29 Abril 2023
Jamais pensou que houvesse qualquer conexão entre a sua construção de identidade de gênero, sua rebelde aparição em público, no início do século, como Brigitte Baptiste, e seu saber como ecóloga. Contudo, encontrou-se no livro Evolution’s rainbow, da professora Joan Roughgarden, mulher transgênero, como ela, professora universitária, como ela, e etóloga que argumentava que, devido à visão monolítica e masculina da ciência nos séculos XIX e XX, nunca reportamos e percebemos adequadamente a diversidade sexual e de gênero no reino animal.
Por que não havíamos observado comportamentos homossexuais em quase todas as espécies animais, se efetivamente existiam? Por que não se havia falado da diversidade nos animais e, como animais humanos, não tínhamos falado dessa condição de diversidade que nos atravessa com mais rigor?
Então, sua esposa, que a acompanhou em sua transição, e seus colegas começaram a lhe falar do queer, um conceito que, embora o encarnasse em seu próprio corpo, como bióloga, não o tinha em mãos. Percebeu que os estudos queer, que vêm das humanidades e das lutas dos grupos gays discriminados, não falavam exatamente da mesma coisa que esta nova visão da ecologia abordava, mas, sim, que eram fenômenos equivalentes: era um chamado à visibilidade do que havia permanecido invisível.
“A ciência cegou a diversidade da sexualidade, gênero, também de famílias, nos animais. A cultura, autoritariamente, cegou a participação das pessoas queer em diferentes esferas sociais. E ocorre que o queer é um elemento fundamental para a evolução cultural, assim como é a diversidade sexual e de gênero para a evolução biológica”, afirma Brigitte Baptiste, diretora até 2019 do Instituto de Pesquisa de Recursos Biológicos Alexander von Humboldt. A ecóloga, que atua como reitora da Universidade EAN, também foi uma das primeiras mulheres trans na Colômbia a exercer o direito de mudar de gênero no documento de identidade.
“Não sou determinista. Para mim, o fato de existirem animais gays não significa uma justificativa biológica da cultura queer humana, porque nós, humanos, temos a liberdade no meio. Aqui, há um problema de fundo: as pessoas diversas e a diversidade de sexualidade e gênero entre os humanos são frequentemente justificadas pelo caráter biológico dos fatos e isso me parece problemático. Pode haver alguns fundamentos biológicos complexos para analisar, mas não vou me proteger, diante da sociedade, na inevitabilidade dos fatos. A diversidade não é uma doença, não exige ser justificada, nem exige ser explicada com categorias biológicas”, enfatiza Baptiste, para deixar aberto o espaço para conversar sobre o ambientalismo queer.
A entrevista é de Angélica María Gallón Salazar, publicada por El País, 26-03-2023. A tradução é do Cepat.
“Todos deveríamos saber mais sobre ecologia” é algo que, como estudiosa, você tem divulgado frequentemente. O que existe de tão poderoso na ecologia que considera tão essencial para entender o mundo?
A ecologia é uma ciência relacional e concebe que o relacionamento do mundo se estabelece na complexidade dessas relações que são efêmeras, instáveis... É uma panela fervendo que faz com que nós, que trabalhamos em ecologia, entendamos que o mundo está continuamente mudando, em diferentes escalas de tempo e espaço, que sempre está ativo.
Para uma parte da ciência, isso parece muito complexo e diz: “Não, vamos reduzir essa complexidade em partes” e divide o mundo em pedacinhos e se fixa em algo para tentar entendê-lo. É o que fazem os museus, por exemplo, tudo o que chega aos museus é uma amostra parcial da realidade, mas também está morta, porque está despojada de sua relacionalidade.
E quais são as implicações dessa visão relacional da ecologia para os seres humanos?
Para mim, são cada vez mais óbvias: somos seres relacionais que estamos imbricados, entrelaçados com os outros seres vivos e com nossa própria tecnologia de criações. Sendo assim, somos o resultado de centenas de milhares de processos que todos os dias estão se entrelaçando, a ponto de que nenhum explica tudo completamente. Essa complexidade engendra caminhos absolutamente heterogêneos em tudo. Então, como não esperar que sejam produzidos padrões inovadores e emergentes frutos dessa relação?
É aí que a teoria queer é profundamente ecológica, porque fala que tudo se contorce. Em um mundo assim, cheio de caminhos possíveis, tudo acaba se contorcendo. A teoria queer é uma teoria do desviado que, com humor e ironia, concebe que a identidade é uma ficção cheia de anomalias e que tudo e todos estamos torcidos.
O idioma está torcido, por exemplo, as línguas nunca são fixas e mudam. Ninguém deste século se entenderia facilmente falando espanhol com alguém do século XVIII, porque estamos torcidos em relação a essa referência. A evolução sempre faz isso, contorce, e talvez o mais profunda na teoria queer é que postula que se contorce por paixão, pelas forças eróticas e a sensibilidade. Não se contorce intelectualmente, é a paixão, a única coisa que torna possível que algo seja desviado de seu caminho autoritário ou predeterminado.
Se a paixão nos move para essa potência contorcida nas relações humanas, o que a ecologia descobre na natureza? O que a move a explorar isso? Ou a natureza é contorcida em si mesma?
Justamente! É por isso que eu digo que não há nada mais queer do que a natureza, é a sua qualidade ontológica, a de, constantemente, na complexidade das relações que são estabelecidas, contorcer-se.
Poderia nos dizer onde se vê essa “tortuosidade” ontológica da natureza?
É um processo quase invisível, porque cotidianamente está associado às variações genéticas. Joan Roughgarden mostra muitos casos, em todos os níveis, para falar da diversidade de gênero e de família. O mais famoso, o peixinho Nemo, sabe que quando há muitos machos, há algo na comunicação hormonal que atinge um ponto de saturação e faz com que alguns se tornem fêmeas. Há um sinal compartilhado, que é químico e comportamental, que faz isso acontecer. Em geral, os peixes de recife, tão coloridos e chamativos, possuem esse tipo de capacidade, inclusive, alguns podem mudar constantemente de sexo, de macho para fêmea, para macho novamente, o que implica ter um aparelho reprodutor sensível aos sinais bioquímicos e hormonais.
Sendo assim, teríamos ciclos de cinco anos sendo mulher e outros de cinco sendo homem, se há muito de uma coisa, você se transformaria em outra. Ah! Isso nos ajudaria a entender as polaridades que não existem. Em aves e insetos isso também existe. Não são tendências centrais ou dominantes, ocorrem na margem da adaptação, são os ensaios que são sujeitos à seleção natural.
O ambientalismo queer pensa nas plantas, sempre mais moldáveis e flexíveis em seus comportamentos?
Nas plantas, fica ainda mais evidente. A palmeira-de-cera, por exemplo, que por lei é a árvore nacional, na Colômbia, é uma palmeira que vive no alto das montanhas, é endêmica e está ameaçada pelo desmatamento. Recentemente, descobriu-se que algumas palmeiras mudam de sexo. Então, a árvore nacional colombiana muda de sexo para se adaptar às circunstâncias. Diante do desmatamento, há um sinal biológico que as faz saber que precisam se reproduzir mais rápido, então, como espécie, precisam que as palmeiras machos se tornem fêmeas ou, ao menos, produzam flores fêmeas.
O ambientalismo queer, além disso, fala das relações interespecíficas, porque pensamos nas palmeiras com palmeiras, ou nos peixes-palhaço com os peixes-palhaço. Bem, pensemos nas orquídeas que precisam ser polinizadas por um animal, isso é um ménage à trois, é uma espécie diferente que é indispensável para garantir a reprodução da outra. O abelhão chega até a flor, que lhe oferece sugar o doce néctar e, em troca, conduz o pólen até a outra flor e o deposita. Um intermediário sexual, um ato proibido, como uma clínica de reprodução assistida.
Então, como parte da natureza, nós, humanos, também estamos contorcidos?
Quanto aos humanos, mudamos completamente a ordem e a configuração dos ecossistemas, e agimos assim para poder sobreviver, mas também pelo prazer, para aproveitar mais a vida, para criar novas relações. Reorganizamos o mundo, criamos uma comunidade relacional particular. Esse é um exercício queer! É contorcido, é unicamente humano. De todos os seres vivos, só conosco isso ocorre. Nossa condição cultural é absolutamente contorcida em relação ao resto do planeta.
Eu diria que nossa perspectiva é a de nos tornarmos o que acreditamos que podemos desejar ser. Ulrich Beck, em seu livro Sociedade do risco, diz que com a tecnologia poderíamos fazer coisas que eram absolutamente impossíveis, há alguns anos. Estamos falando disso, em vez de pensar em mandar um foguete para a Lua, nós nos abrimos à possibilidade de ser um foguete.
E não, não é impossível, as unidades de terapia intensiva são as próteses mais eficazes e complexas que desenvolvemos para prolongar a vida, inerte ou inconsciente. Uma UTI é um dispositivo robótico com o qual nosso corpo pode transcender momentos de crise, isso é o prelúdio das unidades de sono nas naves espaciais. No Metaverso, por sua vez, você poderá desejar ser um cookie com gotas de chocolate e experimentar a sensação de alguém mastigando você. A concepção queer do Metaverso será a nossa próxima grande pergunta.
Na ecologia, as mudanças aparecem em sinais de distúrbio ou perturbação extrema. Sendo assim, você observa que estamos em uma sociedade que caminha para a mudança?
Chamam-se sinais antecipados e ocorrem quando há uma grande mudança ecossistêmica: uma floresta que vai se transformando em deserto ou uma lagoa que muda. Eu penso que sim, há sinais antecipados muito claros de mudança nas novas gerações. Eu, como reitora de uma universidade, vejo a expressão identitária das milhares de pessoas universitárias que estão nos países ocidentais e liberais, onde os sinais de comunicação permitem que cada um opere sobre o seu corpo e se apresente de forma mais autônoma e experimental.
Há medo, sim, porque é uma experimentação e ainda não construímos um conjunto de códigos satisfatórios para nos aproximarmos uns dos outros. Há muitas formas de se organizar que precisam emergir deste questionamento sobre as liberdades que estamos recebendo, que conseguimos graças e, sobretudo, aos movimentos feministas dos séculos XIX e XX. Essas liberdades contemporâneas não podem ser compreendidas sem o feminismo.
Essas novas sintomatologias no social deveriam abrir espaços para criar outras relações com menos dominação e extração, em relação ao resto do planeta?
Sim, mas ainda não nos vejo aí. Estamos muito estranhados com nós mesmos. Existem muitos movimentos de reconexão, alguns que dizem: “lance-se na floresta!”, “desapegue-se da cultura”. Estes, normalmente, não sobrevivem. Outros movimentos dizem: “desapegue-se de tudo o que na cultura e na humanidade dificulta o contato com outros seres vivos, como a permacultura, a agroecologia”, experiências que se conectam com os conhecimentos ancestrais ou que propõem modos de se relacionar com outras perspectivas éticas.
Eu me situo mais em um modelo que confia na capacidade de redesenhar o mundo com uma reflexão ecológica que contemple toda a sua capacidade tecnológica, institucional e que a repense. Alguns dias, claro, acordo com vontade de me despir da cultura e me jogar no rio, porque isso é prazeroso, mas na maioria das vezes não vejo que seja uma atitude factível para 8 bilhões de seres humanos. De vez em quando, penso, vou mergulhar no Metaverso com uma nova roupagem que me permita interagir com outros seres, em diferentes planos da realidade. Não sabemos se isso será factível, mas acredito que nós nos veremos forçados a tentar, uma vez que seremos 10 bilhões, no final de 2100.
O mundo não tem recuo, a mudança climática não será revertida, estamos tentando agir para que não seja letal, mas vamos ter que nos adaptar a um planeta que nunca tínhamos conhecido. Já habitamos um planeta B, não tem como voltar à Terra, por isso, deliberadamente, não utilizei a palavra natureza, porque não há nenhuma natureza que tenha que ser reverenciada, exceto aquela que entende que, constantemente, estamos evoluindo e retorcendo-nos. O futuro é torto.
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"A teoria queer é profundamente ecológica”. Entrevista com Brigitte Baptiste - Instituto Humanitas Unisinos - IHU