26 Abril 2023
"Se a Igreja é constantemente interpelada a dar oportunidade de acesso à Sagrada Escritura a todos e, se especialistas e servidores da Palavra, criativamente, são chamados a encontrar formas de acesso de todos à Palavra de Deus as páginas desta obra cumprem esta função e comprovam que Palavra de Deus e ação missionária se complementam irrenunciavelmente, fazendo com que a Igreja, dentre suas preocupações missionárias, coloque a apresentação da Palavra de Deus e o auxílio à sua acolhida como parte indispensável da missão", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
David A. Holgate é subdiretor e professor de Teologia e Missão na Catedral de Manchester e Rachel Starr é diretora de estudos da Queen's Foundation for Ecumenical Theological Education, em Birmingham são os autores da obra: Hermenêutica bíblica (Vozes, 2023, 360 páginas). A primeira edição do livro foi preparada quando os referidos autores trabalhavam com professores e alunos do Southen Theological and Training Scheme e, desde então, o livro foi amplamente utilizado na educação teológica. Por convite do Student Christian Movement, Holgate e Starr fizeram a revisão para uma segunda edição.
Oferecer boas estratégias interpretativas das Sagradas Escrituras é o escopo deste manual, ou seja, este livro estruturado em sete capítulos apresenta uma série de métodos críticos para capacitar o leitor a interpretar por própria conta as passagens bíblicas. Os autores salientam quer ler a Bíblia de maneira correta exige compreender não só o que estamos lendo, mas também quem nós somos enquanto leitores.
Hermenêutica bíblica, de David A. Holgate e Rachel Starr
O primeiro capítulo, Para onde queremos ir? (p. 13-21), apresenta a razão geral para estudar a Bíblia, como também a tarefa particular a executar. Os autores observam que existem diferentes razões para ler a Bíblia e, estas podem ser agrupadas em objetivos públicos e objetivos baseados na fé. Este passo do processo interpretativo ajudará o leitor a identificar a razão geral para estudar a Bíblia, a identificar o foco interpretativo ao estudar determinada passagem e compreender como esse foco afeta a leitura de uma passagem bíblica, ter clareza a respeito das perguntas com que começamos, mesmo se estas forem diferentes das perguntas com que terminamos, encontrar uma interpretação provisória e responsável de uma passagem bíblica.
No segundo capítulo intitulado Experiência passada e expectativas presentes (p. 23-77), os autores buscam esclarecer qual é a nossa relação com a Bíblia examinando como nossa experiência coletiva e individual da Bíblia afeta a tarefa interpretativa. Para isso, Holgate e Starr começam perguntando onde e como podemos encontrar a Bíblia em nossa vida diária. Observam como a Bíblia moldou comunidades e culturas e finalizam esta primeira parte observando que, apesar da familiaridade cultural do Ocidente com a Bíblia, esta permanece um texto estranho e misterioso. Em seguida, examinam as diferentes expectativas acerca da autoridade e do status da Bíblia e concluem fazendo considerações sobre o status da Bíblia como escritura nas comunidades judaicas e cristãs.
Neste passo do processo interpretativo exige-se que se leve em consideração a influência social, cultural e política da Bíblia em seu próprio contexto e em outros contextos, a natureza pouco familiar da Bíblia, quer como um texto do antigo Oriente Médio, quer como um texto que por alguns é considerado divino identifique-se sua própria compreensão da autoridade e do testemunho da Bíblia, seja identificado seu próprio cânone extenso e faça uso apropriado dele, se observe como o uso de um lecionário molda a interação de uma comunidade de fé com a Bíblia; se reconheça o valor dos textos centrais e marginais, que cada pessoa examine como resolve tensões e diferenças presentes na Bíblia.
O terceiro capítulo, intitulado Instrumentos para a exegese (p. 79-132), trata especificamente da exegese, mostrando alguns instrumentos e abordagens que ajudam a nos envolver mais sistematicamente com qualquer passagem da Bíblia que temos diante de nós como, por exemplo, a abordagem sincrônica, a abordagem diacrônica. Os autores observam que os instrumentos que temos à disposição para examinar a Bíblia precisam levar em conta a configuração, o contexto e a formação de uma passagem.
Neste passo do processo interpretativo adquire-se familiaridade com um texto mediante uma série de métodos que incluem copiar e memorizar, a utilizar a análise do discurso para identificar detalhadamente a estrutura e a composição de um texto, a utilizar a crítica narrativa para identificar e explorar traços narrativos, como acontecimentos, personagens e estratégias narrativas, a ler o texto na língua original ou utilizar uma série de traduções, a utilizar as compreensões da crítica textual, a reconhecer como as palavras evoluem ao longo do tempo e a necessidade de explorar o sentido histórico de uma palavra ou uma expressão presentes num texto; a utilizar o uso oral anterior de um texto e seu gênero, a utilizar a crítica das fontes para identificar fontes escritas anteriores de um texto-fonte múltiplo, a utilizar a crítica da tradição para situar o texto nos ciclos mais amplos da narrativa e das tradições, a utilizar a crítica da redação para considerar as crenças teológicas do autor ou editor final de um texto, a utilizar métodos que exploram o pano de fundo social, político e religioso mais amplo de um texto, a utilizar os métodos da história dos efeitos para explorar como um texto foi recebido e sua influência ao longo do tempo.
No quarto capítulo, intitulado Nossa realidade (p. 133-196) são oferecidos alguns meios para pensar sobre a maneira como criamos o sentido de um texto enquanto leitores, nossa identidade enquanto leitores, o lugar onde lemos e as comunidades com as quais nós lemos. Os autores terminam o capítulo estimulando a leitura da Bíblia em contato com diferentes identidades, contextos e comunidades, a fim de tirar proveito dos muitos sentidos que criamos como leitores.
Este passo no processo interpretativo ajuda a reconhecer o papel do leitor ao criar o sentido de um texto, a descrever sua própria identidade e começar a considerar como diferentes aspectos afetam a interpretação, entre os quais: gênero e sexualidade, etnicidade e identidade de cor, idade, capacidade e bem estar, status socioeconômico e filiação política, tradições denominacionais, espirituais e teológicas, a empreender a análise social de seu contexto, mediante uma cuidadosa observação e o uso de métodos apropriados de análise, a considerar as comunidade de pertencimento e como ler a Bíblia como membro dela.
No quinto capítulo, intitulado Leituras comprometidas (p. 197-239), os autores examinam como nossas comunidades afetam nossa maneira de interpretar a Bíblia. Holgate e Starr notam que “nossas comunidades surgem da experiência que temos da nossa realidade e da consciência que temos das nossas próprias necessidades e das necessidades dos outros” (p. 197). Frente a isso, nos últimos anos foram desenvolvidos muitos instrumentos críticos novos para permitir que os intérpretes leiam a Bíblia de uma maneira que satisfaça suas necessidades e as necessidades dos outros.
Neste passo do processo interpretativo aprende-se a reconhecer como os compromissos pessoais afetam a leitura do texto, a levar em consideração as leituras globais, inclusive a crítica pós-colonial e a leituras vernáculas, a identificar os próprios compromissos ideológicos, os do texto e os de outros métodos, a reconhecer a maneira como o fato de ler a partir de uma perspectiva de fé influencia a interpretação, inclusive observando o efeito dos métodos de leitura espiritual, ouvindo a Bíblia num contexto de culto e leituras que nutrem o discipulado, a explorar a leitura da Bíblia ao lado de outros textos sagrados, a fazer uso de bons comentários.
No sexto capítulo, intitulado Possibilitando o diálogo com o texto (p. 241-286), os autores ajudam a analisar nosso diálogo com a Bíblia esclarecendo estas perguntas: Como podemos ouvir corretamente o que a Bíblia diz, particularmente quando ela fala com diferentes vozes? Como trazermos para a conversação nossa experiência? E quem deve ter a última palavra? Em suma, esse capítulo ajuda o leitor a examinar como podemos travar um diálogo frutífero com a Bíblia, seja qual for nossa compreensão de sua inspiração ou de nossa autoridade.
Este passo no processo interpretativo ajuda a ver a interpretação como uma forma de diálogo, a considerar como o contexto de um texto e o contexto da interpretação se relacionam mutuamente, a identificar suas chaves hermenêuticas a partir da Bíblia, de uma perspectiva de fé e de seu contexto e compromissos, a praticar a leitura da Bíblia como história e observar como isto abre espaço para o diálogo entre o texto e contexto do leitor, a abrir espaço para que a Bíblia critique a interpretação feita pelo leitor, a opor-se a interpretações violentas e danosas da Bíblia.
Por fim, no sétimo capítulo, intitulado Nossa meta: interpretações defensoras da vida (p. 287-300), os autores trazem uma avaliação do processo de interpretação trabalhado nos capítulos anteriores. Neste passo do processo interpretativo aprende-se a revisar o ponto de partida no processo interpretativo, a considerar as diferentes razões acadêmicas e baseadas na fé para estudar a Bíblia e como pode haver um diálogo entre elas, a comprometer-se com interpretações da Bíblia defensoras da vida.
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Em suma, as páginas desta valiosa obra ressaltam a importância de:
a) definir o objetivo de cada ato de interpretação bíblica,
b) assim como avaliar se nossas metas foram alcançadas,
c) a consideração das questões literárias, históricas e da história, pôr a Bíblia em diálogo com urgentes questões sociais, políticas, culturais, teológicas, éticas contemporâneas.
Os autores observam que precisamos ter consciência da maneira como vemos o texto desta maneira - atentos ao texto real que temos diante de nós, sendo diligentes em nossas tentativas de compreender o que ele realmente diz e não o que pensamos que ele diz. Frente a isso, Holgate e Starr salientam existir uma série de instrumentos exegéticos à nossa disposição para ajudar-nos a fazê-lo em vista de que sejamos “intérpretes responsáveis”, sem eximir de reponsabilidade o texto e nós mesmos, abertos ao texto e também a quem somos e que reconheçamos quando este diálogo convida a novas definições de nós mesmos, do mundo ou de nossas ideias/crenças, mais concretamente, devemos esperar que nosso encontro coerente com o texto nos mude para melhor.
Esta obra vem ao encontro de nossa caminhada eclesial. Se a Igreja é constantemente interpelada a dar oportunidade de acesso à Sagrada Escritura a todos e se especialistas e servidores da Palavra, criativamente, são chamados a encontrar formas de acesso de todos à Palavra de Deus, as páginas desta obra cumprem esta função e comprovam que Palavra de Deus e ação missionária se complementam irrenunciavelmente, fazendo com que a Igreja, dentre suas preocupações missionárias, coloque a apresentação da Palavra de Deus e o auxílio à sua acolhida como parte indispensável da missão.
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Hermenêutica Bíblica. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU