Estudos de Política Internacional da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Fronteiras são notadamente espaços de trânsito, não só de pessoas, mas de dinheiro, mercadorias, armas, doenças, produtos falsificados ou contrabandeados. Para o pesquisador da UFMS, isso não significa que a atuação por meio das Forças Armadas é a única alternativa.
"Deveríamos buscar saídas propostas pela sociedade civil, mesmo que a longo prazo. A questão fronteiriça não é uma questão coercitiva. Quando você parte do pressuposto de que precisa utilizar a coerção, o monopólio legítimo da violência, você está automaticamente sufocando vozes", afirma Samuel de Jesus.
"A criminalidade, aquilo que vulnerabiliza as fronteiras terrestres, está muito mais ligada à ausência de política pública que gere emprego, renda, educação. Hoje, essas populações dependem em grande parte do assistencialismo proporcionado pelas Forças Armadas, mas não há uma perspectiva autonomizadora dos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, da população na região de fronteira", completa.
Dois dos 5 municípios brasileiros com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são fronteiriços: Uiramutã (RR), na fronteira com Guiana (5560º do ranking nacional), e Atalaia do Norte (AM), vizinho ao Peru (5563º), onde foram assassinados o jornalista Dom Philips e o indigenista Bruno Pereira em 2022. Na comparação com outros países, os índices de Uiramutã e de Atalaia do Norte são equivalentes aos do Iêmen e de Burkina Faso, respectivamente – ambos estão entre os 10 piores IDHs do planeta.
"A questão da fronteira é social, não militar. Instalar pelotões de fronteira não pode ser uma finalidade – a não ser que essa finalidade seja a militarização em si", enfatiza Samuel de Jesus. "Precisa ser incluída nos assuntos de Defesa a questão da pobreza na região de fronteira, mas não só. Também é necessário contemplar a manutenção das reservas indígenas, o respeito ao povo indígena, à população que vive no local".
A reportagem entrou em contato com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) para compreender sua posição sobre o tema. "Primeiro, para os povos indígenas não existem fronteiras. Essas fronteiras foram impostas por um sistema que não é nosso e que querem impor a todo custo", afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo. "Infelizmente, temos que seguir as regras do não indígena. Se nós seguíssemos as regras dos indígenas teríamos todas as terras sob a nossa posse e todos os territórios ancestrais demarcados".
O integrante da Apib chama atenção para o descumprimento do direito territorial, previsto na Constituição de 1988, e reforça a necessidade de participação de indígenas nas políticas públicas.
"Os indígenas têm contribuído com a fiscalização e proteção territorial, e o governo tem a missão de potencializar esse trabalho. Os órgãos ambientais também precisam ser fortalecidos. Colocar militar dentro de terra indígena, com sua ideia e doutrina, não vai resolver. O que nós precisamos é que os povos indígenas de fato participem das tomadas de decisão e da execução de políticas públicas, principalmente de monitoramento e fiscalização, seja na fronteira ou fora dela", ressalta Tuxá.
As tensões relativas à possível incorporação do território de Essequibo pela Venezuela provocaram, no início de dezembro, um deslocamento de tropas do Exército brasileiro em direção a Roraima. Para entrar por terra em Essequibo, que hoje pertence à Guiana, os militares venezuelanos teriam que passar pelo território do Brasil.
Este é um raro episódio em que as Forças Armadas se veem diante de uma possibilidade real de conflito armado na fronteira, ou de invasão do território por tropas estrangeiras.
O Brasil não possui inimigos externos nem participa de guerras há quase 80 anos. Ainda assim, os gastos com Defesa continuam crescendo.
Thiago Rodrigues, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do grupo de pesquisa Segurança e Defesa nas Américas, ressalta que o envolvimento dos militares em assuntos alheios à Defesa é uma tendência na América Latina. O pesquisador cita como exemplo o México.
"As Forças Armadas são duplamente deslocadas de suas funções tradicionais. Primeiro, sob o ponto de vista do provimento de segurança – passa de elementos de defesa nacional, contra forças externas, para a segurança interna. Esse deslocamento não é uma novidade, mas vem sendo aprofundado desde os anos 1990, para combate ao crime organizado", analisa.
No Brasil, esse movimento se expressa na instauração de GLOs, por exemplo, mas também no fortalecimento da vertente civil do PCN, desde o início dos anos 2000, conforme descrito na primeira reportagem desta série.
"O governo Lula não deve mexer nessa lógica, primeiro, por uma razão estrutural: a presença militar na Amazônia, pela lógica da segurança e desenvolvimento, tem raízes históricas muito mais antigas, que remontam pelo menos à origem da nossa República – a ocupação do interior do Brasil a partir do modelo de ordem e progresso republicanos", analisa Rodrigues.
"E a razão conjuntural é que Lula já deu indícios de que irá seguir a mesma lógica de relação com as Forças Armadas que adotou nos seus dois primeiros mandatos, ou seja, de não confronto, de acomodação, e de agradá-los o máximo possível – com orçamento maior, tolerância com relação a desvios de conduta", acrescenta o pesquisador, citando novamente a gravidade os episódios de 8 de janeiro.
Thiago Rodrigues também dá ênfase aos impactos da Minustah, durante os governos PT. "Foram mais de 10 anos de participação no Haiti, o que motivou grande investimento nas Forças Armadas, deslocamento de militares – que ganharam salários dobrados, em dólar, experiências de comando militar –, e que foi a fase final de preparação de militares que foram a base do Gabinete do Ódio de Bolsonaro e do 8 de janeiro", observa.
Segundo as fontes consultadas pela reportagem, a postura do terceiro governo Lula diante dos ataques aos três Poderes apontam para uma tentativa de responsabilização dos indivíduos, e não das corporações. Em paralelo, se mantém a tendência de acionar os militares para atividades tão diversas quanto transporte de urnas, cestas básicas, atendimentos odontológicos em municípios de fronteira, até o clássico "pintar meio-fio".
"Fala-se muito em manter os militares na sua casinha, mas eles são chamados para resolver todos esses problemas. É um pouco contraditório", afirma o professor Licio Monteiro, da UFRJ. "Os militares sempre resguardaram um nível de autonomia muito forte em relação ao poder político, com seus sistemas de inteligência, educação, hierarquia. Mas, uma coisa é ter autonomia, outra é incidir sobre o próprio poder político – Gabinete de Segurança Institucional, presença massiva no governo, etc. Então, a aposta de Lula parece ser apenas na tentativa de neutralização dessa possível ascendência dos militares sobre a política", finaliza.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa informou à reportagem que o PCN evoluiu e ganhou "importância, reconhecimento e consistência" ao longo das últimas três décadas e meia.
Sobre o histórico de auditorias e investigações que apontam problemas nas contas de convênios realizados por meio do Calha Norte desde 1994, o MD afirma que "o PCN tem recebido com atenção as orientações emanadas pela Corte de Contas, adotado as ações corretivas necessárias de sua competência e buscado aperfeiçoar o seu papel de também contribuir, de forma eficiente, para o cumprimento de políticas públicas de interesse social em sua área de atuação".
Segundo o MD, a metodologia utilizada pelo DPCN para acompanhamento e monitoramento da execução dos projetos "envolve a realização de conferências, workshop, visitas "in loco", exames e verificação de documentos, visando avaliar a suficiência das estruturas, funções e funcionamentos dos controles existentes". Em 2023, houve 539 vistorias presenciais, "entre preliminares (antes do início da obra), intermediárias (no decorrer da execução da obra) e finais (após a conclusão da obra)", realizadas por equipes compostas por engenheiros, técnicos e analistas administrativos.
O PCN também possui métodos de monitoramento à distância, que incluem a análise de relatórios fotográficos georreferenciados e a comunicação constante entre os engenheiros do programa e os engenheiros dos convenentes. "Essas estratégias asseguram uma supervisão contínua e abrangente dos projetos, garantindo que todas as obras sejam vistoriadas de maneira eficaz", ressalta a assessoria de imprensa do MD.
"No que tange à capacidade técnico-operacional e logística, o PCN conta, atualmente, com equipe de servidores e militares das três Forças Armadas, engenheiros e técnicos, que compõem a força de trabalho do Programa, proporcionando um acompanhamento correto e seguro da aplicação do recurso federal. Indiscutível é o reconhecimento de que a capacidade de realizar vistorias em todos os municípios de atuação dos PCN, localizados nas áreas mais inóspitas do país, está relacionada ao competente apoio que as equipes do Programa recebem das organizações militares da Marinha do Brasil, Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira", acrescenta a resposta enviada à reportagem.
O MD observa ainda que "após a celebração de convênios, a Portaria Interministerial nº 424/2016, no seu Art. 7º, dispõe que cabe aos proponentes/convenentes a execução e fiscalização diária das obras, incluindo a designação de um profissional habilitado no local da intervenção, com a respectiva Anotação de Responsabilidade Técnica (ART)".
Em relação ao possível uso político do programa, por meio das emendas parlamentares, o MD informa que "a execução de qualquer projeto no âmbito do PCN é sempre respaldada em questões técnico-jurídicas e operacionais. São os parlamentares, por meio de emendas, que direcionam os recursos para projetos conduzidos pelo PCN".
Sobre as declarações que apontam a falta de uma "perspectiva autonomizadora" e de "desenvolvimento humano" das comunidades locais, a pasta da Defesa enfatiza que "o PCN se caracteriza como um programa federal executor de políticas públicas bem-sucedidas (...), objetivando promover a ocupação e o desenvolvimento ordenado das regiões mais carentes do país, em harmonia com os interesses nacionais, (...) para atendimento de projetos de infraestrutura básica e aquisição de veículos e equipamentos que representam desafios estratégicos que visam a alcançar as fronteiras e aos municípios mais carentes, localizados em áreas longínquas e isoladas, que possuem singularidades que precisam ser consideradas para tomada de decisão".
Conforme a resposta enviada à reportagem, "a integração do programa com as Forças Armadas resulta em capilaridades logísticas decisivas, especialmente na execução de missões em regiões remotas e de difícil acesso. O apoio logístico e os meios de transporte fornecidos pelas Forças Armadas são essenciais para alcançar localidades sem acesso rodoviário, possibilitando a implementação efetiva das políticas públicas, operando em sinergia e agregando um valor único ao programa, especialmente na execução de projetos em áreas desafiadoras".
Por fim, a assessoria de imprensa do MD salienta que "o PCN atua em estrita conformidade com as diretrizes pertinentes, inclusive aquelas que regulamentam o relacionamento das Forças Armadas com as comunidades indígenas".
A reportagem perguntou ainda à Casa Civil e à Presidência da República sobre os rumores de ampliação da faixa de fronteira e de transferência do PCN do MD para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Outro questionamento enviado foi sobre "quais medidas vêm sendo tomadas pelo atual governo para neutralizar e fortalecer o controle civil sobre as Forças Armadas, diante de indícios da participação de generais nos ataques de 8 de janeiro de 2023, por exemplo". Não houve resposta até a publicação desta matéria.
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Um “elefante na sala” do governo Lula: o Programa Calha Norte e os sentidos da desmilitarização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU