25 Novembro 2023
"A função da consciência que revela o mal que se aninha no coração humano é sempre central".
O artigo é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado por Il Sole 24 Ore, 19-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Era 6 de julho de 1415. Em Constança, a cidade alemã que se debruça sobre o lago de mesmo nome, estava se celebrando um concílio solicitado sobretudo pelo imperador Sigismundo e pelo antipapa João XXIII, o napolitano Baldassare Cossa. Havia-se chegado à décima quinta sessão que tinha decidido declarar culpado de heresia uma figura proeminente na vida eclesial da época, o boêmio Jan Hus, nascido por volta de 1370-1372. Despojado das vestes sacerdotais, vestido com o chapéu cônico dos hereges, foi mandado da catedral à praça pública onde a pira já havia sido montada. Convidado em vão a renegar à sua doutrina, despido, proclamara mais uma vez a sua inocência teológica: “Deus é minha testemunha de que nunca ensinei aquilo de que me acusaram falsas testemunhas. Morrerei com alegria pela verdade do Evangelho que preguei e ensinei”. As chamas o envolveram; suas cinzas foram espalhadas no Reno. Em sua curta existência, mesmo sob a influência de outro reformador radical, o inglês John Wyclif, Hus havia sido um pregador aclamado que usava a língua tcheca e que atacava sem medo a corrupção e o mundanismo da instituição eclesiástica, invocando uma autêntica conversão ao Evangelho segundo o modelo de Cristo humilde e pobre.
A cristandade europeia estava vivendo uma grave crise com duas obediências papais, a de Avignon e a romana, à qual deveria pôr remédio o Concílio de Constança. A voz forte e clara de Hus, apesar de todas as censuras e excomunhões a que foi submetido, estava se alargando a partir de Praga, ao ponto de constituir uma pedra no sapato de estruturas e interesses codificados. A sua ansiedade pela regeneração da espiritualidade cristã tinha como centro a verdade de Deus e da moral que tem sua fonte na palavra de Cristo. A mediação da autoridade é importante, mas não é o último tribunal que, em vez disso, é representado pela Bíblia e pelo conhecimento.
Para melhor aprofundar o pensamento do reformador mártir, naturalmente caro à sucessiva irrupção do protestantismo que traduzirá os escritos hussianos com o apoio entusiástico de Lutero, está agora disponível um texto muito original. Foi preparado por um conhecido historiador, Stefano Cavallotto, e uma historiadora da filosofia Anežka Žáková, e é a primeira versão italiana do tcheco de um tratado cujos dez capítulos são todos marcados por um apelo inicial de matriz bíblica: “Ouve, filha, e olha, e inclina os teus ouvidos" (o título principal em tcheco é Dcerka, "Filha"). Estamos entre os 1412 e 1414 e o mestre pregador Hus, já exilado pelas autoridades de Praga, muda-se de aldeia em aldeia no sul da Boêmia e com a sua palavra dirige-se a um público exclusivamente feminino, com uma escolha então surpreendente.
Jan Hus, “Figliola, ascolta”. Dalla Riforma suggestioni per donne e uomini di ieri e di oggi, Paulinas, 204 páginas, 30€ | Foto: Divulgação
Talvez fossem as chamadas “beguinas”, mulheres que viviam em comunidades dedicadas à oração e à caridade, com sua própria autonomia. Os temas são múltiplos, mas quase se unem numa espécie de antropologia à luz da fé cristã. A função da consciência que revela o mal que se aninha no coração humano é sempre central.
Os curadores escrevem: “A mensagem subjacente a todos os dez capítulos é a importância do conhecimento de si mesmos para os fins da salvação. O ser humano tem dentro de si o retrato do divino, um espelho vivo do Senhor dentro de sua alma que, à semelhança da Trindade, está dividida em três partes – memória, razão e vontade – por meio das quais lembrar Deus, conhecê-lo e desejá-lo”. A esse ponto, um complemento ideal e sugestivo para conhecer o pensamento hussita – aliás, esplendidamente delineado na introdução geral dessa edição – consiste nas dez cartas finais que o “Mestre Jan Hus, fraco sacerdote”, como ele próprio assina, endereça a vários destinatários, a vários amigos e discípulos, aos cidadãos de Praga, a algumas virgens que vivem em comunidade e a “uma nobre viúva contra a dança e os jogos."
Esta última carta, embora registrando a atmosfera moralista da época (mas também condena o jogo de azar que reduz os camponeses à miséria), revela a profunda sensibilidade social do reformador que vem de origens humildes. Ele denuncia até o destino das mulheres seduzidas ou violadas, demonstrando uma preocupação sincera, mesmo que expressa numa linguagem um pouco constrangedora para nós: a filha, a irmã, a noiva, a menina “são muito superiores, mais preciosas que todas as cabras, as vacas e os cavalos, ou de qualquer bem, mesmo o mais precioso, que exista no mundo".
A figura de Hus, desfraldada no passado como estandarte nacionalista e confessional, é agora também considerada em âmbito católico segundo uma perspectiva bastante diferente. De fato, para além de certas retomadas setoriais como aquela da historiografia marxista, que a colocou no quadro da “revolução burguesa”, é significativa a voz autocrítica de dois pontífices, João Paulo II em 1999 e o Papa Francisco em 2015, que indicaram o reformador boêmio como um apaixonado aficionado da pureza espiritual e humana da Igreja, reconhecendo a culpa pela sua cruel e infame execução capital. A leitura de muitas páginas desse seu tratado "predicado" será o atestado mais vívido e transparente do seu amor sincero pela verdade, pela moralidade e, sobretudo, por Cristo e a sua palavra.
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O reformador ao lado das mulheres. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU