31 Março 2021
"Que Francisco também proponha uma teologia da libertação sem marxismo parece hoje evidente, mas se o pontificado de João Paulo II tem muito a dizer aos conservadores que o consideraram – justa ou injustamente, pouco importa - como o "seu papa", Francisco tem muito dizer aos progressistas, que o escolheram - justa ou injustamente - como o 'seu'", escreve Riccardo Cristiano, em artigo publicado por Fomiche, 30-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe um livro para ler, comum se fosse um romance. E talvez seja um romance, como os Buddenbrooks ou os irmãos Karamazov, um grande afresco sobre uma grande família, sua história recente, traições e ciúmes, mal-entendidos e mentiras, divisões e conflitos: em suma, o sentido daquela história, daquela família. E daqueles que hoje são chamados a salvá-la.
Este livro foi escrito pelo professor Massimo Borghesi e intitula-se “Francesco. La Chiesa tra ideologia teocon e ‘ospedale da campo’” (“Francisco. A Igreja entre a ideologia conservadora católica e o 'hospital de campanha'”, em tradução livre, Jaca Book, 2021). Depois de nos ajudar a conhecer e compreender o pensamento filosófico de Francisco, sua visão baseada na oposição polar que permite valorizar a tensão, Borghesi volta para nos explicar o catolicismo de Francisco no contexto de uma grande história. E de uma "inversão induzida".
De fato, entre as figuras fundamentais destaca-se a de um teólogo estadunidense, Michael Novak, junto com outros obviamente. O sonho de muitos é se tornar papa sem sê-lo. É um vício que acompanha os jornalistas, uma esperança que cultivam os intérpretes, inclusive os teólogos, de todo pontificado. Novak é um dos que parece justamente ter conseguido e o professor Massimo Borghesi tem o grande mérito de nos explicar com precisão e detalhes o porquê.
Para ficar na esfera da resenha, jornalística e portanto superficial, podemos dizer que Novak conseguiu transformar uma encíclica de João Paulo II em seu oposto. Trata-se de uma encíclica muito importante, a “Centesimus annus”, que se seguiu ao colapso soviético, ou seja, do coletivismo e do marxismo praticado, o chamado “socialismo real”. Com um trabalho exegético inteiramente baseado em uma frase, que Borghesi destaca e apresenta, Novak conseguiu transformar aquela encíclica no que não era, mas naquilo que ele queria que fosse: a ruptura da doutrina social da Igreja, a aceitação do capitalismo, do liberalismo, da teoria do mercado como filho prodigioso, capaz de se autorregular. Não era assim: “A imagem do Estado e da sociedade proposta pela encíclica referia-se claramente ao Estado de Bem-estar social, modelo que Novak e os neoconservadores rejeitavam. Assim como não podiam deixar de rejeitar o que João Paulo II afirmava no terceiro capítulo dedicado ao Ano de 1989: ‘A crise do marxismo não elimina as situações de injustiça e de opressão no mundo, das quais o próprio marxismo, instrumentalizando-as, tirava alimento. Àqueles que hoje estão à procura de uma nova e autêntica teoria e práxis de libertação, a Igreja oferece não só a sua doutrina social e, de um modo geral, o seu ensinamento acerca da pessoa redimida em Cristo, mas também o seu empenhamento concreto no combate da marginalização e do sofrimento'. João Paulo II, portanto, esperava, após a queda do comunismo, a afirmação de uma autêntica teologia da libertação, livre do marxismo, mas não por isso menos comprometida com a luta pela justiça”. Parece exatamente a teologia de que fala Francisco.
Algumas linhas depois, o professor Borghesi nos lembra que na encíclica João Paulo II, em termos não muito diferentes daqueles que se leem em "Fratelli tutti" e que levaram muitos comentaristas a falar de um "papa comunista" referindo-se a Francisco, escrevia que "A Igreja ensina que a propriedade privada dos bens não é um direito absoluto" referindo-se a textos famosos como Laborem exercens e Sollicitudo rei socialis. João Paulo II ia mais longe, via o "risco de uma idolatria do mercado" e definia "inaceitável a afirmação de que a derrota do chamado socialismo real deixe o capitalismo como único modelo de organização" e argumentava - talvez surpreendentemente para alguns - que embora redutiva e equivocada, a teoria comunista da alienação no mundo capitalista merece atenção.
A história da interpretação que inverteu esta encíclica pós-soviética, portanto muito importante para a orientação do mundo depois do muro, deveria ser clara para todos, visto que entrou tanto dentro de nós que nos levou a definir comunista e não “tradicionalista” a parte econômica de “Fratelli tutti”. Ao todo, João Paulo II retomava, atualizando-o, o pensamento tradicional da doutrina social da Igreja.
Este longo e fascinante capítulo sobre o início do “pontificado Novak” deve ser lido para entender o resto da história, algumas inovações reais acrescentadas com Bento XVI, mas também outros exageros persistentes em questões econômicas e internacionais, e também nas repercussões italianas. Mas a frase decisiva sobre o “pontificado Novak” é aquela que, em minha opinião, introduz uma semente niilista na “doutrina católica” transformada por Novak e seus colegas de percurso. É esta, imediatamente salientada e apresentada no livro, para nos fazer compreender, saber, citando Novak: “Não parece contrário ao Evangelho que todo ser humano lute, impelido à competição com seus semelhantes, para realizar todas as suas potencialidades".
Ler o grande René Girard, sua teoria da violência mimética baseada justamente no instinto competitivo, e depois, graças a Massimo Borghesi, Novak, ajuda a entender muito. Principalmente se for seguido de forma correta esse passo, sempre relativo ao capitalismo-católico de Novak, ainda citado assim: “Ninguém havia valorizado tanto a pessoa individual [quanto o capitalismo]”. Borghesi comenta: “Ninguém, portanto nem mesmo a religião cristã, portanto. A fé e a ética cristãs não mudam a forma da economia, não desempenham um papel no disciplinamento dos 'espíritos animais', na promoção de formas de solidariedade e de equidade”. Assim entendemos por que Massimo Borghesi possa resumir: “A Igreja do mundo opulento se afasta profundamente daquela imersa no universo dos pobres [...] Através de Novak o modelo ético-econômico da escola austríaca, oposta ao Welfare e à solidariedade em questões econômicas, rajado com tonalidades nietzschianas, tornava-se normativo para a visão católica de sociedade”. Por isso Francisco foi definido como comunista, herege e mais: porque a doutrina social da Igreja havia se transformado através de uma ideologia.
Que Francisco também proponha uma teologia da libertação sem marxismo parece hoje evidente, mas se o pontificado de João Paulo II tem muito a dizer aos conservadores que o consideraram – justa ou injustamente, pouco importa - como o "seu papa", Francisco tem muito dizer aos progressistas, que o escolheram - justa ou injustamente - como o "seu". Como a Centesimus annus "reorienta" a ideia de mundo após a queda do muro de Berlim, o primeiro documento pontifício de Francisco, a Evangelii Gaudium, redefine a ideia de mundo após o início do terceiro milênio e a crise da globalização. Aqui o livro é muito rico, pontual e assombroso pela síntese e precisão. Porque Bergoglio não se limita a cortar a grama sob os pés dos inversores da doutrina social da Igreja, esclarecendo que não faz sentido iludir-se que o mercado saiba se autorregular e que "as teorias da recaída favorável, que pressupõem que todo crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue produzir por si só uma maior equidade e inclusão social no mundo. Essa opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, expressa uma grosseira confiança e ingênua na bondade dos detentores do poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico vigente. Enquanto isso, os excluídos continuam a esperar”.
O texto se torna fascinante, às vezes até divertido ou angustiante. Os conservadores católicos entendem que corrigir ou derrubar Francisco será impossível, porque ele pretende esclarecer a inversão que operaram. Então eles atacam. E Novak oferece sua opinião: “Lendo a nova exortação apostólica do Papa Francisco e revisitando-a com aquela atenção particular à linguagem que um ouvido estadunidense pode ter, eu também fiquei impressionado, a princípio, com o preconceito e a falta de fundamento de cinco ou seis frases do pontífice". É interessante notar que entre estas seja citada a necessidade de um retorno da economia e das finanças a uma ética a favor do ser humano. Palavras que Borghesi também explica com uma citação do ex-presidente do Senado Marcello Pera que eu havia perdido e que felizmente assim tive oportunidade de recuperar: "Mais do que ditaduras e golpes de estado militares, não lembro muito mais na América do Sul". Marcello Pera foi um dos principais interlocutores do projeto cultural do cardeal Ruini, projeto em que provavelmente não levou teses robustas sobre a literatura sul-americana.
Lembrar daquele projeto e ler sobre Bergoglio que promovia as uniões civis para homossexuais na Argentina - sem direito à adoção - o faz parecer um gigante da fé não julgadora e dos direitos hoje, capaz de resolver questões que parecem insolúveis apenas porque prevalecem os extremismos opostos. Aqui é decisiva a citação da entrevista com o padre Antonio Spadaro em que Francesco explicava que as famosas questões éticas devem ser contextualizadas. Acredito que esse contexto seja o do discernimento, por um lado, e a rejeição da cultura do descarte, pela outro. Assim, é precisamente nessas páginas que emerge a lição de Pasolini que, em minha opinião, Francisco propõe aos "progressistas".
Para Pasolini, de fato, a temporada dos direitos civis teve seu grande valor social em face do clerical-fascismo, isto é, como bloco de poder que o Concílio Vaticano II cancelou. Arquivada aquela ordem, surgiu um novo poder, o consumista. Diante desse novo poder que aceita toda condição privada, de separação, divisão, união, descarte, em nome do consumo, a prioridade para a mudança almejada permanece a mesma de antes? A tecnocracia sem alma de que fala o professor Borghesi relativa à questão ecológica e da Laudato si' apreende plenamente o atraso de uma contestação parada em contestar um poder que já não existe, tornando-se inconscientemente aliada do novo, com o trâmite do relativismo. “Se não existem verdades objetivas ou princípios estáveis, além da satisfação das próprias aspirações e das necessidades imediatas, que limites podem ter o tráfico de seres humanos, o crime organizado, o tráfico de drogas, o comércio de diamantes de sangue e de peles de animais em perigo de extinção? Não é a mesma cultura relativista que justifica a compra dos órgãos dos pobres com o objetivo de vendê-los ou utilizá-los para a experimentação, ou o descarte de crianças por não atenderem aos desejos dos seus pais?”.
O papa do discernimento nos obriga a pensar. “É precisamente este paradigma tecnocrático que nos faz entender o que nos diz a citação do professor Massimo Faggioli: ‘Devemos nos perguntar hoje se a igreja estabelecida talvez não seja um dos poucos baluartes restantes contra a destruição do estado de bem-estar social, o turbo-capitalismo, a individualização radical da vida humana’”.
Seguem páginas muito claras e profundas sobre muitos aspectos do pontificado de Jorge Mario Bergoglio, em particular sobre sua viagem pela América e sobre a relação especial com Paulo VI. Francisco e a sua Igreja em saída nascem da ideia de uma Igreja missionária e, por isso, profundamente ligada à exortação apostólica Evangelii Nuntiandi: “É na exortação apostólica do Papa Montini que Bergoglio podia encontrar a síntese antinômica e equilibrada entre os dois momentos da presença do cristão no mundo: aquela entre evangelização e promoção humana. Dois momentos igualmente distantes da perspectiva conservadora católica para a qual a missão, longe de ser anúncio do kerygma e testemunho, é antes de tudo uma defesa militante dos valores e a promoção humana coincide com o aumento da sociedade do bem-estar”.
Se não se entende isso, não se entende Bergoglio. A esperança é que agora chegue o livro que ainda falta, aquele sobre a linguagem poética de Francisco. Talvez por obra do mesmo autor.
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Francisco e os conservadores católicos. O confronto narrado pelo prof. Borghesi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU