14 Julho 2023
Um diálogo entre dois amigos que há trinta anos fizeram um pacto para compartilhar ideias e sonhos. Vinte anos de diferença. Uma mesma paixão pelo mundo, e em diferentes lados do oceano. Habitantes do espaço de “fronteira”.
A conversa entre Marcelo Barros e Marco Campedelli foi publicada por Rocca n. 15, 01-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Desobedientes” quando se sentiam em consciência contrários em relação ao sistema do poder e da Igreja. Teologia, política, direitos. Esses são os temas de seu diálogo, aqueles que compartilharam na vida. Literatura, teatro, cinema, poesia, mas sobretudo relações, visões, feridas a curar, utopias de cultivar, sonhar… A sua história… teologia e biografia. Ideia de Deus.
Marcelo Barros – Antigamente, a fé era transmitida a partir do “princípio da autoridade”. Aos nossos pais, dizia-se que para ser católico era preciso "crer" em tudo que o magistério de Igreja diz. Esta era a imagem de Deus que o Catecismo transmitia: "Deus é o Ser mais perfeito, Criador e Senhor do céu e da terra”. Hoje vivemos em um mundo onde o critério de crer não pode mais estar ligado ao princípio de autoridade, mas à escolha, à consciência, à convicção. O retorno à Bíblia e ao Evangelho proposto pelo Concílio Vaticano II favoreceu uma mudança da própria ideia de Deus. Jesus revolucionou a ideia de Deus. Ele rompeu com o Deus de templo e o Deus da religião do sacrifício e retomou a experiência de Deus narrada pelos profetas e mais ainda revelou que “Deus é Amor”.
Então hoje se pode dizer que o Amor é Deus.
Gosto muito do livro do amigo galego Andrés Torres Queiruga: Do terror de Isaac ao Abba de Jesus. Foi publicado há 20 anos, mas nos ajuda a entender como a revelação de Deus na Bíblia evoluiu. Ou seja, que a ideia de Deus vai amadurecendo e se refere a uma experiência cada vez mais humana e amiga.
Marco Campedelli – Se existe um conhecimento sobre Deus como se fala na Teologia, tal conhecimento não pode ser estranho ao "conhecimento sobre o humano". A teologia não está presente, senão marginalmente, no debate público (seria necessária uma "teologia pública"). Por quê? As questões “últimas”, aquelas que a própria teologia chama de “escatológicas”, estão presentes, de fato, na vida das pessoas e da sociedade: dor, morte, felicidade, destino do mundo, mas a própria economia, a política, têm implicações “teológicas”, por exemplo a “divinização do mercado”, o regresso a formas diversamente "teocráticas" de fazer política, "divinizando" o homem apenas no comando, etc.
No entanto, a teologia, pelo menos no debate público na Itália, parece estar fora desses desafios. Eu penso que pagamos demais o preço de uma Igreja ligada há muito tempo com uma política de tipo "ruiniano". E como a teologia foi muitas vezes reduzida a um "comentário" do magistério, em grande parte desistiu de pensar publicamente. Em minha formação, quando era estudante de teologia, vivenciei diretamente uma separação inquietante (à qual teimosamente nunca aderi): aquela entre teologia e formação. A teologia que tinha a função de "fazer pensar" ou "dar o que pensar" tornou-se assim um "bem perigoso". Hannah Arendt diz claramente que “parar de pensar" produz o inumano, ou a "banalidade do mal". Era necessário expulsar a “Teologia” dos processos de formação. Para não ser "pensantes" (como diria Martini mais tarde), mas "devotos". Mas tirar o pensamento mutilou pessoas e comunidades, arrancou suas asas. Foi assim que se impôs um modelo acrítico, afetivo-chantagista e culpabilizante. “Pensar faz mal” se postulava, mas a ignorância é a melhor aliada da arrogância, do Poder.
Evangelho do jovem rico. Olhar. Opção pelos pobres
Barros – É importante lembrar essa palavra, esse olhar da origem. O encontro de Jesus com aquele jovem (garoto ou garota) foi um caso de "vocação" em que Jesus falhou. Não conseguiu ser acolhido e a pessoa não o seguiu. Se pensarmos que os três evangelhos sinóticos contam essa história, mesmo que cada um com algum elemento próprio, significa que esse encontro tem um valor paradigmático. Ainda hoje a Igreja fala da pastoral da elite; na América Latina se fala: "opção preferencial", mas não exclusiva pelos pobres. E se repete o encontro e o confronto de Jesus com a sociedade que o jovem rico representa.
Campedelli – Talvez seja desse olhar que tenhamos ficado “órfãos”. O olhar do "primeiro amor" que vai direto e atinge o coração. Um olhar que não é apenas "poético", mas também "político". Não olhos que enredam, capturam, mas apaixonam, subvertem, "desordenam". Somente a partir do olhar amoroso será possível "se extasiar" como diz Dante. Sem amor Deus não existe. Não existe. Portanto, toda humilhação do amor, de todo amor, é uma humilhação de Deus. Uma sexualidade fóbica, doente e todas as suas patológicas compensações são o resultado desse "desamor".
É preciso um olhar que cuida, que cura. Essa é uma prioridade de formação. Ensinar o olhar. Quem experimenta ser "visto", "olhado" com empatia, com aquele "eu me importo" de dom Milani é ajudado a encontrar seu lugar no mundo.
Barros – Nossa Igreja é um poço de contradições. De todas as contradições a primeira e fundamental é manter, por exemplo, a estrutura de um Estado como centro da Igreja Católica (o Estado da Cidade do Vaticano). O próprio Papa Francisco não diz uma palavra sobre esse absurdo modelo. É de fato um estado monárquico e é a única monarquia absoluta no Ocidente.
Como é possível conciliar essa ideia de monarquia absoluta com a base igualitária e democrática dos direitos humanos? O livro de José Maria Castillo "A Igreja e os Direitos Humanos" mostra que de centenas de tratados, acordos, pactos que a ONU propôs sobre os direitos específicos de crianças, mulheres, trabalhadores, etc., o Vaticano não aceitou assinar a maioria. Mesmo que depois os papas escrevam documentos sobre os direitos humanos. Dos mais horrendos escândalos que a estrutura eclesiástica mantém, continua sendo a discriminação sobre os direitos e o status das mulheres em relação ao homem. Isso para mim é totalmente inaceitável e é um escândalo para o mundo.
Campedelli – Eu também acredito que seja uma contradição não resolvida: a Igreja fala externamente sobre os direitos humanos apenas para depois negá-los em âmbitos e situações internas. O sistema patriarcal em que se constitui a Igreja produz, de fato, uma sistemática violação dos direitos humanos.
Afinal, justificar a disparidade entre homens e mulheres atribuindo-a a uma ideia teológica é, na verdade, atribuir a Deus a causa da discriminação. Acho que o paradoxo é este: o Evangelho é um tesouro de irmandade/sororidade, liberdade, imaginação. É um canto de libertação. Jesus protesta pelos direitos das pessoas e não pelos privilégios da religião. Sempre que a Igreja não protesta pelos Direitos Humanos, faz o oposto. Por isso brandir o "Evangelho" para justificar a discriminação, a desigualdade, é o que os próprios conservadores chamariam de "pecado contra a natureza".
Barros – O próprio termo “sacerdócio” é estranho ao Novo Testamento para indicar os discípulos de Jesus. A partir dos primeiros escritos dos Padres da Igreja, por exemplo, na carta de Clemente Romano aos Coríntios, os presbíteros cristãos são comparados aos sacerdotes levíticos do Antigo Testamento.
De fato, os ministros cristãos se tornam "sacerdotes" quando no IV século são considerados herdeiros dos títulos e honras típicos dos sacerdotes da antiga religião imperial romana. Os ministros cristãos herdaram dali as vestes litúrgicas, os títulos e o próprio modo de falar do sacerdócio.
Os textos do Concílio Vaticano II evitam falar de sacerdócio. Falam de ministério presbiteral, ministério episcopal ou diaconal. Começou-se a falar de “ministérios ordenados”. Os documentos de Vaticano no pós-concílio, principalmente com João Paulo II, retomaram a nomenclatura de "sacerdócio".
Em nossos dias, o Papa Francisco denuncia o clericalismo como uma doença, mas como se o clericalismo fosse um abuso do sistema, quando na realidade o clericalismo é o próprio sistema. Se não voltarmos à Igreja dos batizados na qual todos são "sacerdotes", ou seja, mediadores entre Deus e o mundo, e a diferença não será mais entre ordenados e não ordenados, não será possível fazer a necessária virada radical. Os ministérios cristãos deveriam ser ministérios proféticos e não sagrados.
Campedelli – No Evangelho, Jesus apresenta-se como um “leigo” e não como um “sacerdote”, mas depois nós "sacerdotalizamos" Jesus. Chegou-se a dizer que na última ceia Jesus "disse a primeira missa" e os apóstolos fizeram "a primeira comunhão".
A dessacralização dos "ministérios" na Igreja seria útil para torná-los um "serviço para o mundo" e não os papéis funcionais à estrutura sagrada. É por isso que se deveria repensar uma “ministerialidade” que es explicite nos paradigmas do “cuidado”, da “compaixão”, da utopia, da imaginação, da contemplação, dos Direitos, da justiça. Nessa chave todos, homens e mulheres, seriam “sacerdotes” e “profetas”, depondo o manto do sagrado e assumindo a "paradoxo" do humano evangélico, poderíamos acabar com aquele "clericalismo" que o Papa Francisco denuncia como um mal endêmico da Igreja.
Não é justo tomar a palavra no lugar das mulheres. Mas esse modelo essencialmente "sagrado", ainda "tridentino", de sacerdócio produziria no caso de ordenação feminina o mesmo clericalismo (masculino e feminino). Os ministérios deveriam ser dados a mulheres e homens, sem mais discriminações, mas numa perspectiva mais "leiga" e mais "profética". Por essa razão, mais do que ampliar o paradigma do “sagrado”, é o próprio paradigma que deveria ser alterado. Isso comporta também a mudança dos modelos de formação, para curar aquelas "chagas", para citar Rosmini, que continuam a minar o corpo da Igreja e do mundo.
Barros – No atual contexto de uma Igreja "sacramentalista" que separou o sacramento da realidade, as missas não representam mais a ceia de Jesus que era uma ceia de partilha e exercia uma comunhão aberta e universal. Deveríamos nos perguntar o que significa celebrar missa em um mundo em que 10% da humanidade se apodera de mais de 80% da riqueza mundial, tornando-se responsável pelo aumento da fome no mundo e responsável pelas migrações forçadas com as tantas mortes no fundo do mar. Bem, essa elite de 10% em maioria se diz cristã e as nossas Igrejas na prática aceitam isso sem problemas.
Campedelli – Se a Eucaristia, como nos ensinava o nosso amigo Arturo Paoli, expressa um “projeto”, uma visão do mundo, da sua política, da sua economia, significa que é “para o mundo". Nunca contra ele. Se no centro da Eucaristia há um corpo que se doa, a ponto de fazer daquela doação uma “memória subversiva” (J.B. Metz), a Igreja, deve libertar os corpos e não os oprimir. A partir dessa memória, resulta incompatível qualquer forma de abuso do corpo das pessoas, mulheres, crianças. Abuso do corpo e abuso da intimidade, dos afetos. O escândalo dos abusos é a mais escandalosa negação da Eucaristia. Eu acredito que o destino da Igreja está em jogo nessa monstruosa injustiça. Sua possível reforma ou sua inevitável ruína. Mas as vítimas devem ser colocadas no centro. A Igreja deve “ir à escola” das vítimas para finalmente inverter a perspectiva. Inverter o horizonte cultural e teológico. É necessário constituir uma comissão independente, também na Itália. “Lavar a roupa suja em casa” sabemos “cobre uma multidão de pecados”. Também o Parlamento não pode renunciar a fazer a sua parte, a assumir a sua própria responsabilidade política. Não existe, como já foi dito, um "jeito italiano" para a injustiça sistêmica dos abusos.
Seria simplesmente uma hipócrita "rota de fuga". Lembro-me de ter lido isso nos anos em que a AIDS matava milhões de pessoas e uma determinada hierarquia eclesiástica abraçou o binômio “doente-pecado" em uma igreja no Chifre da África foi pendurada no pescoço de um enorme crucifixo no altar maior uma placa. Estava escrito "eu tenho AIDS". Talvez devêssemos colocar no pescoço do crucifixo a placa "Fui abusado".
Barros – A teologia é plural, nasce plural e contextual. Depois de um tempo em que era proibido fazer teologia que não fosse curial e mera repetição do que o papa já havia dito e escrito hoje, finalmente, se pode falar livremente o que se quer. Mas... Em 1958, o papa João XXIII foi eleito após 20 anos de pontificado de Pio XII. Uma herança teológica e pastoral muito difícil. Muitos teólogos haviam sido punidos e exilados. Eles haviam sido proibidos de ensinar. Em três meses, o Papa João convocaria o Concílio Vaticano II. A partir daquele anúncio, o clima eclesial começa a mudar. O Papa Francisco foi eleito já faz dez anos. Falou de “Igreja em saída”, de sinodalidade, propondo redescobrir e valorizar novamente o Concílio. Dez anos... E deveríamos nos perguntar "onde estamos no caminho?". Tenho a impressão de que os desafios são muito mais difíceis. As teologias existem e continuam em sua elaboração, mas é preciso retomar um diálogo mais profundo entre os pastores (a) e os (as) teólogos/as.
Campedelli – É preciso habitar “a fronteira”. As verdadeiras teologias nascem na fronteira, onde as coisas acontecem. Enquanto a teologia for elaborada no centro do sistema, ela não poderá fazer nada além de o confirmar. Mas para ficar na fronteira é preciso também passar por um risco existencial. As teólogas e os teólogos do mundo que fizeram uma teologia livre e corajosa colocaram a si mesmos em jogo. Foram mulheres e homens apaixonados pelo Evangelho e pela justiça. Nunca curvados diante da Igreja. Sempre de pé. É na fronteira onde se fala de direitos humanos, gênero, trabalho, saúde, justiça social, pobreza educativa. Onde se discute de armas, guerra, paz, abuso, clima, ecologia, futuro. Se não estiver lá, a teologia está morta ou é inútil.
Além disso, não se deve esquecer que no mundo existem homens e principalmente mulheres corajosas que vivem na fronteira. Em sua ação educativa e política, em seu modo de "repensar Deus" fora do esquema patriarcal; mas também há pequenas comunidades que se reúnem em torno do Evangelho. Todas essas experiências, muitas vezes marginais, tornam-se verdadeiros laboratórios de reforma e mudança.
Barros – Aprendi com os xamãs Yanomami, no povo da Amazônia: “Se soubermos cantar com alegria, dançar com arte e se soubermos contar boas histórias levaremos conosco o Grande Espírito que não vai mais querer nos deixar".
Sem dúvida, uma das conquistas mais importantes das teologias cristãs depois do Vaticano II foi a reconciliação entre teologia e espiritualidade. Como nos primeiros séculos do cristianismo, aprendemos que, como diziam os primeiros teólogos da libertação na América Latina, “o primeiro ato da teologia” é a oração ou como diz o livro da Sabedoria: “timor Dei”.
Hoje fazemos teologia com o coração e devemos redescobrir a arte que envolve o corpo. Temos que retomar nas mãos os Mistérios, sejam eles “buffi” (diria Fo, sobre o qual Marco escreveu) ou não.
Campedelli – O conhecimento hoje deve ser convivial, inclusivo. Um saber sinfônico. Um saber que não exclui a “diferença”, mas a coloca na base do próprio conhecimento, deve hospedar a ciência e as suas conquistas, os seus desafios decisivos. Mas também o pensamento filosófico, a arte, a literatura. Alguém escreveu que “a Teologia é um romance” não tanto como gênero, mas como trama, enredo, imaginação, sonho. Benedetto Calati dizia que precisaríamos passar da “teologia da prescrição” para a “teologia da imaginação". E, sobretudo, é a própria literatura que nos leva ao abismo do humano e na beleza mais envolvente e comovente. O que seria da nossa ideia do Nazareno sem a "Lenda do Grande Inquisidor" de Dostoiévski? Uma página emblemática de literatura é "A festa de Babette" de Karen Blixen (do qual saiu o filme de Gabriel Axel). É sobre um grupo de devotos que vivem em uma ilha na Dinamarca, entre os quais há duas irmãs solteironas, Martina e Filippa. Filhas de um pastor, que com sua ideia moralistas e severa de Deus as havia pregado à "religião do dever". Mas no coração do romance está Babette, uma cozinheira parisiense (a mais famosa) em exílio e incógnita ao seu serviço. Ela vai colocar todo o dinheiro ganho em uma loteria fabulosa para oferecer um jantar para aquela comunidade apagada de todas as paixões e de toda visão.
Será comendo juntos que os sentidos se reacenderão e com boca, olhos e mãos, reencontrarão junto consigo mesmos, com seus corpos, com seus desejos, também o Deus perdido; o amor. Apenas então, saindo na noite, farão uma roda de dança sob as estrelas. É o que temos esperança de fazer nós também.
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O mistério de Deus na terra de fronteira. Um diálogo entre Marcelo Barros e Marco Campedelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU