Contra Sandro Magister

Papa Francisco | Foto: Paul Haring - CNS

05 Mai 2021


"Se com João Paulo II o nível de atenção foi atingido por causa dos mea culpas e com Francisco as ribanceiras parecem estar sob pressão por causa do Sínodo sobre a família, obviamente existe uma razão - na minha opinião -: a Igreja não é uma realidade eterna, acima e para além da história, ou seja, a Igreja 'caminha junto com a humanidade toda e experimenta junto com o mundo o mesmo destino terreno'" (Gaudium et spes), escreve Riccardo Cristiano, jornalista, escritor e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, em artigo publicado por Settimana News, 02-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Francisco - para quem a realidade é superior à ideia - muitas vezes nos coloca em confronto com a necessidade humana de recorrer aos esquemas, muitas vezes ideológicos.

Como resultado da nossa irresistível necessidade - talvez - Francisco foi definido conforme o caso como "cúmplice de Videla", "comunista", "turbo-globalista", "falso revolucionário", "herege e usurpador". Pois bem, é certamente sinal de contradição.

 

Os fantasmas de Bergoglio

Como jornalista, sinto a necessidade de trazer um pouco de história e ordem, sem ceder à tentação de ver por todo lado fantasmas: seria a costumeira tentativa de silenciar todo dissenso em nome da conspiração. De fato, estão em curso tentativas de deslegitimar Francisco, mas também críticas – aliás, sempre necessárias - das quais afloram muitos problemas a serem decifrados, equívocos católicos a serem esclarecidos e desejos de ambientes externos à Igreja a serem interpretados. Vem do variegado mundo de interesses próprios, a representação, hoje, de um papa hostil ao diálogo, para motivar sua rejeição.

O primeiro ataque veio dos tetrágonos depositários de outra ortodoxia. Seu problema era basicamente constituído por um papa pertencente ao hemisfério sul, popular e, portanto, atento aos pobres. Essa é a tese creditada por Horacio Verbitsky, muito considerado na esquerda como adversário do regime argentino, embora tenha colaborado por muito tempo na redação de um volume sobre a história da aviação militar argentina após assinar contrato na época de Videla, em março de 1981, com o Instituto Argentino de História Aeronáutica Jorge Newbery, financiado pela Sociedad Militar Seguro de Vida.

Verbitsky, da Argentina, acusou Francisco - nos dias seguintes à sua eleição - de cumplicidade com o regime. Embora Bergoglio - notoriamente - tenha arriscado sua vida para salvar uma comunista perseguida: Esther. O livro de Nello Scavo, La lista Bergoglio. I salvati da Francesco durante la dittatura, publicado poucos meses depois daquele ataque, afirmou uma história completamente diferente daquela defendida por Verbitsky.

Aquele capítulo de deslegitimação acabou, portanto, se extinguindo, pois o livro de Nello restaurou alguma ordem, mas a calmaria não durou muito. No decorrer dos anos seguintes, até agora, um filósofo “marxista”, Diego Fusaro, alimentou de várias maneiras - ainda da “esquerda” - a acusação a Francisco de ser um promotor do “turbo-globalismo” (e muito mais).

Em 2015 abriu-se outra frente. Eram as semanas do agitado Sínodo sobre a família, encerrado no dia 24 de outubro daquele ano. Três dias antes, foi publicado um furo jornalístico que se revelou infundado: Francisco estaria sofrendo de um pequeno nódulo escuro no cérebro, um "tumor curável".

Aquele furo foi acompanhado por um furo secundário, também falso: o professor Fukushima teria sido secretamente chamado no Vaticano para curar o papa. Foi pura coincidência que entre a data de divulgação do falso furo sobre o tumor e o momento apical do confronto sinodal? Ou pode ter fundamento a ilação que poderia servir desajeitadamente para espalhar a ideia de um "papa louco"?

O Sínodo sobre a família entrou para a história pela questão dos divorciados e novamente casados. Muitos argumentaram que nenhuma abertura para eles teria sido possível, porque a doutrina é intangível. Estranho: outro papa, João Paulo II - agora proclamado santo - transformou o código de direito canônico que cobria os divorciados novamente casados com infâmia pública e na Familiaris consortio os reconheceu na comunhão espiritual da Igreja.

A meu ver, Amoris Laetitia segue o mesmo caminho, indicando a necessidade de acompanhar, conhecer, discernir, pois “o grau de responsabilidade não é o mesmo em todos os casos; as consequências ou efeitos de uma norma não têm necessariamente de ser sempre os mesmos".

 

AL contrária à fé

Arquivado o Sínodo sobre a família, a turbulência não diminuiu. A Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, de março de 2016, foi tornada pública no dia 8 de abril seguinte. E em junho de 2016 um grupo de 45 estudiosos católicos enviou uma carta a todos os cardeais na qual pediam que o Papa Francisco repudiasse "uma série de elementos que podem ser entendidos de maneira contrária à fé e à moral católica": os padres sinodais, seus votos e a consequente exortação apostólica, portanto, iriam contra a moral católico-cristã?

Pouco depois, quatro cardeais expressaram suas famosas dúvidas. Desse modo, começaram os rumores do "papa herético". Novidade em nada absoluta: em 7 de maio de 2001, Vittorio Messori escreveu, sobre o próprio João Paulo II, no Corriere della Sera: “Não existem mais apenas os grupos lefebvrianos que o acusam de modernismo, de heresia, de difamação blasfema da história de Igreja. Entre as Congregações, os Secretariados, os Institutos da máquina católica, crescem mal-estares e suspeitas”. Essas suspeitas de heresia originaram-se dos mea culpa pronunciado por João Paulo II, apesar de tantas contrariedades. Logo passaríamos do mal-estar à sua manifesta externalização. Um dos quatro cardeais preocupado pelas dúvidas sobre a Amoris Laetitia, Walter Brandmüller, em artigo publicado na Alemanha no verão de 2017, argumentou que Francisco deveria ter exumado um costume medieval pelo qual, todos os anos, no aniversário de sua eleição, deveria pronunciar publicamente o Credo.

Não encontrei outras menções a esse antigo costume, mas noto que em tais disquisições cânones e decretos sempre se mencionam, quase nunca o Evangelho. A encíclica Sacra Verginitas de Pio XII definia a vida virginal como "superior" à conjugal. Já no ciclo de audiências dedicado à teologia do corpo de João Paulo II foi afirmado que os dois modelos de vida têm igual valor.

Como jornalista, portanto, não como teólogo, observo que os tempos mudam e todos podemos compreender melhor o que antes havia sido mal compreendido.

 

McCarrick

A tempestade de 2016 - que continuou em 2017 - foi seguida por outra no ano seguinte: em 26 de agosto de 2018, enquanto Francisco concluía sua viagem à Irlanda afligida pelos abusos, Monsenhor Carlo Maria Viganó, ex-núncio apostólico nos Estados Unidos, pediu sua renúncia pelo caso McCarrick.

Como no anterior de Verbitsky, pode-se ver mais uma vez a intenção de deslegitimar, aliás bem explicitada pelo pedido de renúncia. Aquele ataque pretendia incluir Francisco entre os encobridores dos abusos perpetrados pelo então cardeal afastado por Francisco um mês antes da intervenção de Monsenhor Viganò. Secretamente sujeito a reduções em suas atividades públicas, McCarrick continuou, entretanto, a intervir em eventos públicos, inclusive na companhia do próprio Monsenhor Viganò.

Justamente 2018 foi o ano escolhido pela MicroMega, revista que se define como de “esquerda libertária”, para a publicação do número dedicado à “falsa revolução do Papa Francisco”. A reportagem defendia "a suspeita de que aquele posicionamento do pontífice sobre o caso McCarrick era uma operação midiática de grande sucesso, realizada, como explica Cecilia M. Calamani, graças à cumplicidade de todos os meios de comunicação 'leigos' que, juntos com outros fatores bem aprofundados em seu ensaio por Marco Marzano, teriam possibilitado a construção da estrela Francisco”.

Mas o caso Viganò não foi de forma alguma uma "operação de mídia" de um dia só, mas continuou por um longo tempo e com manifestações quase diárias.

Assim floresceram as hipóteses mais extremas, como a do "papa usurpador". Pelo que eu sei, os direitos autorais da definição pertencem a um atento leitor de Monsenhor Viganò, isto é, Francisco Lamendola, para quem, como Bonifácio VIII, Francisco também seria um papa ilegítimo, porque foi eleito após um complô urdido contra Bento XVI.

2019 foi o ano de outro sínodo, aquele sobre a Amazônia. Em La Nuova Bussola Quotidiana Riccardo Cascioli escreveu: “Papa: uma linguagem contraditória, mas calculada”. Ele falava sobre a necessidade de ordenar “padres casados” para levar a Eucaristia a uma Amazônia sem ministros e acrescentava: “é claro que estamos sempre usando o método de 'iniciar os processos' que é tão caro (a Francisco).

Começava-se com as exceções: os lugares distantes, os padres que visitam as comunidades uma vez por ano (mas este não é um problema novo, no entanto a possibilidade de padres casados nunca foi considerada pelos Papas), depois as exceções rapidamente se tornam a regra”. Deve-se notar que o Sínodo sobre a Amazônia abriu (e muito) sobre este ponto, mas não da mesma forma Francisco.

 

Fraternidade e propriedade

Mas é o ano de 2020 que traz em cena a intenção de deslegitimar de Francisco, por ocasião do lançamento da encíclica Fratelli tutti. O papa foi acusado de cumplicidade com os militares argentinos e se tornou o "papa comunista". Esta é a tese de uma frente fora da Igreja, mas do lado oposto daquela que deu crédito a Verbitsky, portanto da “direita”. A questão tornou-se claramente política: propriedade privada!

No Compêndio da Doutrina Social da Igreja elaborado já em 2007 por Massimiliano Nastri, afirma que “A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável; é apenas um instrumento para respeitar o princípio da destinação universal dos bens e é um meio e não um fim em última análise”.

Francisco em sua encíclica afirmou exatamente isso: “O direito à propriedade privada só pode ser considerado um direito natural secundário derivado do princípio da destinação universal dos bens criados”. O livro do professor Massimo Borghesi, Francesco, la Chiesa tra ideologia teocon e ospedale da campo ajuda a compreender os termos da questão.

O caminho que estou percorrendo leva direto a este 2021, em que voltou a crítica ao Papa "contraditório": pode ser encontrada no artigo do L'Espresso de 20 de março passado assinado por Sandro Magister, intitulado "Francisco, o Papa quem se autocontradiz. Teoria e prática de um pontificado não infalível”. Encontramos, como sempre nos textos de Magister, pontos importantes e contundentes. Mas ele, em minha opinião, joga com um mal-entendido.

 

O ponto principal de Magister

Na primeira parte de seu texto, Magister critica o exercício do poder de Francisco, "em desrespeito às normas e sobretudo dos mais elementares direitos das pessoas": vai desde o caso Becciu até a resposta à Congregação para o Doutrina de Fé sobre se deve ou não abençoar os casais homossexuais que coabitam.

Magister escreveu: “Francisco deu formalmente 'seu consentimento para a publicação' do Responsum. Imediatamente depois, porém, ele revelou sua contrariedade. Bastou, de fato, que no Angelus do domingo seguinte deplorasse os legalismos, os moralismos clericais e as condenações desprovidas de gestos de amor, para que os defensores da bênção dos casais homossexuais se sentissem autorizados por ele a proceder como bem entendessem. Sem que o Papa fizesse nada para detê-los”.

Bergoglio - como sabemos - refere-se ao pensamento de um mestre do catolicismo contemporâneo, Romano Guardini e à sua obra A oposição polar. Para Magister a distância entre os dois não poderia ser mais “abismal”: “A desordem de sua fala é igual à de seu pensamento. Quando Bergoglio fala ou escreve, nunca é linear, sintético, direto, inequívoco. É exatamente o oposto. Ele diz e não diz, desdiz, se contradiz”.

É sabido que Walt Whitman escreveu com mérito: “Eu me contradigo? Muito bem, então isso significa que sou vasto e contenho multidões”. Mas não é a contradição de Whitman que se destaca aqui. Mas uma questão cultural de enorme valor, como explica o professor Massimo Borghesi, que há anos nos ajuda a entender como a lição de Guardini se reflete profundamente no pensamento de Bergoglio.

Para Magister, a polaridade teorizada por Guardini é aquela que "une os opostos sem anulá-los, que concebe a Igreja como complexio oppositorum, feita conjuntamente de instituição e carisma, de mistério e palavra, de interioridade e culto público, de história e vida eterna. Em Bergoglio, por outro lado, este fecundo equilíbrio de opostos termina em grosseiras contradições, nas quais um dos dois polos ganha do outro ou um vale tanto como seu oposto”.

Aqui está o equívoco para mim. Nas linhas que precedem a enunciação do princípio “o tempo é superior ao espaço” - junto com outras três indicações semelhantes e igualmente importantes da Evangelii Gaudium -, Francisco nos alerta com escrúpulos: “há quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o ‘primeiro e fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos fenômenos sociais’. À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro”.

 

Francisco e o social

Francisco fala expressamente de fenômenos sociais. Entrevistado pelo padre Antonio Spadaro, ele disse:

A oposição abre um caminho, um caminho a percorrer. Falando de forma mais geral, devo dizer que adoro as oposições. Romano Guardini me ajudou com um de seus livros que é importante para mim, A oposição polar. Ele falava de uma oposição na qual os dois opostos não se anulam. Não acontece que um polo destrua o outro. Não há contradição nem identidade. Para ele, a oposição se resolve em um plano superior. Nessa solução, entretanto, permanece a tensão bipolar. A tensão permanece, não se anula. Os limites devem ser superados, mas não os negando. As oposições ajudam. A visão humana é estruturada em forma de oposição. E é o que está acontecendo agora também na Igreja. As tensões não precisam necessariamente ser resolvidas e homologadas, não são como as contradições”.

Não se trata aqui justamente do fecundo equilíbrio dos opostos? A leitura da Evangelii Gaudium é ainda decisiva:

Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste. Este critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e terra, Deus e homem, tempo e eternidade, carne e espírito, pessoa e sociedade”.

Sim, para FranciscoA diversidade é bela, quando aceita entrar constantemente num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto cultural que faça surgir uma diversidade reconciliada”.

É por isso que o texto inédito de Bergoglio publicado por La Civiltà Cattolica é decisivo para mim - ao contrário do que Magister entende. Porque me liberta da ideia ilusória de conhecer uma verdade ab aeterno. Aqui vale, de alguma forma, o ad modum recipientis, mas ao contrário: ad modum develantis. Cada realidade tem uma forma própria de se revelar, da qual emergem as potencialidades que lhe são inerentes. A realidade se revela em consonância com o que é! Aqui está o não aos esquemas simplificadores e às ideologias: a realidade é superior à ideia! Este é o método de Bergoglio, fundamental para viver e conviver neste tempo libertado das ideologias.

Entender-se sobre isso poderia servir para identificar outros equívocos, para ver os atrasos que bloqueiam segmentos do mundo liberal ou radical, para desenredar o dilema católico. Se com João Paulo II o nível de atenção foi atingido por causa dos mea culpas e com Francisco as ribanceiras parecem estar sob pressão por causa do Sínodo sobre a família, obviamente existe uma razão - na minha opinião -: a Igreja não é uma realidade eterna, acima e para além da história, ou seja, a Igreja "caminha junto com a humanidade toda e experimenta junto com o mundo o mesmo destino terreno" (Gaudium et spes).

A vantagem que todos - fiéis, duvidosos e não crentes - podemos tirar de Francisco é que ele - não tendo sido padre conciliar - realmente nos ajuda a passar do tempo da interpretação do Concílio ao da sua implementação, simplesmente nos pedindo para aprender a conviver como seres humanos. Realmente humanos.

 

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