30 Setembro 2023
"O problema é a amnésia cristológica no catolicismo contemporâneo, a marginalização da Cruz em grande parte da teologia contemporânea e a escassa apreciação por parte de muitos católicos sobre seu significado salvífico. As comunidades litúrgicas muitas vezes se assemelham a um 'corpo decapitado', no qual a liderança de Cristo não está em evidência em lugar nenhum".
O comentário é de Robert P. Imbelli, padre da Arquidiocese de Nova York, nos Estados Unidos, em artigo publicado por Commonweal, 16-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A polêmica resposta de Peter Steinfels a dois artigos que eu escrevi sobre o próximo Sínodo sobre a Sinodalidade e seu Instrumentum laboris não deve ficar sem uma réplica. Permitam-me responder concentrando-me em três questões principais.
Primeiro, a resposta de Steinfels sugere erroneamente que as minhas reflexões eram dirigidas contra o próprio Papa Francisco. Temo que a animosidade de Steinfels contra Sandro Magister tenha distorcido sua leitura do meu artigo no blog de Magister, Settimo Cielo. Como ex-editor, ele deve saber que os escritores não têm voz e muito menos controle sobre os comentários editoriais. Eu não tinha conhecimento das observações introdutórias de Magister até lê-las quando o artigo foi publicado.
Os leitores nunca adivinhariam, pela resposta de Steinfels, que o meu artigo no blog de Magister culmina com uma citação direta de uma homilia do Papa Francisco. Essa citação, em conjunto com as opiniões de Yves Congar, que discuto no artigo, resume a lição que eu desejo que o Sínodo leve a sério.
No dia seguinte à sua eleição, Francisco disse aos cardeais: “Eu gostaria que todos (...) tenhamos a coragem, sim, a coragem, de caminhar na presença do Senhor, com a Cruz do Senhor; de edificar a Igreja sobre o sangue do Senhor derramado na Cruz; e de confessar a única glória: Cristo crucificado. E assim a Igreja irá em frente”. A Cruz do Senhor, Cristo crucificado como caminho a seguir: tal exortação está ausente do documento de trabalho do Sínodo.
Ao ler a resposta de Steinfels ao meu artigo publicado na First Things, um leitor também não adivinharia que eu cito o Papa Francisco para confirmar a importância do livro de Henri de Lubac sobre a Igreja. Peter dá grande importância ao título do artigo: “O que Henri de Lubac pensaria sobre o Sínodo sobre a Sinodalidade”. Mais uma vez, o título não foi uma escolha minha, mas sim do editor – assim como eu suspeito que o título dado à resposta de Steinfels – “A culpa é de Joaquim de Fiore” – não foi escolhido por ele, mas sim por um editor (o título que eu propus para o meu artigo era “Uma modesta proposta inspirada em de Lubac ao Sínodo”).
Eu não presumia saber o que de Lubac pensaria sobre o Instrumentum laboris. Em vez disso, ofereci conselhos aos participantes do Sínodo, inspirados na minha leitura do livro de de Lubac sobre a posteridade espiritual de Joaquim de Fiore. E a minha sugestão (aqui reivindico sua plena responsabilidade) era de que cada sessão começasse ponderando a magnífica confissão e proclamação centrada em Cristo da Gaudium et spes que eu cito no fim do meu artigo. Embora não entusiasmado com a ideia, Steinfels não se opôs a ela.
O segundo ponto que merece comentário diz respeito à minha própria crítica ao Instrumentum laboris. Steinfels admite que o documento “não é uma boa leitura”, mas contesta a minha avaliação de sua inadequação cristológica. Ele nos assegura que o documento realmente menciona “Jesus Cristo”, “Senhor”, “Evangelho”. Seria um lamentável documento da Igreja se não conseguisse fazê-lo!
Ele segue em frente citando algumas passagens contendo citações do Novo Testamento, incluindo uma bela citação da Carta aos Efésios. Mais uma vez, ele não diz ao leitor que, no meu artigo no blog de Magister, eu reconheço que “elementos [cristológicos] importantes podem ser extraídos das páginas [do Instrumentum]”. E eu enumero vários deles, incluindo aquela citação de Efésios, que eu chamo de “atraente, mas pouco desenvolvida”.
E esse é o cerne da minha reclamação. Lamento que “esses elementos nunca sejam reunidos em um todo coerente e desafiador”. Como disse um amigo, “o Instrumentum parece mais um manual de facilitação para uma reunião do que um convite para uma nova vida em Cristo”.
Essa nova vida só é possibilitada pela Cruz, como insistiu o Papa Francisco aos cardeais. No entanto, não se pode encontrar nenhuma menção à Cruz no documento! O próprio Peter admite que ele mesmo teria gostado de uma “maior atenção à Cruz”. No entanto, ele parece menos preocupado com a sua ausência do que eu. Diz não saber julgar quando “a cristologia de um documento dessa natureza é ‘pálida’” (como eu a caracterizei).
Orientado por São Paulo, posso afirmar com confiança que uma cristologia sem Cruz é realmente pálida. Não é mais a Boa Nova que o Novo Testamento proclama: Cristo crucificado, “sabedoria e poder de Deus” (1Coríntios 1,24).
Steinfels levanta uma terceira questão que merece maior atenção. Ele acha que as minhas preocupações sobre a crise cristológica na Igreja são “úteis”, mas “exageradas”. No entanto, de que outra forma se pode explicar a desenfreada confusão em relação à presença real de Cristo na Eucaristia ou o aumento angustiante de jovens que abandonam a Igreja? Como afirma Steinfels, ele e eu divergimos há muito tempo – às vezes nas páginas da Commonweal – sobre o problema da amnésia cristológica no catolicismo contemporâneo. Apontei repetidamente para a marginalização da Cruz em grande parte da teologia contemporânea e para a escassa apreciação por parte de muitos católicos sobre seu significado salvífico. Já adverti que as comunidades litúrgicas muitas vezes se assemelham a um “corpo decapitado”, no qual a liderança de Cristo não está em evidência em lugar nenhum.
Steinfels acha que estou exagerando. Eu acho que ele minimiza o quanto a vida e a teologia católicas agora procedem “etsi Christus non daretur”, como se Cristo não existisse. Não são palavras minhas, mas sim do cardeal Raniero Cantalamessa, ao pregar perante o papa e a Cúria. Meus artigos sobre Yves Congar e Henri de Lubac pretendiam mostrar que eles já tinham antevisto essa deserção de Cristo há 50 anos.
Steinfels considera que as advertências que eu tenho expressado repetidamente são “uma distração das muitas ameaças doutrinais iminentes, mas menos explícitas, à vitalidade da Igreja”. É aí que pode estar a diferença crucial entre nós. Acredito que o “doutrinal” é absolutamente central. Pois, a menos que tenhamos clareza sobre aquilo em que acreditamos e possamos “dar razão da esperança que há em nós” (1Pedro 3,15), não teremos base para abordar adequadamente o que Steinfels chama de outras “ameaças iminentes à vitalidade da Igreja."
Aqui concordo com são John Henry Newman que deplorava as tendências “liberalizantes” na Igreja e na teologia em seu “Discurso de Biglietto” (proferido por ocasião de sua nomeação como cardeal). Quaisquer que sejam os méritos do “liberalismo”, os quais Newman não nega, ele falha em fazer justiça aos apoios doutrinais indispensáveis de seus próprios esforços louváveis. Não honra aquilo que Newman, em sua “Apologia", chama de “princípio dogmático”, cujo âmbito não é a mera opinião ou sentimento, mas sim a verdade objetiva sobre a própria realidade.
A nossa oração do todos os domingos durante a celebração eucarística não é um vestígio curioso de uma era passada, mas sim o fundamento de tudo o que professamos e praticamos. Como Newman disse em um de seus sermões, “é a Encarnação do Filho de Deus, e não qualquer doutrina extraída de uma visão parcial das Escrituras (por mais verdadeira e importante que seja), o artigo de uma Igreja de pé ou decadente”. E, como sublinha de Lubac, o dogma é o próprio Cristo. Só Ele, por meio de seu mistério pascal, faz novas todas as coisas. Só ele ancora a nossa esperança de que, nas palavras de Juliana de Norwich, “todas as coisas ficarão bem”.
Há muitos anos, antes de nos tornarmos “velhos” amigos, Peter Steinfels e eu fazíamos parte de um grupo que redigiu a declaração “Chamados a Ser Católicos”, que foi o documento fundador da Common Ground Initiative. Ali escrevemos: “Jesus Cristo, presente nas Escrituras e nos sacramentos, é central em tudo o que fazemos; ele deve ser sempre a medida, e não o que é medido”. Cristo é, ou deveria ser, a Medida de tudo o que a Igreja faz. Esse foi o ponto central de ambos os meus artigos sobre o Sínodo.
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Uma ausência crucial. Uma resposta a Peter Steinfels - Instituto Humanitas Unisinos - IHU