12 Outubro 2022
"A teocracia é o mais brutal embuste que os seres humanos já criaram. Essa insídia visa perpetuar a subordinação daquelas classes sociais que, por seu aspecto minoritário, não conseguiram construir laços de "parentesco" com o suposto Deus que governa. No mundo islâmico, desde o século VII do calendário gregoriano, os 'vigários' de Deus ou do profeta sempre foram homens. No mundo xiita, após uma série de longas evoluções jurídicas, o instituto clerical (inacessível às mulheres) conseguiu se passar de vigário de Deus", explica Minoo Mirshahvalad, pesquisadora da Fundação João XXIII para as Ciências Religiosas. Ela trata de dieito xiita, imigração e relações de gênero na Itália e no Irã.
A entrevista é de Paola Cavallari, publicada por il manifesto, 08-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você poderia nos falar sobre a imagem extraordinariamente poderosa de jovens manifestantes que arriscam suas vidas porque não querem usar o véu?
Nas últimas semanas, o Irã testemunhou a tortura, o estupro e o assassinato de muitos homens e mulheres jovens; um crime perpetrado pela teocracia que deixará uma cicatriz eterna na memória do mundo. Estudantes alvejados com golpes de bastão ou jogados de prédios tornam-se o símbolo de uma dívida secular que nós iranianos tínhamos em relação ao xiismo. Nas últimas semanas, o Irã, mas também o Afeganistão, foram palco de notícias extraordinariamente ricas do ponto de vista sociológico. As revoluções sempre têm componentes inesperados que pegam de surpresa até os sociólogos mais atentos. Apesar do bloqueio de várias semanas à internet no Irã, na rede há vídeos das estudantes iranianas do ensino médio agitando seus véus correndo desarmadas contra os policiais, enquanto insultam homens armados que as espancam e atiram nelas. Estou impressionada com tanta coragem e raiva sem precedentes na história do país. É verdade que por quatro décadas após a Revolução de 1979 as mulheres iranianas cultivaram uma fúria sem precedentes dentro de si, mas por enquanto não posso explicar por que e como a geração das adolescentes atuais se sente tão profundamente partícipe desse rancor. É um evento que evoca a Revolução Francesa por sua violência e a audácia das protagonistas, porém lançado por mulheres com o surpreendente apoio dos homens.
Qual é a relação entre o véu e a liberdade para as mulheres iranianas?
Um ponto crucial deve ser especificado. O Alcorão nunca mencionou a cobertura da cabeça da mulher. No entanto, o véu, por uma série de razões sociopolíticas amplamente discutidas na literatura existente, tornou-se um elemento fortemente identitário com conotações políticas. O fato de a imposição do véu colidir com a liberdade da mulher não deriva do eventual calor que ela teria que suportar no verão ou do possível peso de um pedaço de pano. O problema é sentir-se reduzidas a objeto da propaganda política sem estar dispostas a isso. Quem é modelo está consentindo e, mais importante ainda, remunerada por esse trabalho. A mulher iraniana não consente nem é retribuída para ser o veículo de uma mensagem, política ou comercial que seja.
Não apenas no Irã, mas em outras realidades, as religiões tornaram-se novamente instrumento descaradamente político, alicerçado em um fundamento patriarcal.
Muitos/as jornalistas e políticos denunciam a teocracia iraniana, mas não tiram as consequências de um domínio patriarcal.
A teocracia é o mais brutal embuste que os seres humanos já criaram. Essa insídia visa perpetuar a subordinação daquelas classes sociais que, por seu aspecto minoritário, não conseguiram construir laços de "parentesco" com o suposto Deus que governa. No mundo islâmico, desde o século VII do calendário gregoriano, os "vigários" de Deus ou do profeta sempre foram homens. No mundo xiita, após uma série de longas evoluções jurídicas, o instituto clerical (inacessível às mulheres) conseguiu se passar de vigário de Deus. Portanto, visto que Deus precisaria de algum representante para governar a humanidade, e considerando a masculinidade dessa suposta representação no mundo islâmico, é claro que o patriarcado e a teocracia andam de mãos dadas. A memória italiana tem um longo rastro dessa colaboração, porém, a classe dominante junto com os órgãos de propaganda, continuam sendo predominantemente dirigidas por homens. Não é difícil ver as consequências.
Mulher, vida, liberdade: como você comenta esse slogan?
O slogan foi originalmente lançado pelo movimento de libertação curdo e parece ter sido cunhado por Abdullah Öcalan (o presidente do PKK, ndr). É um slogan muito progressista que estabelece uma relação direta entre as mulheres e a liberdade. Baseia-se na convicção de que a libertação das mulheres seja a pedra angular para a libertação de toda a sociedade. Essa ideia foi uma feliz formulação de Öcalan e promovida pelas ativistas curdas. Mahsa Amini, o símbolo das revoltas atuais, era curda e, portanto, a adoção desse slogan me parece muito oportuna e aquequada.
Na Europa, a onda do conservadorismo está se expandindo, e um dos pilares é o relançamento da família tradicional que confere às mulheres um papel "central e insubstituível". Vê alguma ligação?
Na Europa Ocidental, desde a Primeira Guerra Mundial, continua a ser nutrida uma nostalgia particular por um passado supostamente ordenado e sensato que foi comprometido com a "invasão" da modernidade. Um passado em que a relação entre gênero, família e autoridade tinha definições seculares e, portanto, bem estabelecidas. Especialmente depois do Concílio Vaticano II, somos chamados à "revolta contra o mundo moderno". Hoje, para algumas franjas do conservadorismo europeu, os estados autoritários - como o iraniano - são paradigmáticos e, infelizmente, na Itália, esse conservadorismo relembra o retorno ao passado apoiando o fundamentalismo islâmico. A consequência do retorno triunfal do conservadorismo na Europa, que com a crise da espiritualidade também faz um número considerável de prosélitos, infelizmente, aflige tanto o Oriente Médio quanto a própria Europa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Teocracia e patriarcado se alimentam". Entrevista com Minoo Mirshahvalad - Instituto Humanitas Unisinos - IHU