29 Novembro 2023
"A esperança de um resgate de humanidade ainda não está perdida, porque precisamente no Mediterrâneo, onde a Europa desmorona na sua própria civilização, há também uma Europa que renasce a partir de baixo".
O artigo é do padre Mattia Ferrari, assistente espiritual da ONG Mediterrânea Saving Humans, publicado por La Stampa, 28-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Deixe-me morrer!”: é o grito desesperado de mais um jovem torturado pela máfia da Líbia, no vídeo divulgado ontem à tarde. A vítima é um migrante subsaariano: como muitos outros, deixou a sua terra de origem devido à injustiça global e, como muitos outros, acabou nas mãos da máfia líbia, que o trancou num campo de concentração. Ali, a máfia líbia o tortura para enviar o vídeo à sua família, a fim de extorquir-lhe um resgate. O campo de concentração onde esse jovem está fica em Bani Walid, a mesma cidade onde foram filmados outros vídeos do horror, divulgados nas últimas semanas. O movimento social do qual os próprios migrantes são protagonistas, Refugees in Libya, continua a relançar esses vídeos para despertar as consciências da Europa, mas deste lado do mar tudo fica em silêncio.
A nossa responsabilidade nas torturas sofridas por esse rapaz e por todos os outros migrantes na Líbia é altíssima, porque, como a própria ONU reiterou no relatório publicado em parte no Avvenire graças a Nello Scavo, existe uma ligação direta entre a captura de migrantes realizada pela chamada Guarda costeira da Líbia, financiada pela Itália, e a deportação para os campos de concentração. A Itália é corresponsável por esse crime grave, especialmente porque, em 2017, decidiu montar e financiar a chamada Guarda Costeira da Líbia, trazendo para a Itália um dos principais chefões da máfia líbia, Bija, para fazê-lo sentar-se com os serviços secretos italianos. Posteriormente, a Itália sempre renovou aqueles acordos. A política nunca teve coragem de mudar e a sociedade civil nunca foi capaz de fazer sentir aos governantes uma pressão tal que os forçasse a parar de manter e financiar essa sistemática violência desumana e essa cumplicidade de fato com a máfia líbica.
Devemos nos perguntar: que país é aquele que não é capaz de reagir ao grito de dor dessas pessoas, torturadas por causa das nossas políticas?
A esperança de um resgate de humanidade ainda não está perdida, porque precisamente no Mediterrâneo, onde a Europa desmorona na sua própria civilização, há também uma Europa que renasce a partir de baixo. É a Europa que toma forma nas tantas pessoas ativistas vindas de todos os países do nosso continente que escolherem se opor concretamente a essa deriva, atuando na "frota civil", o conjunto de organizações da sociedade civil que salvam os migrantes de naufrágios e de impedimentos de entrada. Nessas pessoas, e naquelas que atuam ao lado de Refugees in Libya pela libertação dos migrantes dos campos de concentração líbicos, renasce a partir de baixo a Europa sonhada pelas gerações que a fundaram. Nessas práticas e nessas relações, como naquelas construídas por todos aqueles que vivem em cada cidade o acolhimento, toma forma o valor político da fraternidade.
O drama desta época é precisamente que esquecemos a fraternidade: tornamo-nos prisioneiros do individualismo que nos deixa cada vez mais assustados, cada vez mais raivosos, cada vez mais em competição. Existe uma ligação entre os sofrimentos dos migrantes nos campos de concentração da Líbia e os sofrimentos daqueles que são oprimidos de diversas maneiras pelos problemas sociais na Itália, sejam estudantes que sofrem cada vez mais em termos de saúde mental, os universitários que não têm acesso ao direito à moradia, os trabalhadores explorados, as pessoas que sofrem discriminação devido à sua identidade sexual ou o gênero, o ambiente devastado pela catástrofe ecológica e assim por diante: todos esses sofrimentos são a consequência de uma sociedade doente, que esqueceu a fraternidade.
Não haverá salvação se não nos tornarmos capazes de construir juntos uma nova sociedade, que assuma o valor político da fraternidade. Para ser autêntica, a fraternidade só se realiza se partir dos últimos. Enquanto o grito dos migrantes que chega dos campos de concentração líbicos não for ouvido, não haverá esperança. Então que se despertem as consciências de todos nós e nos tornemos capazes de entender que só se tivermos a coragem da empatia, do amor visceral, poderemos nos salvar.
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Os migrantes no horror líbico: “É melhor me deixar morrer”. Artigo de Mattia Ferrari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU