12 Dezembro 2023
"Não podemos ignorar (...) a situação vulnerável dos refugiados (em fuga de conflitos, guerras, violência), estimados hoje em mais de 100 milhões de pessoas, bem como os refugiados climáticos, cujo número cresce na proporção direta do aquecimento global, com suas catástrofes", escreve padre Alfredo J. Gonçalves, CS, assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM/São Paulo.
Comumente se ouve dizer e repetir que “todos, homens e mulheres, somos migrantes sobre a face da terra, peregrinos até o repouso na pátria definitiva”. Ou também que “as migrações existem desde que existe a humanidade, com sua história turbulenta e tortuosa”. Desde um determinado ponto de vista, ambas as observações estão corretas. Entretanto, não deixam de apresentar resíduos anacrônicos de uma linguagem quase que mítica. Ambas, de fato, encontram-se permeadas de ambíguas armadilhas, as quais podem levar a justificar e até mesmo a naturalizar os deslocamentos humanos de massa. No decorrer da história, o terreno das migrações tem sido minado de mal-entendidos.
A verdade é que existem migrações e migrações. Alguns preferem diferenciar o conceito de migrações da ideia de mobilidade humana, sendo que esta abarca um campo mais amplo no qual se incluem aquelas. Os movimentos nômades que precederam a Revolução Agrícola e os prisioneiros de guerra conduzidos ao exílio pelos vencedores, em maior ou menor grau, fazem parte de toda a história. O mesmo ocorre com as mulheres levadas como troféus ou o vaivém das tribos do deserto e de outros ecossistemas. Tudo isso reveste o tecido da história, mas de maneira particular os períodos antigos e medievais.
As mudanças do mundo moderno – filosóficas, científicas, tecnológicas – de forma especial a Revolução Industrial, aliadas ao comércio mercantil e já global, à descoberta/invasão de novas terras e ao progresso da produção e da produtividade, desenvolveram novos tipos de deslocamentos humanos massivos. O caso mais emblemático é a transformação do servo da gleba e/ou camponês em “soldado da fábrica”. Modificações rápidas e profundas, com destaque para o século XIX, sacudiram os países da Europa. Com velocidade nunca vista, os campos se esvaziaram e as cidades se tornaram inchadas. Para se ter uma ideia, basta citar apenas uma cifra: entre 1820 e 1920, aproximadamente 70 milhões de pessoas deixam o velho continente, cruzaram o oceano Atlântico, “per far l’America”, como diziam os italianos.
Este tipo novo e preciso de fenômeno migratório pouco ou nada tem a ver com aqueles movimentos que marcaram as sociedades anteriores, como vimos. Trata-se, desta vez, de migrações direta ou indiretamente conectadas ao trabalho assalariado. O “servo” da gleba, subjugado como vassalo e pessoalmente vinculado ao “senhor”, de um lado, e, de outro, o “aprendiz” da oficina vinculado ao artesão “mestre”, converte-se no operário impessoal e anônimo, o qual, na engrenagem cada vez mais complexa da fábrica incipiente, passa a ganhar o seu salário em dinheiro. As várias mudanças que levaram à transição da sociedade feudal para o modo de produção capitalista, mudaram de forma igual e profunda as relações na esfera do trabalho. De agora em diante, o binômio trabalho/migração passará a caminhar de mãos dadas.
Disso decorre, em termos nacionais e internacionais, a formação de um gigantesco “exército de reserva”, mão de obra disposta a se deslocar de acordo com os ventos (leia-se investimentos) do capital, ou com as migalhas que caem da mesa dos donos da terra e dos meios de produção. Grande parte dos deslocamentos, tanto internos e regionais quanto internacionais, ocorre por motivos ligadas à falta de trabalho, nos lugares de origem, e à procura de um emprego para sobreviver, nos lugares de destino. Daí que, de forma temporária ou definitiva, milhares e milhões de trabalhadores e trabalhadoras passam a migrar de acordo com a demanda de trabalho. Evidente que tanto maior será esse “exército de reserva”, tanto mais baixo poderá descer o nível salarial. Por outro lado, de igual maneira que os produtos que saem das mãos e suor do trabalhador, a força de trabalho também se converte em mercadoria e, como tal, sujeita ao jogo de compra e venda. A leis cegas do mercado dirigem os passos dos migrantes, deixando pouca margem de manobra para as decisões pessoais ou familiares. Nessa qualidade de mercadoria, a multidão dos sem raiz, se pátria e sem rumo sujeita-se compulsoriamente ao deslocamento de um lado para outro. Em semelhante movimento em busca de trabalho e pão, não raro as etapas temporárias pavimentam a via para a migração definitiva.
Não podemos ignorar, ainda, a situação vulnerável dos refugiados (em fuga de conflitos, guerras, violência), estimados hoje em mais de 100 milhões de pessoas, bem como os refugiados climáticos, cujo número cresce na proporção direta do aquecimento global, com suas catástrofes. E mais grave, o tráfico de pessoas e órgãos humanos. Tampouco podemos ignorar os que se movem por razões profissionais e de estudo, como técnicos, marítimos, caminhoneiros, estudantes, aeroviários, missionários, turistas, entre outros.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Migração e história. Artigo de Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU