01 Novembro 2022
"Com Jesus para além dos estereótipos patriarcais Annamaria Corallo, percorrendo as páginas do relato evangélico de Marcos e considerando algumas figuras por ele oferecidas 'como modelos de liberdade interior e abertura à lógica do reino de Deus', por um lado, nos mostra como 'a práxis de Jesus e suas palavras corroeram os fundamentos da sociedade patriarcal do primeiro século e nos ofereceram caminhos para uma libertação sempre possível'".
O comentário é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 30-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um pequeno volume de apenas cem páginas, escrito em linguagem clara e com um título decididamente intrigante, Gesù oltre gli stereotipi patriarcal (Jesus para além dos estereótipos patriarcais), resultado de um curso online sobre o mesmo tema realizado no início do ano de 2022 por Annamaria Corallo, dedicado à mãe que "a ensinou a crer sem renunciar de pensar" e recentemente publicado pela Edizioni La Meridiana de Molfetta (BA), uma editora particularmente atenta às temáticas religiosas limítrofes.
Gesù oltre gli stereotipi patriarcali (Foto: Divulgação)
Teóloga biblista, docente na Pontifícia Universidade Gregoriana para a cadeira de Introdução ao Novo Testamento e no Instituto Superior de Ciências da Religião de Benevento onde leciona Didática das religiões, especialista em metodologias interativas de formação, autora de inúmeras publicações de teologia bíblica, de manuais metodológicos para grupos bíblicos, de subsídios catequéticos, Annamaria Corallo é também presidente da Associação Getta la Rete que, em Nápoles, atua no campo da promoção humana através da arte e da espiritualidade.
Do jornal online Getta La Rete edita a coluna Una Bibbia trasgressiva, “um espaço de pesquisa e discussão em torno da reflexão sobre Deus, que parte da Bíblia, para redescobri-la como guardiã de sentido e plenitude para a vida de cada um e cada uma de nós".
Dessa bela coluna vale a pena reproduzir integralmente as motivações. “Tradicionalmente, o mundo é pensado como dividido entre sagrado e profano. O mundo do sagrado é o divino. Acreditamos que seja um espaço acessível apenas para os especialistas, interessados em refletir sobre Deus através da teologia e dialogar com ele na espiritualidade. Por outro lado, haveria também o mundo do profano, relegado para fora do recinto sagrado de Deus, como o espaço do humano, com suas preocupações e esperanças.
Mas entre as páginas bíblicas encontramos Jesus de Nazaré: ele nos mostra o rosto de um Deus que derruba as barreiras entre sagrado e profano. O que é importante para o Deus amoroso e vital que ele apresenta não é o culto, mas a vida concreta de cada ser humano, sua felicidade e sua plena realização. A Bíblia tem muito a nos dizer nessa direção, mas somente se compreendermos seu valor transgressor, isto é, se deixarmos que ela nos leve para além (em latim: transgredior), para além dos nossos preconceitos sobre Deus, a Escritura e a espiritualidade”.
Com Jesus para além dos estereótipos patriarcais Annamaria Corallo, percorrendo as páginas do relato evangélico de Marcos e considerando algumas figuras por ele oferecidas "como modelos de liberdade interior e abertura à lógica do reino de Deus" (p. 99), por um lado, nos mostra como "a práxis de Jesus e suas palavras corroeram os fundamentos da sociedade patriarcal do primeiro século e nos ofereceram caminhos para uma libertação sempre possível" (p. 101) e, por outro, orienta à descoberta de indicações preciosas para viver no nosso hoje como discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré, "o homem que mostrou o rosto mais claro de Deus a ponto de ser reconhecido como seu Filho" (p. 9). Ele que, com suas escolhas e suas palavras, mostrou o sonho de felicidade que Deus tem para cada pessoa (p. 83).
Sendo resultado de um curso online e como "percurso não exaustivo, mas exploratório" (p. 10), o ensaio, lúcido e persuasivo, que pode fazer parte da vertente da abordagem feminista da Bíblia, tem uma estrutura bem simples.
Numa breve introdução, a autora apresenta os três termos de referência: Jesus, em cuja vida, ações e palavras se vislumbra o rosto amoroso e vital daquele Deus que ele "chamava de Pai e de quem falava com as feições de uma Mãe" (pág. 9); estereótipo (do grego στερεός/ duro e τύπος/ imagem), termo que fala de "rigidez e ausência de pesquisa" e expressa convicções arraigadas no senso comum, mas geralmente destituídas de fundamento; patriarcado, como "sistema de dominação permanente e estrutural do homem, como ser masculino, sobre mulheres, meninos, meninas e - em geral - os vulneráveis da sociedade", que oprime tanto as mulheres quanto os homens "porque impõe expectativas, papéis e normas que devem ser seguidas por todas e por todos, a ponto de achatar toda originalidade em seu estereótipo estático” (p. 9-10).
Nos cinco capítulos ágeis ela se debruça sobre a proposta antipatriarcal que o Evangelho de Marcos recolhe em relação às expectativas sociais que aprisionam as pessoas em funções vinculantes (p. 11-23 "Além das expectativas sociais"), as expectativas familiares e parentais que acompanham o caminho de cada pessoa (p. 25-40 "Além das expectativas familiares"), ao complexo mundo da sexualidade a ser acolhida e direcionada para a felicidade de cada pessoa (p. 41-59 "Além dos rígidos papéis de gênero"), às uniões de amor liberadas de papéis fixos e imóveis e vividas sob a insígnias da reciprocidade e de um crescimento humanizador (p. 61-83 "Para além do casamento patriarcal"), ao modo como Jesus olha para os homens e as mulheres, escolhendo o caminho da proximidade com os últimos e os derrotados da história, como as crianças e as viúvas (p. 85-98 "Além dos modelos patriarcais").
Na conclusão, também concisa, Annamaria Corallo repercorre em grandes linhas o conteúdo dos cinco capítulos para desenvolver uma visão global daquela humanidade de Jesus tão libertadora e tão aberta ao amor de Deus a ponto de se tornar transparência (p. 99).
A primeira página do relato evangélico de Marcos retrata a figura de João Batista que tem a tarefa de preparar a entrada do protagonista de seu evangelho (notícia fonte de alegria), que é Jesus de Nazaré, reconhecido como Cristo e Filho de Deus.
Profeta do deserto, pertencente à linhagem sacerdotal, sem casa e sem vínculos familiares, João, em vez de se colocar no rastro de seu idoso pai Zacarias (como informa o Evangelho de Lucas), coloca-se em franca polêmica com o sistema religioso e social de seu tempo fundado em três pilares: pátria, família e Deus
Ele contraria a lógica parental necessária ao ideal de pátria, pois não está interessado em casar e ter uma descendência ou em garantir seu patrimônio e a longevidade dentro de seu próprio clã, constituindo seu próprio núcleo familiar.
Mas o que mais surpreende é notar que a escolha de vida de João é apresentada pelo relato evangélico de Marcos "como resposta a um apelo divino: o Batista tem um grande grupo de seguidores que o reconhecem como enviado de Deus. E, fato determinante, entre a multidão, destaca-se o rosto de Jesus” (p. 18).
Ao ser batizado por João, Jesus demonstra que reconhece sua autoridade moral, espiritual e religiosa.
Ele, um pregador itinerante, chama quatro homens para segui-lo que deixam algo para trás: o trabalho (Simão e André) e o pai com os assalariados (Tiago e João). Ao fazê-lo, Jesus se distancia do papel social que as pertenças familiares e sociais impunham. "Jesus chama a desconsiderar a expectativa da cultura patriarcal que pedia a continuidade do trabalho" (p. 20).
Para fazer parte do grupo de discípulos, Jesus chama não pessoas que encarnam o ideal de um grupo baseado em parâmetros étnico-tribais, mas pessoas dispostas a se envolverem em uma nova proposta religiosa e social desvinculada das lógicas patriarcais da pátria ou da família que garante a sua subsistência étnica: lógicas destinadas a deformar o verdadeiro rosto de Deus, "desfigurando-o como se fosse uma divindade tribal ou um estandarte do próprio pequeno interesse partidário" (p. 23).
Jesus aceita que, em seu seguimento, existam homens e mulheres: uma prática impensável para a cultura patriarcal da época que não permitia a presença de mulheres nas "escolas" dos mestres.
"O Evangelho se insere numa lógica de descontinuidade libertadora, que abre para novas perspectivas relacionais". Não é a sobrevivência étnica que está sendo cuidada, mas "a sobrevivência de nossa humanidade pessoal". Não é o patrimônio econômico da família que está sendo tutelado, mas "o nosso patrimônio espiritual e afetivo". O objeto de honra não é um deus tribal inexistente, mas "a vida que brota do coração do Deus vivo" (p. 23).
Na tradição bíblica, a honra aos pais é percebida em continuidade com a honra devida a Deus. Os pais são investidos de uma autoridade praticamente de origem divina (p. 27).
Jesus está ciente da importância do mandamento "honrar o pai e a mãe". Tão consciente que ele redefine as regras da sua colocação familiar: mãe, pai, irmãos e irmãs são as pessoas que se sentam ao seu redor da única modalidade que importa: fazer a vontade de Deus (Mc 3,35).
O pleno sentido de honra devida aos pais não reside numa obediência cega e acrítica para com eles, no cumprimento dos papéis patriarcais predeterminados, “mas sim na dimensão relacional de proteção e guarda mútua da vida alheia. Se os filhos e as filhas adultas devem cuidar de seus pais com amor e dedicação, os pais devem respeitar a liberdade de seus filhos e filhas, permitindo-lhes ser o que sentem profundamente verdadeiro e realizador para suas vidas” (p. 39) .
“Nós - deduz Annamaria Corallo - não nascemos para atender as expectativas de ninguém. Nem mesmo aquelas de Deus, porque Deus não tem expectativas de nós, mas apenas sonhos. O sonho é um horizonte de realização no qual se pode crescer investindo toda a própria fantasia, vontade e tenacidade. O sonho de Deus é a nossa humanização completa, a realizar-se cultivando relações capazes de nos tornar tudo o que podemos ser” (p. 40), crescendo no amor generoso e expansivo. O verdadeiro sentido de honra devido ao pai e à mãe é serem filhos e filhas realizados (p. 100) humana e espiritualmente.
O Evangelho também tem algo libertador a nos dizer em termos de estereótipos de gênero em relação às rígidas expectativas sobre comportamentos masculinos e femininos exigidos por um determinado contexto sociocultural. Fala-nos "do rosto de um Deus vital e amoroso, criativo e criador, que quer a felicidade plena para os seus filhos e filhas" (p. 59).
Percepções originais sobre o tema de evangelho libertador também em termos de papéis de gênero emergem da leitura que a autora faz do quinto capítulo do relato de Marcos que narra a libertação em terra pagã de um homem possuído por uma multidão de espíritos imundos e um duplo milagre de Jesus todo conotado ao feminino: a cura da mulher siro-fenícia que há doze anos sofre de menstruação irregular e próximas e a reintegração na vida normal e plena da filha de doze anos de Jairo, considerada morta. Um texto em que Jesus encontra um masculino e um feminino feridos pelo condicionamento postos pela sociedade patriarcal e prospecta para eles "caminhos de liberdade e de dignidade" (p. 49).
Ao homem possuído por uma "legião" de espíritos impuros e forçado a viver marginalizado entre os túmulos, realizando atos contínuos de automutilação porque "provavelmente há algo em si mesmo que ele não aceita e quer apagar à força" (p. 51), Jesus se dirige a ele perguntando o seu nome. Ao fazê-lo, o tranquiliza e o reconhece como pessoa necessitada de libertação (p. 52).
Ao curar a mulher hemorrágica, Jesus "a exorta a tomar em mãos sua história e a sair do anonimato temeroso em que os outros a relegaram" e, em uma sociedade obcecada pela impureza, ele a liberta "da vergonha de se sentir inadequada” (p. 57).
Enquanto, na "cura" da filha de Jairo, a autora vê o desejo de Jesus de libertar as garotas dos condicionamentos e das pretensões paralisantes da tutela e da dependência paterna, tornando-a protagonista de sua própria vida (p. 58).
Comentando a resposta dada por Jesus aos que lhe perguntam se é lícito repudiar a esposa ou de quem na ressurreição será esposa a mulher que ficou viúva depois de se casar com sete maridos, a prof. Corallo demonstra como, em polêmica aberta e profética com uma determinada forma patriarcal e androcêntrica de entender o casamento, Jesus, nas vestes de rabino celibatário, se pronuncia contra o repúdio que deixa as mulheres sem sustentação financeira e se distancia de quem vê na mulher um mero instrumento de procriação.
“O privilégio androcêntrico de decidir o destino de uma mulher não pode ser tolerado por quem, como Jesus, anuncia com a vida e as palavras o rosto de um Deus amoroso e vital, atento à felicidade de cada criatura. Desta forma, Jesus condena o modelo patriarcal de casamento, fundado no privilégio e na gestão despótica de uma vida alheia, que conferia ao marido o direito de dispor da vida da esposa” (p. 78-79).
O projeto de Jesus de união entre duas pessoas fundada no desejo de ser "uma só carne" (Gn 2,24) se constrói dia após dia: é "um processo que está sempre em devir e nunca se completa, que se baseia no desejo de bem para a outra pessoa. Por isso, é impensável um repúdio que deixe a parceira privada de proteção e segurança para a vida” (p. 77-78).
“A obsessão procriadora não pertence à vida dos ressuscitados, porque simplesmente não pertence à vida autêntica […]. Ninguém precisa ser casado ou ter filhos para ter valor. Ninguém pode ser reduzido a uma engrenagem no sistema social e familiar. Nem mesmo para fins religiosos. Cada um e cada uma, por outro lado, é dotado de uma dignidade própria que merece respeito e proteção” (p. 81-82).
Entre as pessoas que são particularmente importantes para Jesus e que o sistema patriarcal ignorava completamente estão as crianças e as viúvas.
Na escala social, as crianças eram colocadas depois das mulheres e antes dos escravos. Não tendo direito à herança do marido, que passava aos filhos ou voltava ao clã de origem, a viúva encontrava-se numa situação particularmente instável e só podia contar com a assistência dos filhos. Para as viúvas sem filhos, "perfilava-se um futuro de dificuldades e mendicância, se não pior" (p. 94).
Jesus mostra como modelo de acolhimento do reino de Deus justamente as crianças e as mulheres viúvas: as crianças, não porque são ingênuas ou inocentes, mas porque são curiosas, generosas e vivamente abertas à vida com o desejo de aprender e crescer; mulheres viúvas, pobres e desprovidas de vínculos, sem proteção e sem segurança, principalmente quando não têm filhos.
É o que emerge de três famosas cenas evangélicas. Em uma, Jesus convida seus discípulos a acolher o reino de Deus com a típica disponibilidade das crianças.
Em outra, Jesus, querendo propor um estilo de serviço que deve caracterizar a vida de quem se coloca ao seu seguimento, coloca uma criança no centro.
Na terceira, exalta o comportamento de uma pobre viúva que coloca tudo o que tinha na caixa de oferendas do templo, ou seja, duas moedas de cinco centésimos (p. 96), um valor ridículo que, no entanto, aos olhos de Jesus tem um imenso valor porque, ao fazê-lo, a viúva não se valeu do supérfluo, mas colocou o pouco que lhe permite viver.
Com Jesus, o marginal torna-se central, o fraco torna-se ponto de referência, o privado de direitos torna-se o modelo a quem olhar (p. 92).
O caminho escolhido por Jesus é o da pequenez, da inevidência e da proximidade com os últimos.
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Evangelho e estereótipos patriarcais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU