15 Junho 2023
"Diante do risco de a igreja perder peso específico e papel na vida civil, o chefe dos bispos não hesitou em fazer um pacto de ferro com o Cavaliere e confiou-lhe a defesa dos princípios avaliados pela igreja como 'não negociáveis'", escreve Francesco Peloso, jornalista, em artigo publicado por Domani, 14-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A grande aliança entre a Igreja italiana liderada pelo Cardeal Camillo Ruini e Silvio Berlusconi, começou a desmoronar em 2009 com o aparecimento do escândalo acompanhantes-prostituição que atingiu o então primeiro-ministro, e se esfacelou definitivamente em novembro de 2011, quando caiu o governo liderado pelo Cavaliere.
Mas, ao menos simbolicamente, a situação já havia se complicado alguns meses antes: em fevereiro do mesmo ano, de fato, em Roma, durante a grande manifestação de mulheres promovida pelo movimento "Non una di meno", havia subido no palco a Irmã Eugenia Bonetti, religiosa engajada há muitos anos na luta contra o tráfico de seres humanos e a prostituição como forma de escravidão moderna, para dizer em termos claros: “As notícias constantes que nestas ultimas semanas se sucedem de forma descarada nos nossos jornais e programas de televisão e de rádio nos deixam consternados e nos levam a pensar que ainda estamos muito longe de considerar a mulher pelo que ela realmente é e não simplesmente como um objeto ou uma mercadoria a ser usada”.
Afinal, não era tanto o lado judicial da história a ter colocado em dificuldades a alta cúpula da igreja e a ter indignado parte do mundo católico, mas justamente a insustentabilidade moral, ética, do escândalo em que o primeiro-ministro estava envolvido.
No entanto, Ruini permaneceu ligado ao Cavaliere se, ainda nos últimos dias, quis lembrar como seu grande mérito aquele de ter evitado a vitória dos ex-comunistas em 1994 (o muro de Berlim já havia caído desde 1989).
E talvez o cardeal até tenha ficado ainda mais grato a Berlusconi por ter se oposto com força àquela parte dos católicos pós-democratas-cristãos que escolheram ir para o lado do centro-esquerda na segunda República, os chamados católicos adultos, dos quais Romano Prodi foi o expoente mais proeminente, que acreditavam na autonomia da esfera política e pública em relação a uma visão confessional e de vieses clericais da sociedade.
Afinal, diante do risco de a igreja perder peso específico e papel na vida civil, o chefe dos bispos não hesitou em fazer um pacto de ferro com o Cavaliere e confiou-lhe a defesa dos princípios avaliados pela igreja como "não negociáveis": não aos casamentos e uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, não ao testamento vital, não à procriação assistida; enquanto era necessário apoiar as escolas católicas, os sistemas de saúde católicos até forçar o princípio de subsidiariedade a favorecer a intervenção do setor privado social (e portanto católico) na gestão dos serviços públicos.
A igreja de Ruini foi ao mesmo tempo, no plano internacional, muito prudente no tema da migração e, portanto, fortemente refratária em termos de abertura ao diálogo com outras religiões e culturas; de fato, era alinhada, ainda que com tons mais brandos, à abordagem teo-con promovida pela Casa Branca liderada por George W. Bush.
O projeto neoconservador e neoconstantiniano, marcado por family days, do cardeal Ruini, no entanto, chocou-se contra dois obstáculos intransponíveis. Em primeiro lugar, o fato de que o próprio Berlusconi havia sido, por meio de suas emissoras de TV e do modelo empresarial e político que promovia, a escala de valores de que era portador, um dos mais poderosos fatores de descristianização da sociedade italiana; em segundo lugar, a crise econômica que se abateu sobre o país a partir de 2008, colocando a Itália num processo de declínio econômico e social que ainda hoje persiste, mostrou o quanto de irrealista e de frágil havia no projeto de Ruini.
Por outro lado, algumas batalhas de forte sabor ideológico, como aquela travada no caso de Eluana Englaro, contribuíram para afastar o favor da opinião pública da ação da igreja. No entanto, mesmo naquela conjuntura, o apoio do Cavaliere não faltou, o governo fez de tudo para evitar a interrupção das terapias após 17 anos de estado vegetativo da mulher; na época, era 2009, Berlusconi chegou a dizer que “Eluana é uma pessoa viva, respira, as suas as células cerebrais estão vivas e poderia, hipoteticamente, até ter filhos. Todo esforço é necessário para não a deixar morrer."
Também é verdade que uma forte patrulha de expoentes católicos, principalmente de centro-direita, agia como anteparo aos pedidos cada vez mais urgentes vindos da conferência episcopal. Com a chegada de 2011, porém, a crise do moderno pacto trono-altar tornou-se irreversível e também a extrema tentativa de promover Roberto Formigoni como novo líder da centro-direita, contando com as tropas da CL, não teve sucesso.
Também porque no meio tempo algo também havia se quebrado na igreja. Enquanto isso, a concorrência entre a secretaria de estado do cardeal Tarcisio Bertone e a CEI em relação à gestão das relações com a política italiana abriu uma profunda crise na Igreja e nas relações com a Cúria vaticana, se seguiu uma temporada de venenos, golpes baixos e lutas internas nada edificantes.
Finalmente, não se deve esquecer que os desdobramentos das aventuras financeiras do berlusconismo também chegaram ao Vaticano quando veio à tona o escândalo dos "grandes eventos"; as investigações trouxeram à tona as conexões entre uma especulação sem escrúpulos liderada por empresários, altos funcionários do Estado, oportunistas e ambientes do Vaticano.
Dessa mistura nasceu a convicção entre os cardeais de todo o mundo que tivesse chegado a hora de liberar a Santa Sé da relação preferencial com a Itália e iniciar profundas reformas na gestão das finanças do Vaticano.
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A grande aliança entre o ‘Cavaliere’ e a Igreja, sacrificada no altar dos escândalos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU