04 Abril 2023
"A escolha de Francisco poderá, como também é inerente à escolha do processo sinodal, produzir uma maior difusão do Evangelho?", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 02-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 13 de março, ao se completarem dez anos de pontificado, poucas semanas após a morte de Bento XVI (31-12-2022), apareceu nas livrarias uma dezena de textos relativos ao magistério e ao governo de Francisco. Diferente na abordagem (texto ou entrevista), mas sobretudo na perspectiva. As polaridades mais comuns são: liberal/conservador; amigos/inimigos; reformador/contrarreformista; pontos discutidos/confirmações; compreendido/incompreendido; narrado/julgado; teólogo/pastor…
O historiador Daniele Menozzi optou por outro caminho: a perspectiva histórica, ou seja, sua colocação em uma linha a longo prazo e com critérios não determinados pelo debate imediato: Il papato di Francesco in prospettiva storica (O papado de Francisco em perspectiva histórica; Morcelliana, Brescia 2023).
A mudança mais significativa produzida pelo Papa Bergoglio está ligada à evangelização, à forma como a Igreja se relaciona com a história contemporânea.
Os pontos de referência decisivos não são tanto o depósito doutrinal e a lei natural, entendida como patrimônio comum de valores interpretado pela Igreja, mas sim a fonte evangélica e a atenção dada aos "sinais dos tempos", aos elementos do acontecimento histórico que mostram um bem moral coerente com o Evangelho.
No primeiro caso, trata-se de adequar a doutrina aos novos desafios; no segundo, parte-se dos desafios questionando o Evangelho e modelando o ensino e a praxe de forma coerente. Ambas são vias que encontram raízes nos textos conciliares, mas a primeira (a referência é a Maritain) foi a que prevaleceu no magistério papal e foi coerentemente sustentada tanto por João Paulo II quanto pelo Papa Ratzinger, em um crescente distanciamento com a cultura civil, pelo menos ocidental.
Il papato di Francesco in prospettiva storica (O papado de Francisco em perspectiva histórica; Morcelliana, Brescia 2023) (Foto: Divulgação)
A segunda está igualmente ligada à tradição, mas, privilegiando o Evangelho, coloca o tema ético em segundo plano, mas não secundário. A coerência com o Evangelho e sua mensagem de misericórdia é mais importante do que com “valores não negociáveis”, para os pedidos últimos aos legisladores.
No primeiro caso, a Igreja permanece "outra" em relação ao mundo. No segundo caso, a Igreja, ainda que ferida e minoritária, participa com o seu patrimônio evangélico na busca comum dos povos e das sociedades.
A renúncia do Papa Bento XVI é emblemática do impasse da primeira hipótese. A escolha de Francisco poderá, como também é inerente à escolha do processo sinodal, produzir uma maior difusão do Evangelho?
“Francisco apresenta uma proposta de reforma eclesial que parte de uma precisa conscientização: desvaneceu-se irreparavelmente o projeto de retorno a um regime de cristandade anteriormente perseguido, embora de maneiras diferentes, pela autoridade eclesiástica. Nesta situação, cabe a todos os batizados - leigos e pastores juntos - identificar as modalidades de um novo anúncio do Evangelho, cuja inteligência, ligada aos sinais dos tempos, encontra hoje um modelo interpretativo fundamental na figura fraterna e misericordiosa do bom samaritano" (p 15).
Francisco é filho do Concílio não menos que seus antecessores, mas “age numa linha de abertura aos contemporâneos caracterizada pelo critério de uma releitura do Evangelho à luz dos tempos”. Nos textos conciliares há também “uma perspectiva de atualização da doutrina católica a partir do enquadramento de alguns princípios e valores da modernidade dentro dela” (p. 21). Analisar o magistério do pontífice em pontos pontuais, ainda que relevantes, ameaça obscurecer a orientação básica que certamente não é aceita por todos, mas sobre a qual se pode argumentar um juízo menos provisório.
São a eficácia e a plausibilidade do anúncio que sustentam o reconhecimento do discernimento para as Igrejas locais e o desenvolvimento de uma colegialidade (Evangelii gaudium, n. 16), mesmo que às conferências episcopais ainda não tenha sido reconhecida uma autoridade doutrinal.
Na mesma linha se coloca o processo sinodal lançado visando o protagonismo consciente de cada batizado. O papel e a autoridade do magistério não decorrem da distância em relação aos fiéis, mas da comunhão interna e da permeabilidade em relação às sociedades a que pertencem. O sínodo sobre a sinodalidade (não desenvolvido no texto que se interrompe em fevereiro de 2022) é o desenvolvimento coerente da colegialidade conciliar, que por sua vez completa o serviço petrino do Vaticano I.
Alguns títulos dos 13 capítulos podem indicar as áreas de interesse do pontificado: a espiritualidade; Laudato si' e a questão ambiental; povo e populismo; clericalismo; Islã e cruzada…
Menciono três: os sinais dos tempos, os pedófilos na Igreja, a "guerra justa".
O lema “sinais dos tempos” é relativamente recente. Entra no século XX na linguagem católica para sinalizar a insuficiência de uma narrativa histórica calcada no desenvolvimento da técnica e da economia. Com o Papa João adquire o significado hoje comum: valores que emergem na cultura contemporânea em sintonia com a inspiração evangélica (a paz, a família humana, o papel da mulher...).
“O recurso a essa categoria implica que a Igreja se põe em condições de comunicar a sua mensagem de salvação aos homens modernos, não só na medida em que é capaz de perceber os traços salientes do que se passa no mundo, mas também, aliás acima tudo, na medida em que é capaz de rever a interpretação dada até aquele momento do Evangelho” (p. 90).
Não é apenas uma oportunidade. É uma obrigação. Para Francisco, “trata-se de ativar um processo de indução que, do incessante devir dos acontecimentos humanos, extraia aquela compreensão diferente e melhor do Evangelho que permita comunicá-lo de forma correspondente às necessidades do homem de hoje” (p. 97).
Nas últimas décadas temos assistido a uma profunda mudança na sociedade civil no que diz respeito ao juízo sobre a pedofilia. Não é um crime contra a moral, mas contra a pessoa. Do lado eclesial, a passagem está entre o sexto (não fornicar) e o quinto mandamento (não matar).
A assimetria dos tempos entre mudança cultural e consciência eclesial favoreceu a explosão do grave escândalo dos abusos de padres e do pessoal eclesiástico.
As inúmeras disposições, normas e condenações da Igreja, incluindo a denúncia do clericalismo, não chegam a coincidir com o paradigma da vítima, já culturalmente dominante: um crime que não admite possibilidade de redenção. Um atraso para superar? Ou a impossibilidade de parte da Igreja de aceitar um crime imperdoável?
Para superar o impasse Menozzi destaca tanto a coerência da nova normativa quanto o sentimento de vergonha coletiva que os abusos provocam na Igreja, elemento que impede de retornar ao esquema puramente moral.
O tema "guerra santa, guerra justa, não violência" é muito intrigante. Nesse caso, Francisco herda a rejeição da "guerra santa" e a retirada de qualquer justificativa religiosa para a violência (Assis 1986), bem como a assunção progressiva dos critérios de justificação da guerra (defesa, legítima autoridade, proporcionalidade... ) face à ameaça nuclear. Ele defende resolutamente a prescrição absoluta da guerra, embora forçado no pela invasão russa da Ucrânia a aceitar a tradição da "guerra justa", num difícil equilíbrio entre denunciar o agressor e manter a possibilidade de diálogo.
A hipótese, diversamente formulada por Francisco, de uma “não violência ativa” colide com o atraso das sociedades civis diante da prevaricação do poderoso. E ilumina o paradoxo das confissões cristãs: de um lado, a ortodoxia russa que volta a justificar a “guerra santa”; de outro, o magistério de Francisco que tende a deslegitimar toda guerra. Uma contradição que evidencia o longo caminho a percorrer.
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Francisco: a outra linha conciliar. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU