12 Agosto 2019
Há um jovem morto deitado no banco de trás do carro. Foi assassinado com três tiros na cabeça. O veículo, um Palio roubado horas antes, saiu da pista e invadiu um matagal, como se o motorista tivesse perdido o controle da direção. A rua é de paralelepípedo e mal iluminada. Estamos na zona rural de São José de Mipibu, cidade a 31 km de Natal. "Esse aí, se tivesse 20 anos, era muito", diz uma perita.
A reportagem é de Leandro Machado, publicada por BBC Brasil, 10-08-2019.
Já a delegada Andrea Oliveira, responsável pelo plantão noturno, afirma: "E eu achando que ninguém iria morrer essa noite...". De fato, há dias em que ninguém é assassinado na Grande Natal, mas, momentos assim, de relativa paz, ainda são raros no Estado onde mais morrem jovens de forma violenta no Brasil, proporcionalmente.
Recentemente, o Rio Grande do Norte assumiu a posição de Estado mais violento do país. Em 2017, foram 62,8 mortes violentas por 100 mil habitantes, maior índice entre as unidades da federação. É também o local onde essa taxa mais cresceu entre 2006 e o ano retrasado - alta de 320%. Entre as pessoas de 15 a 29 anos, os jovens potiguares também são os que mais morrem em crimes violentos - 152 vítimas para cada 100 mil, crescimento de 482% desde 2006. Como comparação, em São Paulo esse índice é de 18 mortes por 100 mil.
Os dados são do Sistema Único de Saúde (SUS) e foram compilados pelo Atlas da Violência, publicação anual do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nesse cenário, a polícia potiguar tenta acompanhar a produção em massa de assassinatos. Na noite em que a BBC News Brasil acompanhou uma equipe da delegacia especializada em resolução de homicídios, a região metropolitana de Natal produziu três novas vítimas - todas com menos de 30 anos.
No caso de São José de Mipibu, a morte parece um mistério nos primeiros minutos após o corpo ser encontrado no carro. Como ele foi parar ali? Por quê? Quem matou o jovem? Enquanto os peritos reviram o veículo e examinam o corpo, a delegada Andrea Oliveira fica sabendo que o carro tinha sido roubado horas antes. "Parece que esse rapaz entrou em uma casa com um comparsa. Os dois roubaram a residência e levaram o carro", relata.
"Será que, depois do assalto, os dois brigaram por causa dos pertences do roubo e um acabou matando o outro?", questiona.
Responder quem são os responsáveis pelos assassinatos do Rio Grande do Norte, como no caso do jovem no carro, tem sido uma tarefa árdua para a polícia local e, de certa forma, tem deixado milhares de crimes impunes.
Em 2017, por exemplo, Natal registrou 595 crimes violentos letais intencionais (CVLI, sigla utilizada para classificar homicídios em alguns Estados), segundo dados do governo. Mas, naquele ano, a polícia só enviou 160 inquéritos de assassinatos à Justiça (e os documentos também podem se referir a casos de anos anteriores). Em tese, são esses inquéritos que apontam os autores de cada crime, mas, na prática, isso nem sempre acontece.
Ou seja, quando essas investigações ficam abertas ou não revelam os responsáveis, os assassinos provavelmente ficarão livres.
Das 160 investigações de homicídios concluídas e remetidas à Justiça em 2017, a polícia só conseguiu elucidar 118 casos (74%). Outros 42 casos (26%) foram finalizados sem determinar a autoria.
Em 2019, os índices melhoraram, no entanto. De janeiro a julho, a setor especializado em homicídios de Natal já enviou 210 inquéritos ao Judiciário - alta de 19% em relação ao mesmo período do ano passado.
Natal tem dez delegados e 70 agentes para investigar todos os crimes contra a vida. Isso significa que, apenas no ano passado, cada delegado cuidou de 47 casos, em média - sem contar os crimes de anos anteriores.
Em Mossoró, segunda maior cidade do Estado, a situação é ainda mais dramática. São apenas dois delegados e seis agentes para todas as mortes violentas - no ano passado, foram 118 homicídios para cada delegado.
"Quando cada delegacia conclui cinco investigações por mês, a gente até comemora", diz o delegado Julio Costa, chefe do departamento de homicídios do Rio Grande do Norte. "A polícia ainda está estruturando, mas é óbvio que falta pessoal."
Em entrevista à BBC News Brasil, o promotor criminal Ítalo Moreira, que atua em Mossoró, afirma que as falhas na investigação prejudicam a produção de provas. "Como a polícia não se estrutura para melhorar as investigações, não há boas provas. Na maioria dos casos, nós dependemos de depoimentos de testemunhas, o que dificulta a condenação dos responsáveis."
Moreira diz que, por falta de provas, já pediu a jurados a absolvição de réus que tinha certeza de serem culpados por mortes violentas. "Isso acontece frequentemente. Se as provas não são boas, mesmo convicto da culpa, não posso pedir a condenação", diz.
De certa forma, a precariedade da polícia potiguar é um reflexo da crise nas contas públicas. Em janeiro, ao assumir o cargo, a governadora Fátima Bezerra (PT) chegou a decretar estado de calamidade financeira diante do atraso no pagamento do salário de servidores - a dívida, na época, era de R$ 2,6 bilhões. Já o déficit orçamentário chegava a R$ 1,8 bilhão, segundo o jornal Tribuna do Norte.
De acordo com o governo, a Polícia Civil, responsável por investigar os crimes, trabalha com apenas 27% do efetivo considerado ideal. Já a Polícia Militar, com aposentadorias e falta de concursos públicos para renovar a tropa, também atua com número abaixo do adequado.
Esse crescimento da violência na última década ocorreu durante as gestões de governadores de linhas ideológicas e partidos distintos: Wilma Faria (PSB), Rosalba Ciarlini (DEM) e Robinson Farias (PSD).
Em nota, a gestão petista afirma que, entre janeiro e julho de 2019, houve uma redução dos homicídios de 31% em comparação com o mesmo período do ano passado. Também diz que em breve haverá novas contratações de agentes.
Responder a primeira parte da questão acima é menos trabalhosa do que apontar individualmente os responsáveis pelos crimes no Estado nordestino. Um estudo recente do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (Obvio) traçou o perfil das vítimas.
Entre 2011 e 2018, cerca de 93% delas eram homens, 85% eram pretas ou pardas, 49% tinham entre 18 e 29 anos. Além disso, 31% não tinham sequer completado o ensino fundamental, 54% não exerciam atividade remunerada e 39% ganhavam até dois salários mínimos.
"O perfil é o mesmo em todo Brasil: a vítima é em sua maioria homem, jovem, negra, com baixa escolaridade e poucas oportunidades de trabalho", explica Thadeu Brandão, coordenador do Obvio e professor de sociologia da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.
Para ele, embora seja difícil identificar um perfil dos homicidas, é bem provável que ele seja bem parecido com o das vítimas.
"Esse é o mesmo perfil dos jovens que estão envolvidos com o crime. Não estou dizendo que a pobreza leva as pessoas para essa vida, pois, no fundo, acho que é uma escolha. Mas quais são as opções de escolha para um garoto desses, que mora em bairros sem estrutura de educação, saúde, emprego, família? Uma pequena parte vai escolher entrar para o crime."
Para o juiz José Dantas, coordenador da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do RN, a mistura entre o "caos social" e a presença de facções criminosas arrasta parte da juventude mais pobre para serviços ilegais.
"A fragilidade dos serviços públicos, principalmente da educação, mas também falta de opções de lazer e de profissionalização, joga parte dos jovens no crime, pois o crime preenche essas lacunas deixadas pelo Estado", diz Dantas, que há 30 anos atua em audiências com adolescentes infratores em Natal.
"Há jovens que aparecem na minha frente sem ter certidão de nascimento. Aí você pergunta: 'Por que os pais não registraram o filho?'. Então, você descobre que eles mesmos, pai e mãe, também nunca tiveram certidão de nascimento. A exclusão dessas pessoas é tanta que, para o Estado, elas sequer existiam. Elas passam a existir só quando chegam na sala do juiz depois de terem cometido alguma infração."
Em 2006, a pesquisadora Teresa de Lisieux Lopes Frota, doutora em ciências e sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, passou meses entrevistando adolescentes internados em um centro de medidas socioeducativas da capital.
Segundo ela, a maioria dos 56 jovens ouvidos para seu doutorado era analfabeta ou não tinha completado o ensino fundamental. "Eles eram muito pobres, sem estrutura familiar, às vezes criados pelos avós, porque os pais também estavam presos", explica. "São adolescentes que, infelizmente, veem no crime e no tráfico de drogas uma alternativa fácil para melhorar de vida, conseguir um tênis, uma moto, um carro."
Teresa conta que, anos depois, procurou os adolescentes que participaram de sua pesquisa, mas poucos estavam vivos - um deles morreu no massacre do presídio de Alcaçuz, em 2017, quando ao menos 26 presos foram assassinados em uma briga de facções. "O destino deles era a morte: matar ou morrer", diz.
Outro fator que tem feito aumentar os índices de homicídios de jovens no Rio Grande do Norte é o fortalecimento de facções criminosas, que brigam entre elas pelo controle do tráfico de drogas.
Na década passada, o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e o fluminense Comando Vermelho expandiram seus negócios para o Norte e Nordeste. Os dois grupos passaram a atuar no atacado da droga, repassando os produtos para quadrilhas menores venderem nas ruas.
A chegada dessas redes, no entanto, aumentou a rivalidade entre traficantes. Uma resposta aos paulistas foi a criação, no Rio Grande do Norte, do Sindicato do Crime, formado principalmente por jovens locais.
"Essa dinâmica gerou muitos conflitos pelo controle de territórios urbanos. Houve uma grande entrada de armas, muitas delas de grosso calibre, para alimentar essas disputas", explicou Luiz Fábio Paiva, professor de sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, em entrevista recente à BBC News Brasil.
Esses conflitos se espalharam pelo Nordeste e causaram milhares de mortes de jovens. Segundo o Atlas da Violência, entre 2006 e 2017, a região registrou 141 mil homicídios de pessoas entre 15 e 29 anos - no Rio Grande do Norte, no mesmo período, foram 8.408 vítimas.
Essa "guerra" também foi travada nos presídios. A rivalidade entre PCC e Sindicato do Crime, por exemplo, causou um massacre de 26 presos em Alcaçuz, região metropolitana de Natal, em janeiro de 2017.
Por sua vez, essas mortes ressaltaram o caos vivido pelo sistema carcerário do Estado nordestino, superlotado e controlado por esses grupos. Um levantamento do governo federal relativo a junho de 2016 - os últimos dados disponíveis - aponta que o Rio Grande do Norte tinha 4.265 vagas nas prisões, mas abrigava 8.696 detentos, mais que o dobro da capacidade.
O juiz José Dantas conta ser comum encontrar adolescentes que, nas audiências, dizem pertencer a alguma facção criminosa. "Alguns afirmam até que são chefes de pontos de venda de drogas", diz.
"Dentro do próprio crime, criou-se uma cultura de que os menores de idade não são punidos, que eles ficam livres rapidamente. Por isso muitos até assumem crimes que não cometeram, para livrar adultos. Mas esse conceito não é verdadeiro: eles são punidos, sim. Às vezes, passam anos internados", completa o magistrado.
Segundo ele, antes do fortalecimento dessas redes, as infrações cometidas por menores de idade eram menos graves - restringiam-se a furtos e discussões em escolas. "De uns anos para cá, houve aumento exponencial das infrações relacionadas ao tráfico, roubos violentos e até homicídios", diz.
No Rio Grande do Norte, as facções não estão presentes apenas em cidades grande e médias, como Natal e Mossoró. Um dos assassinatos mais crueis nos últimos meses ocorreu em Pau dos Ferros, município de 30 mil habitantes no sertão potiguar - a 392 km da capital. Em janeiro, a adolescente Jéssica (nome fictício) foi "julgada" e morta por jovens que diziam pertencer ao PCC, segundo a polícia.
"Em Pau dos Ferros, nós temos uma predominância de jovens dessa facção, que cometem assaltos e atuam no tráfico", conta o delegado Andson Rodrigo de Oliveira, responsável por investigar todos os crimes de sete cidades da região.
De acordo com a polícia, o namorado de Jéssica descobriu que a garota conversava com jovens de outra gangue, o Sindicato do Crime. "Eles estavam juntos há pouco tempo. Mas quando esse rapaz soube dessa informação, ele levou a garota para ser julgada pelos comparsas. Na cabeça dele, era inaceitável que ela tivesse qualquer ligação com o grupo rival", diz o delegado.
Em depoimento posterior, os suspeitos confessaram o crime, segundo a polícia. Eles disseram que Jéssica foi condenada à morte porque tinha ligações com o Sindicato do Crime e planejava matar um membro do PCC, o que nunca ficou provado.
Antes de morrer, ela ainda tentou se salvar dizendo estar grávida, segundo os depoimentos. "Ela disse isso porque imaginava que as facções não matam mulheres grávidas. Então, um dos homens comprou um teste de gravidez, que deu negativo", conta Oliveira.
A jovem foi assassinada com facadas no pescoço e golpes de enxada na cabeça - o corpo foi enterrado perto de um rio. Oito pessoas foram presas sob suspeita de participação no homicídio.
Jéssica tinha 19 anos. O namorado dela, um dos suspeitos de matá-la, tem apenas 17.
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Por que o Rio Grande do Norte é o pior lugar para ser jovem no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU