03 Outubro 2017
"A partir de maio de 1945 até hoje entramos em uma zona que não tem nome, por isso é o inominável atual". Roberto Calasso senta em seu escritório na Adelphi, no centro de Milão. Na mesa, o enésimo café, na frente, as prateleiras com o que resta da biblioteca Bobi Bazlen, o código genético do qual floresceu a editora desde sempre a mais inatual e mais atual da Itália. Atual é uma palavra que surge frequentemente. Como demonstra justamente o título do novo livro L’innominabile attuale (O inominável atual), sequência ideal do profético La rovina Kasch di (A ruína de Kasch), de 1983. É nesse tempo sem nome que vive a última evolução do Homo sapiens, o que Calasso define como Homo saecularis: nós.
A entrevista é de Dario Olivero, publicada por la Repubblica de 30-09-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
"O Homo saecularis – ele explica - é um resultado muito sofisticado da história. Para chegar a ele foi preciso se despojar de um monte de pesos. E essa falta de gravames de vário gênero - religioso, político, tradicional - não produziu satisfação ou felicidade, mas uma espécie de pânico. A vitória da secularidade, que agora já permeia o mundo inteiro, é paradoxal. O Homo saecularis encontrou-se diante de um mundo com o qual não é capaz de lidar. Ele venceu, mas falta-lhe algo essencial; domina, mas se revolta contra si mesmo. Todos os nomes que usa são inadequados e exigiriam uma "retificação" que, de acordo com Confúcio, era a primeira tarefa do pensamento. Disso surge o título do livro, que acabou se impondo após 34 anos de latência".
O livro é dividido em duas partes. A segunda é uma polifonia de vozes (Virginia Woolf, Simone Weil, Walter Benjamin, Céline), que descrevem momentos sobre o que acontecia entre 1933 e 1945, da tomada do poder por Hitler até o fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira parte, ao contrário, é toda sobre o presente. "As duas partes - explica Calasso - são uma o contrapeso da outra. A primeira é um pouco como se estivesse vagando no ar, falando sobre este mundo sem amarras firmes, caso não fosse pressuposta a outra, que é um último, tremendo embate, como o que ocorre entre rochas que se chocam tentando destruir-se e se autodestruindo. Quem não conhece esse pressuposto não vê o embasamento do que está acontecendo hoje".
Uma categoria que utiliza é a do turista. Por quê?
O mundo do Homo saecularis não tem uma categoria que o represente. Não podemos dizer o que sejam o funcionário, o operário, o gerente ou o político. O turista, ao contrário, é a única categoria que cobre tudo. O turista de quem falo não é só aquele que viaja, mas o modelo antropológico da realidade virtual. Os técnicos da realidade virtual falam de uma "realidade aumentada", que, no entanto, baseia-se em uma realidade diminuída, à qual foi subtraído um caráter imprescindível: a irreversibilidade. Sobre esse caminho se encontram tanto o fanático da ciberconexão como o energúmeno que quer consertar o mundo.
O Homo saecularis também se revolta contra a democracia.
A democracia formal é o único modelo que torna o mundo vivível, mesmo que, por razões puramente demográficas, é quase impraticável. Contudo, caso não existisse, na Índia, por exemplo, haveria um massacre contínuo. É a última barreira para tornar a vida tolerável, fora dela existem apenas a tortura e os regimes policiais. Mas toda democracia precisa defender-se de enormes forças contrárias.
Um dos pilares democráticos em discussão é a ideia de que a representação seja superada pela participação direta.
A mediação é decisiva. Não respeitá-la é uma forma de pensamento ignorante, porque a mediação é o que nos constitui, embora seja continuamente vituperada como se fosse aquilo que falsifica tudo. Mas nossa percepção já é uma mediação, em sentido fisiológico. Para ver algo, recorremos a um filtro. Se isso não for considerado, acaba-se por pensar que a mediação é o agente que te ludibria, o jornalista enganador, o político ou, como aconteceu, o maligno judeu. É triste. Essa aversão indica que se tornou mais rústico o tecido do ato de pensar. Ao se ‘desintermediar’ o mundo, quem não tem o dom da refratariedade deixa-se facilmente enganar. Ela considera a sua voz como sendo a vox populi. O Homo saecularis livrou-se das religiões, mas é terrivelmente crédulo.
Uma das causas é a revolução digital.
É uma imensa reviravolta. Da qual estamos vendo apenas o começo. Na Silicon Valley, que é seu epicentro, assiste-se a um fenômeno que não tem precedentes. Existem alguns empreendedores, que podem até ser considerados como intelectuais audaciosos ou delirantes charlatães, dependendo do ponto de vista, e esses empreendedores geram investimentos que modificam o mundo dia a dia.
Sob o nome de inteligência artificial hoje se abriga - não mais como na década de 1970, uma espécie de doutrina esotérica - mas uma potência econômica avassaladora. Naquelas paragens não se fala e não escreve outra coisa que não sobre o momento, em parte desejado em parte temido, e para muitos bastante próximo, em que as máquinas serão mais inteligentes do que nós. O que fica excluído é a palavra mais importante: consciência. Sobre o que seja e como funcione nenhum neurocientista conseguiu dizer algo além de murmúrios balbuciantes. Seria proveitoso para todos ler os Upanixades.
O que você acha da atual situação da Europa?
Espero que a Europa continue a se manter como medida de mínima autodefesa, mas vejo sua total impotência. A política europeia é apenas reativa, não ativa. Uma tentativa de reagir a fatos esmagadores. Os altos funcionários tentam mantê-los sob controle, mas quando se começa a usar o termo "manter sob controle" quer dizer que tudo já está fora de controle.
As categorias que você utiliza para nomear os nossos tempos são definitivamente inatuais. Por exemplo, a ideia de sacrifício. Como pode um conceito tão arcaico ser útil para descrever a atualidade?
O sacrifício é a coisa mais difícil a ser pensada com que já me deparei. Certamente não é minha invenção, é encontrada em todo lugar na história. Por um período muito longo as civilizações mais distantes estão acomunadas pelo fato de que, em formas distintas todas praticam o sacrifício, da China à Índia, à Grécia e à Palestina. Depois, há uma virada: com Jesus o sacrifício quer acabar para sempre e tornar-se, na missa, memória do sacrifício. Mas, ao mesmo tempo, a morte de Jesus é um retorno às origens do sacrifício, onde é o deus que se sacrifica. Por fim, existe o hoje, em que a prática ritual é eliminada, não tem direito de cidadania. Mas o assassinato-suicídio dos terroristas islâmicos, ameaça que continua a paralisar o mundo, é uma evidente forma de sacrifício, onde a vítima é o executor e todos aqueles que ele acaba matando são o fruto do sacrifício. O sacrifício não desaparece porque a sociedade secular decidiu não usá-lo mais como ato ritual. Volta por outras formas: o terrorismo e, principalmente, a guerra, a partir da Primeira Guerra Mundial. Se você for ler Os Últimos dias da Humanidade de Kraus, verá que se fala mais de sacrifícios do que de batalhas. Depois, na Segunda Guerra Mundial, o sacrifício torna-se uma obra de desinfestação, com os campos de extermínio. Que, por um horripilante equívoco, continua a ser chamado com a mesma palavra que designa o sacrifício de agradecimento celebrado por Noé após o dilúvio: holocausto.
Onde está, hoje, o sacrifício?
Não é mais uma categoria religiosa. Se o religioso implica um contato com o invisível, no caso do terrorismo islâmico isso não existe. O fruto do sacrifício não é mais no invisível, mas na multiplicação dos assassinados no mundo visível. Mas o sacrifício continua a existir, a sociedade não consegue a viver sem.
Mas a razão última do terrorismo islâmico é geralmente considerada religiosa.
Definição que me parece imprópria. Na origem, está presente muito mais a necessidade de uma vingança global, uma rejeição do mundo ocidental. Certo número de pessoas, em uma faixa de países que vai do Marrocos à Indonésia, e abrange mais de um bilhão e meio de habitantes, sente-se oprimido, exautorado. No modo de vida, de ser. Assim, no livro também trato de pornografia, não menos importante do que a conquista econômica. O fato de que, de uma hora para outra, em países com relações muito tortuosas com o erotismo, a visão de um incontável número de corpos femininos nus praticando atos sexuais, tenha se tornado acessível gratuitamente on-line em poucos segundos foi um choque enorme, que zombava do desejo ao mesmo tempo em que o suscitava.
Você escreveu que quando a cultura é combinada com o lucro, a verdadeira cultura morre.
A palavra ‘lucro’ é o desastre em que se fundamenta toda a economia e remonta a Bentham, seu progenitor, muitas vezes ignorado. O cálculo de custo-benefício em determinada ordem das coisas é totalmente equivocado. Na ordem do prazer, como em todas as coisas básicas da vida, não pode ser aplicado.
Mas, em seu livro você fala dos refratários a esse estado das coisas, aquelas que não se identificam na figura de Homo saecularis. Eles estão perdidos, sozinhos, e nem mesmo a universidade, você escreve, é um lugar onde possam ser ouvidos.
Parece-me que a universidade como instituição esteja perdendo toda linfa vital, não só na Itália, mas em todos os lugares. Sei que lá ainda existem pessoas de alta qualidade, mas estão sofrendo.
Cito de uma sua entrevista: "Nos anos 1950 na Itália havia três agregações: a marxista, a laico-liberal e a católica. Os marxistas, caso fossem inteligentes, liam os livros da Einaudi, ou pelo menos a revista "Il contemporaneo". Os laico-liberais liam o semanal "Il Mondo" e os católicos, no geral, liam muito pouco. Os democratas-cristãos estavam satisfeitos com a pura gestão do poder e haviam percebido que era melhor deixar a cultura para a esquerda".
Ainda acho que a descrição esteja correta. Mas reconheço que naqueles anos estavam vivas e ativas pessoas bem mais significativas do que nos dias de hoje. No entanto, eu sentia certa impaciência com aquele mundo tripartido. Para o qual a Adelphi se opôs desde o início, saindo fora.
As publicações da Adelphi têm acompanhado de maneira transversal os italianos, incluindo a classe dominante do país. Em sua opinião, que impacto cultural tiveram?
Tenho dificuldade em identificar uma classe dominante na Itália de hoje e certamente não a vinculo com o que publicamos. Interessa-me apenas o efeito sobre a pessoa individualmente. As pessoas que leem os nossos livros são as mais variadas. Às vezes elas se encontram e se reconhecem entre si. Mas nunca contei com um efeito social ou político. O editor como pedagogo é uma concepção para mim totalmente estranha.
Você não se sente solitário?
Nem tanto, porque considero um prodígio recorrente que os livros continuem a vender. Sou tentado a pensar que um número de pessoas compatível com o que publicamos ainda existe. E não são poucas - embora não tão perceptíveis. Desconhecidos leitores no inominável atual.
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"Em um mundo sem o sagrado nos tornamos apenas turistas" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU