19 Mai 2023
"Mártir não é aquele que tira a própria vida, mas aquele que a doa pelos outros para que possam receber vida. Ele sofre o mal em vez de praticá-lo. Não se opõe ao inimigo, mas alimenta o envolvimento solidário, assimilando-se ao Cristo crucificado. Sua dimensão ética é evidente, mas a dimensão cristológica é prioritária", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 18-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No reconhecimento dos 21 mártires coptas na Líbia (11 de maio de 2023) como no início da quarta forma de reconhecimento de santidade (dar a vida pelos outros; Maiorem hac dilectionem, 11 de junho de 2017) a experiência de mártir vai além das fronteiras confessionais e se aproxima de uma comunhão universal (salvar a humanidade de todos). As testemunhas da fé arrastam as Igrejas para além das suas fronteiras, interceptam a consciência do povo cristão e abrem-na à comunhão com todos os "justos".
No encontro com Tawadros II, papa da Igreja copta (11 de maio), o Papa Francisco concluiu assim seu discurso: “Não tenho palavras para expressar minha gratidão pelo precioso presente de uma relíquia dos mártires coptas mortos na Líbia em 15 de fevereiro 2015. Esses mártires foram batizados não só na água e no Espírito, mas também no sangue, um sangue que é semente da unidade para todos os seguidores de Cristo. Tenho o prazer de anunciar hoje que, com o consenso de Vossa Santidade, esses 21 mártires serão inseridos no Martirológio romano como sinal da comunhão espiritual que une as nossas duas Igrejas".
Tawadros, usando a imagem de um grande círculo de crentes em torno do Deus de Jesus, sublinhou: “Cada um de nós encontra-se num ponto desse círculo e cada vez que nos aproximamos de Deus, aliás no centro do círculo, estamos nos aproximando uns aos outros, nos entendemos pela proximidade à luz divina e o nosso amor cresce dia após dia através da nossa proximidade com Deus".
Em 2001, alguns santos ortodoxos foram introduzidos no Martirológio e o anseio de um martirológio comum já estava presente em João Paulo II com a encíclica Ut unum sint (1995), mas é a primeira vez que a inclusão ocorre com a aprovação explícita do responsável de uma confissão não católica. Sugerindo assim que as outras confissões possam ter voz no reconhecimento do martírio.
Sobretudo porque - ressaltam alguns - o reconhecimento eclesial carrega o peso da infalibilidade. “O ecumenismo dos mártires é o desafio mais central do ecumenismo”, disse o card. Kurt Koch, do dicastério para a promoção da unidade dos cristãos. E o Papa Francisco, falando dos mártires de Lübeck, vítimas do nazismo, reafirmou: “Se os ditadores reúnem nós cristãos na morte, como podemos nos separar na vida?”.
O Estado Islâmico fez prisioneiros na Líbia 21 trabalhadores cristãos da construção civil e os fez desfilar algemados na praia vestindo macacões laranja. Eles foram decapitados e seus corpos recuperados em 2017 após a revelação de um dos autores do massacre. Imediatamente homenageados pelo povo, eles agora são conservados na catedral de São Marcos, no Cairo.
A vigésima primeira vítima, provavelmente de Gana, não era cristã. Pela realidade da graça própria do martírio, a morte é equiparada ao batismo, o “batismo de sangue”.
O martírio é próprio de todo o cristianismo. Como escreveu Annalena Tonelli, assassinada na Somália em 2003: “A vida ensinou-me que a minha fé sem o Amor é inútil... que aquela Eucaristia que escandaliza os ateus e as outras religiões contém uma mensagem revolucionária: este é o meu corpo, feito pão para que tu também te faças pão na mesa dos homens, se não te fizeres pão e não comeres um pão que te salva, comerás a tua condenação”.
Mártir não é aquele que tira a própria vida, mas aquele que a doa pelos outros para que possam receber vida. Ele sofre o mal em vez de praticá-lo. Não se opõe ao inimigo, mas alimenta o envolvimento solidário, assimilando-se ao Cristo crucificado. Sua dimensão ética é evidente, mas a dimensão cristológica é prioritária. A sua paciência e mansidão pressupõem um coração pacificado por Cristo que justifica a resistência perseverante (cf. Ludovica M. Zanet, Martirio: scandalo, profezia, comunione, Bolonha 2017).
Ícone em homenagem aos mártires coptas (Foto: Settimana News)
Se a tradição ortodoxa insiste na manifestação teofânica e taumatúrgica, aquela protestante converge para uma leitura cristológica.
Bento XIV (1740-1758) indicou os critérios católicos: morte violenta, ódio contra a fé e testemunho explícito. Critérios agora submetidos a modificações para as formas de martírio de 1900. Os mártires das ideologias ateias, das tendências anticlericais (México, Espanha), do absolutismo estatista (nazismo), da "segurança nacional" (América do Sul) direcionam a atenção para a solidariedade, a justiça e o conjunto da vivência (cf. A Riccardi, Il secolo del martirio. I cristiani del ’900, Milão 2000).
A fé do mártir “vai muito além da simples convicção de que algo seja verdadeiro; é uma fé que urge ser realizada, não sendo senão o cumprimento de uma dedicação feita por amor, ao seguimento de Cristo. Em comparação com uma verificação simplesmente noético-intelectual da fé, afirma-se hoje cada vez mais a atenção sobre a totalidade da existência do mártir" (G. Bof em Martirio, Fondazione San Carlo, Modena 2005, p. 118; cf. também seu vol. Il martire oggi, Milão 1999).
As 12.000 histórias coletadas em Roma por ocasião do ano sagrado de 2000 são uma gota em relação à estimativa que vai de um a três milhões ao longo do século XX.
Aleksandr Jakovlev, presidente da comissão para a reabilitação das vítimas do comunismo russo, falou de 200.000 bispos, padres e diáconos mortos por causa de sua fé.
E, nos primeiros vinte anos do século XXI, as vítimas de martírio seriam cerca de 10.000 por ano, enquanto os cristãos expostos à perseguição atingem a cifra de 360 milhões.
As "novas" perseguições encontram alimento no fundamentalismo islâmico, na aplicação da Sharia como lei fundamental, nas crenças identitárias, no ateísmo ideológico, na desintegração do Estado, no crime generalizado e organizado, no identitarismo étnico.
A ampliação da reflexão sobre o martírio é visível na quarta via para a proclamação da santidade cristã para aqueles que heroicamente ofereceram a vida pelo próximo, aceitando livre e voluntariamente uma morte certa e prematura. Está previsto no motu próprio Maiorem hac dilectionem de 11 de junho de 2017.
As três vias anteriormente percorridas eram: o martírio, o exercício das virtudes heroicas, a canonização denominada “equipolente”, ou seja, um culto atestado e reconhecido no tempo. O pontífice romano pode considerá-lo testemunho de santidade mesmo sem o milagre exigido.
Com os novos critérios, entraram no santoral figuras como as seis religiosas italianas que, em 1995, aceitaram conscientemente permanecer em seu serviço de enfermeiras em Kikwit (Congo) mesmo na presença da epidemia de ebola. É possível que algumas pessoas que morreram por um serviço generoso durante a pandemia do Covid possam ter o mesmo reconhecimento.
É uma santidade de comunhão, um testemunho de partilha já celebrada na exortação apostólica de Francisco, Gaudete et exsultate (19 de março de 2018): “A santidade é o rosto mais belo da Igreja. Mas, mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita ‘sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo’”
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Mártires: à frente das Igrejas. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU