"Ouso dizer que não se trata de um contorcionismo retórico de palavras ou conceitos, mas para mim, depois de ver exaustivamente essa desumana e perversa rotina, trata-se, sim, de uma vergonhosa e criminosa situação, que, após muito discernimento, resolvi chamar de: fome difusa e tortura famélica", escreve Renato Bicudo, membro da Coordenação Nacional da Pastoral Carcerária.
Eis o artigo.
Sábia e inspirada a Campanha da Fraternidade de 2023, proposta pela CNBB, com o tema: Fraternidade e Fome, e com o lema: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Como Agentes da Pastoral Carcerária, nós, homens e mulheres a mim irmanados, pretendemos ser a presença efetiva e salutar de Cristo e da Igreja nos cárceres. Essa, nossa missão! Quando refletimos em nossos momentos solitários de oração, bem como quando rezamos e celebramos em nossas paróquias e comunidades, nós, como missionários nas prisões, não podemos deixar de pensar (e muito!), sobre a fome difusa que perpassa todo o sistema prisional. A realidade da alimentação dos milhares e milhares de homens e mulheres encarcerados não pode passar despercebida para nós. Não há coração evangélico que resista a esse escárnio e descaso para com essa população.
É sabido que em muitíssimos presídios, o café da manhã se dá por volta das 6:00 – 7:00 horas; invariavelmente é um pão murcho, pincelado com um arremedo de margarina e um café preto, que nós caipiras paulistas, chamamos de 'chafé'. Muitas vezes, entre 09:00 e 10:00 horas, serve-se o que se convencionou chamar de almoço, uma marmita de metal leve, conhecida como quentinha, encharcada de água, pois se rompe no transporte; fica gélida, e se converte numa gororoba insossa, algo como uma rala sopa hospitalar. Café da tarde, é um luxo que temos nós, que estamos fora das grades. Antes do declinar do dia, entre 16:00 e 17:00 horas, servem o jantar, uma macabra liturgia que repete o roteiro do almoço; sempre o mesmo cardápio e a exígua quantidade de todas as refeições. Logo depois vem a tranca, onde todo(a)s se recolhem em suas celas insalubres e superlotadas, aguardando a mesmice enlouquecedora de um outro dia...
Ouso dizer que não se trata de um contorcionismo retórico de palavras ou conceitos, mas para mim, depois de ver exaustivamente essa desumana e perversa rotina, trata-se, sim, de uma vergonhosa e criminosa situação, que, após muito discernimento, resolvi chamar de: fome difusa e tortura famélica. Sim, isso porque, nesses intervalos de tempo acima descritos, entre o café da manhã, o almoço, o jantar e o café da manhã do dia vindouro, esses encarcerados e encarceradas, nada mais têm para comer, permanecendo apenas acompanhados da rigorosa e impiedosa fome que os dilacera e desfigura. Não é à toa, que muitos presidiários e presidiárias são magérrimos! Isso sem se falar dos enfermos leves, crônicos e moribundos. Essa a fome dos outros, a fome que o poder público tem o dever de sanar e nós, discípulos do Mestre, o dever de denunciar, pois como nos ensinou nosso Irmão Universal, Charles de Foucauld, não podemos ser cães mudos; sentinelas adormecidas.
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