03 Outubro 2023
O Papa Francisco respondeu a cinco “dubia” enviadas a ele em julho passado pelos cardeais Walter Brandmüller, Raymond Leo Burke, Juan Sandoval Íñiguez, Robert Sarah e Joseph Zen Ze-kiun.
Os cardeais enviaram as perguntas ao Dicastério para a Doutrina da Fé em 10 de julho de 2023 e receberam a resposta do papa no dia seguinte, 11 de julho.
O novo prefeito do dicastério, Dom Víctor Manuel Fernández, que iniciou seus trabalhos em setembro, enviou uma carta ao papa, solicitando a autorização de Francisco para “citar alguns parágrafos de tais respostas a fim de um melhor esclarecimento de questões que lhe são submetidas”. Com a autorização concedida em audiência com o novo cardeal no dia 25 passado, o site do dicastério publicou trechos das respostas no dia 02 de outubro.
Ao introduzir suas respostas, o papa escreve: “Queridos irmãos, embora nem sempre me pareça prudente responder às perguntas dirigidas diretamente à minha pessoa, e seria impossível responder a todas elas, neste caso me pareceu adequado fazer isso, devido à proximidade do Sínodo”.
O texto original das perguntas e respostas, em espanhol, encontra-se aqui.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
1) Dubium sobre a afirmação de que se deve reinterpretar a Divina Revelação com base nas mudanças culturais e antropológicas em voga.
Após as afirmações de alguns bispos, que não foram nem corrigidas nem retratadas, pergunta-se se, na Igreja, a Divina Revelação deve ser reinterpretada segundo as mudanças culturais do nosso tempo e segundo a nova visão antropológica que essas mudanças promovem; ou se a Divina Revelação é vinculante para sempre, imutável e, portanto, não pode ser contraditada, segundo o que foi ditado pelo Concílio Vaticano II, que a Deus que revela é devida “a obediência da fé” (Dei Verbum 5); que o que é revelado para a salvação de todos deve permanecer “para sempre íntegro” e vivo, e ser “transmitido a todas as gerações” (7), e que o progresso da compreensão não implica nenhuma mudança da verdade das coisas e das palavras, porque a fé foi “transmitida de uma vez por todas” (8), e o Magistério não é superior à palavra de Deus, mas ensina somente o que foi transmitido (10).
Resposta do Papa Francisco:
a) A resposta depende do significado que vocês atribuem à palavra “reinterpretar”. Se for entendida como “interpretar melhor”, a expressão é válida. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que é necessário que, com a tarefa dos exegetas – e eu acrescento dos teólogos – “o juízo da Igreja vá amadurecendo” (Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, 12).
b) Portanto, se é bem verdade que a divina Revelação é imutável e sempre vinculante, a Igreja deve ser humilde e reconhecer que ela nunca esgota sua insondável riqueza e precisa crescer em sua compreensão.
c) Por conseguinte, amadurece também na compreensão do que ela mesma afirmou em seu Magistério.
d) As mudanças culturais e os novos desafios da história não modificam a Revelação, mas podem, sim, nos estimular a expressar melhor alguns aspectos de sua transbordante riqueza que sempre oferece mais.
e) É inevitável que isso possa levar a uma melhor expressão de algumas afirmações passadas do Magistério, e de fato assim ocorreu ao longo da história.
f) Por outro lado, é verdade que o Magistério não é superior à Palavra de Deus, mas também é verdade que tanto os textos das Escrituras quanto os testemunhos da Tradição precisam de uma interpretação que permita distinguir sua substância perene dos condicionamentos culturais. Isso é evidente, por exemplo, nos textos bíblicos (como Ex 21, 20-21) e em algumas intervenções magisteriais que toleravam a escravidão (cf. Nicolau V, Bula Dum Diversas, 1452). Não é um tema menor, dada sua íntima conexão com a verdade perene da dignidade inalienável da pessoa humana. Esses textos precisam de uma interpretação. O mesmo vale para algumas considerações do Novo Testamento sobre as mulheres (1Cor 11,3-10; 1Tm 2,11-14) e para outros textos das Escrituras e testemunhos da Tradição que hoje não podem ser repetidos materialmente.
g) É importante destacar que o que não pode mudar é o que foi revelado “para a salvação de todos” (Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, 7). Por isso, a Igreja deve discernir constantemente entre o que é essencial para a salvação e o que é secundário ou está conectado menos diretamente com esse objetivo. A esse respeito, gostaria de recordar o que São Tomás de Aquino afirmava: “Quanto mais se desce ao particular, mais aumenta a indeterminação” (Summa Theologiae 1-1 1, q. 94, art. 4).
h) Finalmente, uma única formulação de uma verdade nunca poderá ser entendida de um modo adequado se for apresentada solitariamente, isolada do rico e harmonioso contexto de toda a Revelação. A “hierarquia das verdades” também implica situar cada uma delas em adequada conexão com as verdades mais centrais e com a totalidade do ensinamento da Igreja. Isso finalmente pode abrir espaço para diferentes modos de expor a mesma doutrina, mesmo que “àqueles que sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho” (Evangelii gaudium, 40). Cada linha teológica tem seus riscos, mas também suas oportunidades.
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2) Dubium sobre a afirmação de que a prática difusa da bênção das uniões com pessoas do mesmo sexo estaria de acordo com a Revelação e o Magistério (CCC 2357).
Segundo a Divina Revelação, atestada na Sagrada Escritura, que a Igreja, “por divino mandato e com a assistência do Espírito Santo, piedosamente escuta, santamente conserva e fielmente expõe” (Dei Verbum 10): “No princípio” Deus criou o homem à sua imagem, macho e fêmea os criou e os abençoou, para que fossem fecundos (cf. Gn 1,27-28), razão pela qual o Apóstolo Paulo ensina que negar a diferença sexual é a consequência da negação do Criador (Rm 1,24-32). Pergunta-se: pode a Igreja derrogar esse “princípio”, considerando-o, em contraste com o que ensina a Veritatis splendor 103, como um simples ideal e aceitando como “bem possível” situações objetivamente pecaminosas, como as uniões com pessoas do mesmo sexo, sem abrir mão da doutrina revelada?
Resposta do Papa Francisco:
a) A Igreja tem uma concepção muito clara sobre o matrimônio: uma união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta a gerar filhos. Só essa união pode ser chamada de “matrimônio”. Outras formas de união só realizam isso “de modo parcial e análogo” (Amoris laetitia 292), razão pela qual não podem ser chamadas estritamente de “matrimônio”.
b) Não é uma mera questão de nomes, mas a realidade que chamamos de matrimônio tem uma constituição essencial única que exige um nome exclusivo, não aplicável a outras realidades. Sem dúvida, é muito mais do que um mero “ideal”.
c) Por essa razão, a Igreja evita todo tipo de rito ou de sacramental que possa contradizer essa convicção e dar a entender que se reconhece como matrimônio algo que não o é.
d) Não obstante, no trato com as pessoas, não se deve perder a caridade pastoral, que deve atravessar todas as nossas decisões e atitudes. A defesa da verdade objetiva não é a única expressão dessa caridade, que também é feita de amabilidade, de paciência, de compreensão, de ternura, de encorajamento. Por conseguinte, não podemos nos constituir como juízes que só negam, rejeitam, excluem.
e) Por isso, a prudência pastoral deve discernir adequadamente se existem formas de bênção, solicitadas por uma ou por várias pessoas, que não transmitam uma concepção equivocada de matrimônio. Porque, quando se pede uma bênção, está se expressando um pedido de auxílio a Deus, uma súplica para poder viver melhor, uma confiança em um Pai que pode nos ajudar a viver melhor.
f) Por outro lado, embora haja situações que, de um ponto de vista objetivo, não são moralmente aceitáveis, a mesma caridade pastoral exige que não tratemos simplesmente como “pecadores” outras pessoas cuja culpabilidade ou responsabilidade podem ser atenuadas por diversos fatores que influenciam na imputabilidade subjetiva (cf. São João Paulo II, Reconciliatio et Paenitentia, 17).
g) As decisões que podem fazer parte da prudência pastoral em determinadas circunstâncias não devem necessariamente se converter em uma norma. Ou seja, não é conveniente que uma Diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial habilitem constantemente e de modo oficial procedimentos ou ritos para todo tipo de assuntos, pois tudo “aquilo que faz parte dum discernimento prático de uma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma”, porque isso “geraria uma casuística insuportável” (Amoris laetitia 304). O Direito Canônico não deve nem pode abranger tudo, muito menos as Conferências Episcopais devem pretender fazer isso com seus documentos e protocolos variados, porque a vida da Igreja flui por muitos canais além dos normativos.
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3) Dubium acerca da afirmação de que a sinodalidade é “dimensão constitutiva da Igreja” (Constituição Apostólica Episcopalis Communio 6), de modo que a Igreja seria por sua natureza sinodal.
Já que o Sínodo dos bispos não representa o colégio episcopal, mas é um mero órgão consultivo do papa, enquanto os bispos, como testemunhas da fé, não podem delegar sua confissão da verdade, pergunta-se se a sinodalidade pode ser critério regulamentar supremo do governo permanente da Igreja sem subverter sua estrutura constitutiva desejada pelo seu Fundador, para o qual a suprema e plena autoridade da Igreja é exercita tanto pelo papa, por força de seu ofício, quanto pelo colégio dos bispos junto com sua cabeça, o Romano Pontífice (Lumen gentium 22).
Resposta do Papa Francisco:
a) Embora vocês reconheçam que a suprema e plena autoridade da Igreja é exercita tanto pelo papa devido a seu ofício quanto pelo colégio dos bispos com sua cabeça, o Romano Pontífice (cf. Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, 22), com estas dubia, vocês mesmos manifestam sua necessidade de participar, de opinar livremente e de colaborar, e assim estão exigindo alguma forma de “sinodalidade” no exercício do meu ministério.
b) A Igreja é “mistério de comunhão missionária”, mas essa comunhão não é só afetiva ou etérea, mas implica necessariamente participação real: não só a hierarquia, mas todo o Povo de Deus de distintas maneiras e em diversos níveis pode fazer ouvir sua voz e se sentir parte no caminho da Igreja. Nesse sentido, podemos dizer, sim, que a sinodalidade, como estilo e dinamismo, é uma dimensão essencial da vida da Igreja. Sobre este ponto, São João Paulo II disse coisas muito belas na Novo millennio ineunte.
c) Outra coisa é sacralizar ou impor uma determinada metodologia sinodal que agrada a um grupo, convertê-la em norma e percurso obrigatório para todos, porque isso só levaria a “congelar” o caminho sinodal, ignorando as diversas características das distintas Igrejas particulares e a variada riqueza da Igreja universal.
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4) Dubium acerca do apoio de pastores e teólogos à teoria de que “a teologia da Igreja mudou” e que, portanto, a ordenação sacerdotal pode ser conferida às mulheres.
Após as afirmações de alguns prelados, que não foram nem corrigidas nem retratadas, segundo os quais com o Vaticano II teria mudado a teologia da Igreja e o significado da Missa, pergunta-se se ainda é válido o que foi ditado pelo Concílio Vaticano II, que “o sacerdócio comum dos fiéis e o ministerial diferem essencialmente e não apenas em grau” (Lumen Gentium 10), e que os presbíteros, em virtude do “sacro poder da ordem para oferecer o sacrifício e perdoar os pecados” (Presbyterorum Ordinis 2), agem em nome e na pessoa de Cristo mediador, por meio do qual tornou-se perfeito o sacrifício espiritual dos fiéis. Pergunta-se, além disso, se ainda é válido o ensinamento da carta apostólica de São João Paulo II Ordinatio Sacerdotalis, que ensina como verdade a ser considerada de modo definitivo a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, razão pela qual esse ensinamento não está mais sujeito a mudanças nem à livre discussão dos pastores ou dos teólogos.
Resposta do Papa Francisco:
a) “O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial diferem essencialmente” (Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, 10). Não é conveniente sustentar uma diferença de grau que implique considerar o sacerdócio comum dos fiéis como algo de “segunda categoria” ou de menor valor (“um grau inferior”). Ambas as formas de sacerdócio se iluminam e se sustentam mutuamente.
b) Quando São João Paulo II ensinou que é preciso afirmar “de modo definitivo” a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, de modo algum ele estava menosprezando as mulheres e outorgando um poder supremo aos homens. São João Paulo II também afirmou outras coisas. Por exemplo, que quando falamos da potestade sacerdotal, “encontramo-nos no âmbito da função, não da dignidade nem da santidade” (São João Paulo II, Christifideles laici, 51). São palavras que não colhemos suficientemente. Também defendeu claramente que, embora só o sacerdote presida a Eucaristia, as tarefas “não dão espaço à superioridade de uns sobre os outros” (São João Paulo II, Christifideles laici, nota 190; cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Inter Insigniores, VI). Igualmente afirmou que, se a função sacerdotal é “hierárquica”, não deve ser entendida como uma forma de domínio, mas “está totalmente ordenada à santidade dos membros de Cristo” (São João Paulo II, Mulieris dignitatem, 27). Se isso não for compreendido e não forem tiradas as consequências práticas dessas distinções, será difícil aceitar que o sacerdócio esteja reservado só aos homens e não poderemos reconhecer os direitos das mulheres ou a necessidade de que elas participem, de diversas maneiras, na condução da Igreja.
c) Por outro lado, para sermos rigorosos, reconheçamos que ainda não se desenvolveu exaustivamente uma doutrina clara e com autoridade sobre a natureza exata de uma “declaração definitiva”. Não é uma definição dogmática; no entanto, deve ser acatada por todos. Ninguém pode contradizê-la publicamente; no entanto, pode ser objeto de estudo, como é o caso da validade das ordenações na Comunhão anglicana.
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5) Dubium acerca da afirmação de que “o perdão é um direito humano” e a insistência do Santo Padre no dever de absolver todos e sempre, razão pelo qual o arrependimento não seria condição necessária para a absolvição sacramental.
Pergunta-se se ainda está em vigor o ensinamento do Concílio de Trento, segundo o qual, para a validade da confissão sacramental, é necessária a contrição do penitente, que consiste em detestar o pecado cometido com o propósito de não pecar mais (Parágrafo XIV, Capítulo IV: DH 1676), de modo que o sacerdote deve adiar a absolvição quando ficar claro que essa condição não foi cumprida.
Resposta do Papa Francisco:
a) O arrependimento é necessário para a validade da absolvição sacramental e implica o propósito de não pecar. Mas aqui não há matemática, e mais uma vez devo recordar que o confessionário não é uma aduana. Não somos donos, mas humildes administradores dos Sacramentos que alimentam os fiéis, porque esses presentes do Senhor, mais do que relíquias a serem conservadas, são ajudas do Espírito Santo para a vida das pessoas.
b) Há muitas maneiras de expressar o arrependimento. Frequentemente, nas pessoas que têm uma autoestima muito ferida, declarar-se culpadas é uma tortura cruel, mas só o ato de se aproximarem da confissão é uma expressão simbólica de arrependimento e de busca da ajuda divina.
c) Quero recordar também que “às vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus” (Amoris laetitia 311), mas é preciso aprender isso. Seguindo São João Paulo II, defendo que não devemos exigir dos fiéis propósitos de correção demasiadamente precisos e seguros, que no fundo acabam sendo abstratos ou até ególatras, mas que, mesmo assim, a previsibilidade de uma nova queda “não prejudica a autenticidade do propósito” (São João Paulo II, Carta ao cardeal William W. Baum e aos participantes do curso anual da Penitenciaria Apostólica, 22 de março de 1996, 5).
d) Por último, deve ficar claro que todas as condições que habitualmente são postas na confissão geralmente não são aplicáveis quando a pessoa se encontra em uma situação de agonia ou com suas capacidades mentais e psíquicas muito limitadas.
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Papa responde às “dubia” de cinco cardeais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU