03 Outubro 2023
Depois do quarteto de 2016, temos agora um pentágono de cardeais que apresentam suas dubia em relação ao magistério do Papa Francisco. Ao lado dos protagonistas do primeiro grupo, os cardeais Burke e Brandmüller, desta vez também entram em campo os cardeais Sandoval, Zen e Sarah. No dia 10 de julho enviaram para Francisco as dubia (da antropologia ao quarto sacramento, passando pela bênção dos casais homossexuais e pela ordenação das mulheres).
O papa responde, mas os cinco cardeais consideram que o que Francisco escreve nada mais faz do que confirmar a sua posição - decidindo, portanto, reformular as mesmas dubia apresentadas anteriormente para corrigir a impropriedade do magistério do Papa (22 de julho). Essa segunda versão permanece sem reação de parte do Papa Francisco, pelo que os cinco cardeais são obrigados a tornar tudo público com uma notificação enviada aos fiéis leigos da Igreja Católica (2 de outubro) − precisamente nos dias em que as mulheres e os padres sinodais estão em retiro espiritual em vista do início do Sínodo sobre a sinodalidade da Igreja na quarta-feira, 4 de outubro.
Os textos abaixo são publicados por Settimana News, 02-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quanto à afirmação de que a Revelação Divina deve ser reinterpretada com base nas mudanças culturais e antropológicas em voga.
Depois das afirmações de alguns bispos, que não foram nem corrigidas nem retratadas, pergunta-se se na Igreja a Revelação Divina deva ser reinterpretada de acordo com as mudanças culturais do nosso tempo e de acordo com a nova visão antropológica que essas mudanças promovem; ou se a Revelação Divina seria vinculante para sempre, imutável e, portanto, não deve ser contradita, segundo os ditames do Concílio Vaticano II, que a Deus que revela é devida “a obediência da fé” (Dei Verbum 5); que o que é revelado para a salvação de todos deve permanecer “para sempre íntegro” e vivo, e ser “transmitido a todas as gerações” (7) e que o progresso da compreensão não implica nenhuma mudança da verdade das coisas e das palavras, porque o a fé foi “transmitida uma vez para sempre” (8), e o Magistério não é superior à palavra de Deus, mas apenas ensina o que foi transmitido (10).
Sobre a afirmação de que a prática generalizada de abençoar as uniões de pessoas do mesmo sexo estaria de acordo com a Revelação e o Magistério (CIC 2357).
Segundo a Revelação Divina, atestada na Sagrada Escritura, que a Igreja “por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente” (Dei Verbum 10): “No princípio” Deus criou o homem à sua imagem, homem e mulher, os criou e abençoou, para que fossem fecundos (cf. Gn 1,27-28), de forma que o apóstolo Paulo ensina que negar a diferença sexual é a consequência da negação do Criador (Rm 1,24-32). Pergunta-se: pode a Igreja derrogar esse “princípio”, considerando-o, em contraste com o que é ensinado pela Veritatis splendor 103, como um ideal simples, e aceitando como um “bem possível” situações objetivamente pecaminosas, como as uniões com pessoas do mesmo sexo, sem desrespeitar a doutrina revelada?
A respeito da afirmação de que a sinodalidade é uma “dimensão constitutiva da Igreja” (Constituição Apostólica Episcopalis Communio 6), de modo que a Igreja seria por sua natureza sinodal.
Dado que o Sínodo dos Bispos não representa o colégio episcopal, mas é um mero órgão consultivo do Papa, uma vez que os bispos, como testemunhas da fé, não podem delegar a sua confissão da verdade, pergunta-se se a sinodalidade pode ser o critério regulador supremo do governo permanente da Igreja sem distorcer a sua estrutura constitutiva desejada pelo seu Fundador, pela qual a suprema e plena autoridade da Igreja é exercida tanto pelo Papa em virtude do seu cargo como pelo colégio dos bispos juntamente com o seu chefe, o Romano Pontífice (Lumen gentium 22).
A respeito do apoio de pastores e teólogos à teoria de que “a teologia da Igreja mudou” e, portanto, que a ordenação sacerdotal poderia ser conferida às mulheres.
Em decorrência das declarações de alguns prelados, que não foram nem corrigidas nem retratadas, segundo as quais a teologia da Igreja e o significado da Missa teriam mudado com o Concílio Vaticano II, pergunta-se se os ditames do Concílio Vaticano II ainda são válidos, que “o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial diferem essencialmente e não apenas em grau”(Lumen Gentium 10) e que os presbíteros, em virtude do “poder sagrado da ordem para oferecer o sacrifício e perdoar os pecados” (Presbyterorum Ordinis 2), agem em nome e na pessoa de Cristo mediador, por meio do qual e tornado perfeito o sacrifício espiritual dos fiéis? Além disso, pergunta-se se ainda é válido o ensinamento da carta apostólica de São João Paulo II Ordinatio Sacerdotalis, que ensina como verdade a ser mantida definitivamente a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, de forma que esse ensinamento não está mais sujeito a mudanças nem à livre discussão dos pastores ou dos teólogos.
A respeito da afirmação “o perdão é um direito humano” e a insistência do Santo Padre no dever de absolver a todos e sempre, para o qual o arrependimento não seria condição necessária para a absolvição sacramental.
Pergunta-se se ainda está em vigor o ensinamento do Concílio de Trento, segundo o qual para a validade da confissão sacramental é necessária a contrição do penitente, que consiste em detestar o pecado cometido com a intenção de não voltar a pecar (Sessão XIV, Capítulo IV: DH 1676), de modo que o sacerdote deve adiar a absolvição quando estiver evidente que essa condição não é atendida.
Cidade do Vaticano, 10 de julho de 2023
Card. Valter Brandmüller
Card. Juan Sandoval Íñiguez
Card. José Zen Ze-Kiun, S.D.B.
Card. Raymond Leo Burke
Card. Robert Sara
A Sua Santidade Francisco Sumo Pontífice
Beatíssimo Padre,
Estamos muito gratos pelas respostas que gentilmente nos ofereceu. Gostaríamos, primeiro, de esclarecer que, se vos apresentamos essas perguntas, não é por medo do diálogo com os homens do nosso tempo, nem das perguntas que nos poderiam nos fazer sobre o Evangelho de Cristo. De fato, estamos convencidos, como Vossa Santidade, de que o Evangelho traz plenitude à vida humana e oferece respostas a todas as nossas perguntas. A preocupação que nos move é outra: preocupa-nos ver que há pastores que duvidam da capacidade do Evangelho de transformar os corações dos homens e acabam por lhes propor não mais a sã doutrina, mas sim “ensinamentos segundo os seus próprios desejos” (cf. 2Tm 4,3). Além disso, preocupa-nos que não se compreenda que a misericórdia de Deus não consiste em cobrir os nossos pecados, mas é muito maior, pois nos torna capazes de responder ao seu amor observando os seus mandamentos, ou seja, converter-nos e crer no Evangelho. (cf. Mc 1, 15)
Com a mesma sinceridade com que Vós nos respondestes, devemos acrescentar que as Vossas respostas não resolveram as dúvidas que havíamos levantado, mas antes as aprofundaram. Sentimo-nos, portanto, no dever de propor novamente, reformulando-as, essas perguntas à Vossa Santidade, que como sucessor de Pedro é encarregado pelo Senhor de confirmar os Vossos irmãos na fé. Isso é ainda mais urgente tendo em vista o iminente Sínodo, que muitos querem utilizar para negar a doutrina católica precisamente nas questões sobre as quais vertem as nossas dubia. Propomos, portanto, novamente as nossas perguntas, para que possam ser respondidas com um simples “sim” ou “não”.
(1) Vossa Santidade insiste que a Igreja pode aprofundar a sua compreensão do depósito da fé. Isso é efetivamente o que a Dei Verbum 8 ensina e pertence à doutrina católica. A Vossa resposta, entretanto, não reflete a nossa preocupação. Muitos cristãos, incluindo pastores e teólogos, defendem hoje que as mudanças culturais e antropológicas do nosso tempo deveriam levar a Igreja a ensinar o oposto do que sempre ensinou. Isso diz respeito a questões essenciais, e não secundárias, para a nossa salvação, como a confissão de fé, as condições subjetivas de acesso aos Sacramentos e a observância da lei moral. Queremos, portanto, reformular a nossa dubium: é possível que a Igreja hoje ensine doutrinas contrárias às que anteriormente ensinava em matéria de fé e de moral, tanto pelo Papa ex cathedra, como nas definições de um Concílio Ecumênico, e no magistério ordinário universal dos bispos espalhados no mundo (cf.Lumen gentium 25)?
(2) Vossa Santidade insistiu que não pode haver confusão entre o casamento e outros tipos de uniões de natureza sexual e que, portanto, deve ser evitado qualquer rito ou bênção sacramental de casais homossexuais, que daria origem a tal confusão. A nossa preocupação, porém, é outra: preocupamo-nos que a bênção dos casais homossexuais possa, de qualquer forma, criar confusão, não só porque possa fazê-la parecer semelhantes ao matrimônio, mas também porque os atos homossexuais seriam apresentados praticamente como um bem, ou pelo menos como o bem possível que Deus pede às pessoas no seu caminho rumo a Ele. Reformulamos, portanto, a nossa dúvida: é possível que em algumas circunstâncias um pastor possa abençoar uniões entre pessoas homossexuais, sugerindo assim que o comportamento homossexual como tal não seria contrário à lei de Deus e ao caminho da pessoa em direção a Deus? Ligada a essa dubium é necessário levantar outra: continua a ser válido o ensinamento sustentado pelo magistério universal ordinário, segundo o qual todo ato sexual fora do casamento, e em particular os atos homossexuais, constitui um pecado objetivamente grave contra a lei de Deus, independentemente das circunstâncias em que é realizado e da intenção com que é realizado?
(3) Vós insististes no fato de que existe uma dimensão sinodal da Igreja, na qual todos, incluindo os fiéis leigos, são chamados a participar e a fazer ouvir a sua voz. A nossa dificuldade, porém, é outra: hoje o futuro Sínodo sobre a sinodalidade está sendo apresentado como se, em comunhão com o Papa, representasse a Suprema Autoridade da Igreja. No entanto, o Sínodo dos Bispos é um órgão consultivo do Papa, não representa o colégio episcopal e não pode dirimir as questões nele tratadas nem emanar decretos sobre as mesmas, a menos que, em casos específicos, o Romano Pontífice, a quem compete ratificar as decisões do Sínodo, não lhe tenha expressamente concedido o poder deliberativo (cf. cân. 343 C.I.C.). Trata-se de um ponto decisivo porque não envolver o colégio episcopal em questões como as que o próximo Sínodo pretende levantar, que tocam a própria constituição da Igreja, iria justamente contra a própria raiz daquela sinodalidade, que se afirma querer promover. Permita-nos, portanto, reformular a nossa dubium: o Sínodo dos Bispos que se realizará em Roma e que inclui apenas uma representação selecionada de pastores e de fiéis, exercerá, nas questões doutrinais ou pastorais sobre as quais será chamado a se expressar, a Suprema Autoridade da Igreja, que cabe exclusivamente ao Romano Pontífice e, una cum capite, ao Colégio dos Bispos (cf. cân. 336 C.I.C.)?
(4) Na Vossa resposta, Vossa Santidade esclareceu que a decisão de São João Paulo II em Ordinatio sacerdotalis deve ser mantida definitivamente, e acrescentou justamente que é necessário compreender o sacerdócio, não em termos de poder, mas em termos de serviço, para entender corretamente a decisão de Nosso Senhor de reservar as ordens sagradas apenas aos homens. Por outro lado, no último ponto da Vossa resposta foi acrescentado que a questão ainda pode ser aprofundada. Estamos preocupados que alguém possa interpretar essa afirmação no sentido de que a questão ainda não foi definitivamente decidida. De fato, São João Paulo II afirma na Ordinatio sacerdotalis que essa doutrina foi ensinada infalivelmente pelo magistério ordinário e universal e, portanto, pertence ao depósito da fé. Essa foi a resposta da Congregação para a Doutrina da Fé a uma dubium levantada sobre a carta apostólica, e essa resposta foi aprovada pelo próprio João Paulo II. Devemos, portanto, reformular a nossa dubium: a Igreja poderá no futuro ter o poder de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, contradizendo assim que a reserva exclusiva desse sacramento aos batizados do sexo masculino pertença à própria substância do Sacramento da Ordem, que a Igreja não pode mudar?
(5) Finalmente, Vossa Santidade confirmou o ensinamento do Concílio de Trento de que a validade da absolvição sacramental exige o arrependimento do pecador, o que inclui a resolução de não voltar a pecar. E convidou-nos a não duvidar da infinita misericórdia de Deus. Gostaríamos de reiterar que a nossa pergunta não surge da dúvida sobre a grandeza da misericórdia de Deus, mas, pelo contrário, surge da nossa conscientização de que essa misericórdia é tão grande que nos torna capazes de nos convertermos a Ele, de confessarmos a nossa culpa e de vivermos como Ele nos ensinou. Por sua vez, alguém poderia interpretar a Vossa resposta como se o simples fato de se aproximar da confissão já fosse uma condição suficiente para receber a absolvição, uma vez que poderia incluir implicitamente a confissão dos pecados e o arrependimento. Gostaríamos, portanto, de reformular a nossa dubium: pode receber validamente a absolvição sacramental um penitente que, embora admitindo um pecado, se recusasse a assumir, de qualquer forma, o propósito de não voltar a cometê-lo novamente?
Cidade do Vaticano, 22 de julho de 2023
Card. Valter Brandmüller
Card. Juan Sandoval Íñiguez
Card. José Zen Ze-kiun
Card. Raymond Leo Burke
Card. Robert Sara
Irmãos e irmãs em Cristo,
Nós, membros do Sagrado Colégio dos Cardeais, tendo presente o dever de todos os fiéis de “manifestar aos sagrados Pastores o seu pensamento sobre o que diz respeito ao bem da Igreja” (cân. 212 § 3) e, sobretudo, tendo presente a responsabilidade dos Cardeais que “assistem ao Romano Pontífice... como indivíduos... no cuidado especialmente cotidiano da Igreja universal” (cân. 349), consideradas várias declarações de alguns altos Prelados inerentes à celebração do próximo Sínodo dos Bispos, manifestamente contrárias à constante doutrina e disciplina da Igreja, e que geraram e continuam a gerar grandes confusões e erros entre os fiéis e outras pessoas de boa vontade, manifestamos a nossa mais profunda preocupação ao Romano Pontífice. Recorrendo à comprovada práxis de submissão de dubias [perguntas] a um superior para lhe dar a oportunidade de esclarecer, por meio de suas responsa [respostas], a doutrina e a disciplina da Igreja, com a nossa carta de 10 de julho de 2023 submetemos ao Papa Francisco cinco dubia, cuja cópia está anexada. O Papa Francisco respondeu-nos com uma carta datada de 11 de julho de 2023.
Tendo estudado a referida carta, que não seguia a práxis das responsa ad dúbia [respostas a perguntas], reformulamos as dubia para suscitar uma resposta clara, baseada na perenes doutrina e disciplina da Igreja. Com a nossa carta de 21 de agosto de 2023, submetemos ao Romano Pontífice as reformuladas dubia, cuja cópia está anexada. Até agora não recebemos resposta.
Dada a gravidade da matéria das dubia, especialmente tendo em vista a já mencionada iminente sessão do Sínodo dos Bispos, julgamos ser nosso dever informar a vocês, fiéis (cân. 212 § 3), para que não estejam expostos a confusão, erro e desânimo, convidando-os a rezar pela Igreja universal e, em particular, pelo Romano Pontífice, para que o Evangelho seja ensinado cada vez mais claramente e seguido cada vez mais fielmente.
Roma, 2 de outubro de 2023
Seus em Cristo,
Card. Valter Brandmüller
Card. Juan Sandoval Íñiguez
Card. José Zen Ze-kiun
Card. Raymond Leo Burke
Card. Robert Sara
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O Sínodo e as dubia dos cardeais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU