26 Outubro 2023
“Sob o tecnofeudalismo, os reguladores pouco podem fazer por nós, porque perdemos a propriedade total das nossas mentes. Todo proletário se torna um proletário das nuvens durante o horário de trabalho e um servo das nuvens no resto do tempo. Cada lutador autônomo se transforma em um vassalo e em um servo das nuvens. Enquanto o capital privado nos despoja de todos os ativos físicos que nos rodeiam, o capital da nuvem dedica-se a despojar-nos dos nossos ativos mentais”. A reflexão é de Yanis Varoufakis, em artigo publicado por El Economista/Project Syndicate, 23-10-2023. A tradução é do Cepat.
Yanis Varoufakis é ex-ministro das Finanças da Grécia, líder do partido MeRA25 e professor de Economia na Universidade de Atenas.
As sociedades modernas tiveram de lidar com um poder de mercado exorbitante durante mais de um século. Mas será que o poder das Big Techs sobre nós é novo? Serão o Google, Amazon ou Meta intrinsecamente diferentes da Standard Oil na década de 1920, da IBM na década de 1970 ou do Walmart mais recentemente?
Caso não forem, talvez possamos regular as Big Techs através de uma legislação que remonta à Lei Antitruste Sherman dos Estados Unidos de 1890. Lina Khan, presidente da Comissão Federal de Comércio dos EUA, está corajosamente tentando fazer exatamente isso.
Infelizmente, não vai funcionar. As Big Techs são tão profundamente diferentes que não podem ser regulamentadas como nenhum dos trustes, cartéis ou conglomerados que encontramos até agora.
O retrato que Adam Smith faz do capitalismo como uma cidade comercial onde os açougues, as padarias e as cervejarias familiares promovem o interesse público através de uma concorrência aberta e moralmente fundamentada não tem qualquer semelhança com as economias modernas. Praticamente todas as indústrias – desde as estradas-de-ferro, energia e telecomunicações até sabão em pó, automóveis e produtos farmacêuticos – são um cartel de conglomerados gigantescos cujo controle só ocasionalmente é afrouxado quando os políticos reúnem a vontade de promulgar e fazer cumprir a legislação antitruste, por vezes até usando-a para quebrá-los.
Por que o mesmo não pode ser feito com as Big Techs? O que as torna únicas?
A regulamentação antitruste foi originalmente concebida para evitar a manipulação de preços por parte de megaempresas que restringiam a oferta até que o preço atingisse um nível que maximizasse os seus lucros monopolistas, à custa dos consumidores e dos trabalhadores (cujo emprego cai junto com a produção). Obviamente, isso é irrelevante no caso dos serviços das Big Techs, que são gratuitos e não têm restrições de oferta.
Quando o presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, liderou o esforço para desmembrar a Standard Oil, foi tecnicamente simples, mas politicamente corajoso. Mas como se pode desmembrar a Amazon, Facebook, Paypal ou mesmo Airbnb, Tesla ou Starlink? Se o governo tentasse, enfrentaria usuários furiosos para quem a natureza universal destas plataformas é a razão pela qual as utilizam.
Serviços gratuitos significam que os usuários não são os clientes; essa função é reservada a empresas que precisam usar os algoritmos das grandes tecnologias para chegar aos usuários dos serviços. Quando a Amazon ou o Facebook cobram dos vendedores um braço e uma perna por esse privilégio (extraindo deles uma forma de aluguel na nuvem), os reguladores enfrentam um enigma político impossível de resolver: devem remar contra os ventos da opinião pública (os milhões de usuários que as grandes empresas de tecnologia alistam na sua causa) para proteger os capitalistas destes senhores tecnofeudais, ou cloudalistas, como os chamo no meu recente livro Technofeudalism: What Killed Capitalism. Esta é uma ótima pergunta. Além do mais, essa nem é a principal razão por trás do excepcional poder das Big Techs.
Não se deve confundir Big Tech com High Tech. Os fabricantes de robôs industriais como ABB, Kuka, Kawasaki e Yaskawa produzem esplêndidos milagres tecnológicos, mas não têm o poder que as Big Techs têm sobre nós. Nas décadas de 1960 e 1970, os computadores da IBM tinham um domínio absoluto sobre o governo e o setor privado, fornecendo-lhes máquinas de última geração (para a época). A AT&T também detinha um monopólio virtual sobre os serviços telefônicos, até ser dissolvida em 1984. Mas nem a IBM nem a AT&T tinham nada parecido com o controle que as Big Tech tinham sobre nós.
Uma das razões é que as plataformas baseadas na Internet, como o WhatsApp e o TikTok, beneficiam-se de enormes efeitos de rede: com cada novo usuário que atraem, os serviços que oferecem tornam-se mais valiosos para os usuários existentes. Os efeitos de rede da AT&T dependiam de cobrar mais pelas chamadas para clientes de outras empresas de telecomunicações, uma vantagem que o regulador eliminou facilmente ao proibir as operadoras de cobrarem mais pelas chamadas para clientes de outras empresas.
Mas como podem os reguladores anular os efeitos de rede do X ou do Facebook? A interoperabilidade significaria permitir que você pudesse migrar perfeitamente todas as suas postagens, fotos, vídeos, amigos e seguidores do X e do Facebook para outra plataforma (por exemplo, Mastodon), uma façanha técnica praticamente impossível, em oposição à simples tarefa de permitir que a AT&T ligue para os clientes da Verizon sem nenhum custo adicional.
Mesmo a dificuldade de impor a interoperabilidade não é a maior fonte de poder das Big Tech. No início da década de 1970, a IBM monopolizou os meios de computação de uma forma que pouco diferia do domínio energético da Standard Oil ou do quase monopólio do transporte privado de Detroit.
O que diferenciava as Big Tech da IBM era uma estupenda singularidade. Não, suas máquinas não se tornaram inteligentes, no estilo Terminator. Elas fizeram algo mais interessante: transformaram-se, com a ajuda de elegantes algoritmos, de meios de computação produzidos em meios de modificação de comportamento.
Como consumidores, o capital da nuvem das Big Techs (como Alexa, Siri, Google Assistant) nos permite treiná-lo para nos oferecer boas recomendações sobre o que comprar. Uma vez que o capital da nuvem tiver a nossa confiança, ele nos vende diretamente o que seleciona para nós, ignorando todos os mercados.
Os proprietários do capital da nuvem, os cloudalistas, cobram desses produtores vassalos aluguéis da nuvem enquanto nós, os usuários, trabalhamos de graça (a cada rolagem, curtida, compartilhamento ou revisão) para reabastecer seu capital da nuvem. Quanto aos proletários nas fábricas e armazéns, também eles estão ligados ao mesmo capital na nuvem, com dispositivos portáteis ou de pulso que os levam, como robôs, a trabalhar mais rapidamente sob o olhar atento do algoritmo.
Sob o tecnofeudalismo, os reguladores pouco podem fazer por nós, porque perdemos a propriedade total das nossas mentes. Todo proletário se torna um proletário das nuvens durante o horário de trabalho e um servo das nuvens no resto do tempo. Cada lutador autônomo se transforma em um vassalo e em um servo das nuvens. Enquanto o capital privado nos despoja de todos os ativos físicos que nos rodeiam, o capital da nuvem dedica-se a despojar-nos dos nossos ativos mentais.
Então o que deveríamos fazer? Para possuirmos nossas mentes individualmente, devemos possuir coletivamente o capital da nuvem. É a única forma de convertermos o capital da nuvem, de um meio produzido para a modificação do comportamento, num meio produzido para a colaboração e a emancipação humana. Pode parecer loucura. Mas é menos utópico do que depositar as nossas esperanças na regulamentação governamental das Big Techs.
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As Big Techs não podem ser regulamentadas. Artigo de Yanis Varoufakis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU