02 Agosto 2023
Um milhão de jovens católicos de todo o mundo reúnem-se de 1 a 6 de agosto em Lisboa, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), da qual também participará o Papa Francisco. Para o historiador Charles Mercier, o evento anual criado no fim da Guerra Fria é rico em ensinamentos sobre a história da Igreja.
A entrevista é de Cyprien Mycinski, publicada por Le Monde, 01-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Lisboa prepara-se para acolher o Papa Francisco e cerca de um milhão de jovens católicos de todo o mundo, por ocasião da edição 2023 das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), de 1 a 6 de agosto. O evento, organizado todos os anos, representa uma oportunidade única para muitos fiéis se reunirem e verem o soberano pontífice. A visita do Papa, apesar da operação ao abdômen no início de junho e do seu frágil estado de saúde, será caracterizada por uma agenda particularmente intensa, com cerca de vinte encontros e onze discursos, comprovando a importância do evento para a Igreja.
Mas a JMJ é também uma fonte de ensinamentos sobre sociologia e história da Igreja. Entrevista com Charles Mercier, professor de história contemporânea na Universidade de Bordeaux e autor de L'Eglise, les jeunes et mondalisation: une histoire des JMJ (A Igreja, os jovens e a mundialização: uma história das JMJ, em tradução livre, ed. francesa Bayard 2020).
Quando foram organizadas as primeiras JMJ?
Na primavera de 1984, no fim de um "ano santo", a Cúria, apoiada por vários movimentos católicos, organizou um "jubileu dos jovens", que reuniu cerca de trezentos mil participantes. No contexto do Ano Internacional da Juventude decretado pela ONU, um novo encontro foi realizado na primavera de 1985, também em Roma. No fim de 1985, João Paulo II institucionalizou o sistema e o chamou de "Jornada Mundial da Juventude". No fim, a primeira edição da JMJ aconteceu em 1987, em Buenos Aires.
Quais são os objetivos da Igreja ao criar a JMJ?
A JMJ faz parte de uma estratégia mais ampla implantada pela Igreja Católica ao longo do século XX para alcançar os jovens. De fato, a secularização e a autonomização dos indivíduos tornam cada vez mais frágil a transmissão intergeracional da religião. As JMJ são voltadas para os jovens entre 18 e 30 anos, no momento em que fixam as suas convicções, uma experiência que pode enraizá-los os no catolicismo.
A esse objetivo religioso acrescenta-se um objetivo geopolítico. Criadas no fim da guerra fria, as JMJ queriam fazer dos jovens “artesãos da paz” numa perspectiva de superação das lógicas dos blocos. Também tinham que levar os jovens do Leste, através do encontro com aqueles ocidentais, a se emanciparem do isolamento comunista. Esperava-se que eles depois iriam evoluir seu país a partir de dentro.
Como é escolhida a cidade-sede da JMJ?
Até a JMJ de Czestochowa, organizada em 1991 na Polônia, quem decidia era o Papa. Posteriormente, o processo tornou-se mais complexo, em especial porque o Vaticano considera importante envolver o conjunto das dioceses do país anfitrião na preparação de um evento que requer consideráveis recursos humanos e financeiros.
As conferências episcopais, depois de terem assegurado a colaboração das autoridades públicas, manifestam o seu interesse no Vaticano, que se preocupa em estabelecer uma certa alternância entre as diversas regiões do mundo. Quando vários projetos precisam ser avaliados, é feito um processo semelhante ao da escolha das sedes das Olimpíadas. Especialistas vão até o local para avaliar as candidaturas antes da decisão.
A JMJ tem um tom diferente dependendo dos países onde é organizada?
Sim, especialmente porque a maior parte da organização não é feita pelo Vaticano, mas pelos comitês locais. Nesse sentido, as JMJ representam uma forma de “glocalização”: é um evento global, mas que tem especificidades locais. Por exemplo, em 2013, no Brasil, país onde predomina o pentecostalismo, a JMJ do Rio assumiu tons evangélicos, jogando com as emoções e apresentando testemunhos de "renascidos" (pessoas que voltaram à fé) ou de "agraciados por milagre".
Além disso, os discursos do papa são cuidadosamente preparados pelos serviços diplomáticos do Vaticano, que os adaptam às sensibilidades nacionais. Por ocasião da JMJ de Paris em 1997, João Paulo II não repetiu o discurso sobre a moral sexual que havia proferido em Denver, mas enfatizou a doutrina social da Igreja, com maior probabilidade de ser escutado em uma sociedade francesa pouco inclinada a aceitar incursões religiosas na esfera íntima.
Algumas JMJ tiveram mais sucesso do que outras?
Do ponto de vista numérico, as JMJ de Manila (1995), do Rio de Janeiro (2013) e de Cracóvia (2016) são as que atraíram o maior público (entre 2,5 e 4 milhões de participantes).
Por outro lado, a JMJ do Panamá, organizada em janeiro de 2019, atraiu apenas 110 mil pessoas. No entanto, o sucesso também depende de outros fatores, como a organização, a qualidade do ambiente e a diferença positiva entre o que era previsto e o que acontece. Deste ponto de vista, a JMJ de Paris em 1997, cuja missa de encerramento reuniu 1,2 milhão de participantes, enquanto as hipóteses mais otimistas previam 350.000 peregrinos, foi uma feliz surpresa para os católicos.
Que benefícios a Igreja Católica obtém da JMJ?
Acima de tudo, trata-se de uma excelente operação de relações públicas. Concentrando-se em um mesmo lugar dezenas de milhares de pessoas, a instituição católica comunica sua capacidade de responder às necessidades existenciais, mesmo em um momento em que as igrejas estão se esvaziando no Ocidente. O caráter pacífico e multicultural do evento, que reativa valores de hospitalidade e fraternidade, geralmente desperta um tratamento midiático positivo e também gera a simpatia da opinião pública.
A relação de tipo avô/netos, posta em cena através da celebração da relação entre o Papa e os jovens, também é percebida de forma muito positiva.
Qual o perfil dos participantes das JMJ?
Em termos de gênero, os participantes são 60% do sexo feminino, um percentual bastante estável desde a criação das JMJ. Se considerarmos as nacionalidades presentes, os mais numerosos são os europeus, isso se explica em primeiro lugar pelo fato de que cerca de metade das JMJ aconteceram no Velho Continente. Entre os europeus, os italianos, os franceses, os espanhóis e, desde 1991, os poloneses constituem os maiores contingentes. As delegações dos países do Sul são menos numerosas, embora um fundo de solidariedade proporcionado pelas inscrições dos peregrinos do Norte permita financiar as viagens.
Tanto no Norte quanto no Sul, os jovens que participam das JMJ tendem a ser de classe média ou abastada, e isso pode ser explicado pelo custo de participação no evento. O dado é especialmente verdadeiro entre os franceses inscritos na JMJ de Lisboa que, segundo uma pesquisa realizada por La Croix, pertencem em 97% a famílias CSP+ (ou seja, a categorias socioprofissionais de alta renda). Esse é o reflexo da característica sociológica dos católicos franceses, presentes sobretudo nos ambientes burgueses.
O que se pode dizer sobre o perfil religioso dos jovens presentes?
Aqui é necessário distinguir os peregrinos que vêm de fora dos que estão no país hospedeiro. Os primeiros são geralmente católicos praticantes que cresceram em um ambiente fervoroso. Os participantes residentes no local têm, pelo contrário, um perfil mais diversificado. Os jovens que têm uma relação mais frouxa com o catolicismo unem-se gradualmente em torno de um núcleo de "virtuosos" da fé, envolvidos desde a fase preparatória.
As imagens das cerimônias, veiculadas pela mídia, também podem atrair, por “contágio emotivo”, pessoas de outras religiões ou não crentes. Na missa final há participantes que na semana anterior nem conheciam a JMJ, mas vêm para participar do fervor coletivo.
As JMJ testemunham uma evolução das formas de vida religiosa?
Sim, muito claramente. A vida religiosa baseia-se cada vez mais numa exigência de autenticidade, e as JMJ correspondem perfeitamente a essa tendência. Ao contrário de uma religiosidade rotineira, os participantes fazem a escolha de viver uma experiência precisa e emocionalmente forte. As JMJ também mostram as mudanças da religião em um contexto mundializado. O encontro com os correligionários ocorre cada vez menos em proximidade pessoal direta e cada vez mais graças às tecnologias da globalização, começando pelo transporte aéreo e tecnologia digital.
Que impacto tem a JMJ sobre quem participa?
Certamente é um impacto muito variável de acordo com os indivíduos, mas as pesquisas realizadas após as JMJ de Roma (2000) e Colônia (2005) indicam um fortalecimento muito significativo da crença e da prática. Às vezes podem até suscitar vocações religiosas. Na França, em uma pesquisa realizada em 2004 pela Conferência Episcopal, cerca de metade dos seminaristas afirmou que as JMJ desempenharam um papel em sua vocação. Costuma-se dizer que as JMJ são as “jornadas casamenteiras da juventude”. É uma brincadeira que, no entanto, tem um fundo de verdade: o evento é certamente uma oportunidade para contatos e encontros.
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“As Jornadas Mundiais da Juventude foram criadas com um objetivo religioso e geopolítico”. Entrevista com Charles Mercier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU