Brasil registra mais de 65 mil homicídios em 2017: “Já esperávamos esse crescimento, sobretudo por conta do aumento da intensidade da guerra entre facções”. Entrevista especial com Daniel Cerqueira

Foto: Agência Brasil

Por: Patricia Fachin e Ricardo Machado | 01 Julho 2019

O maior índice de homicídios no Brasil na última década, que contabiliza mais de 65 mil mortes registradas em 2017, é explicado, em parte, por causa “do aumento da intensidade da guerra entre as facções no Norte e Nordeste do país”, diz o coordenador do Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Daniel Cerqueira. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o pesquisador informa que a guerra das facções criminosas é “liderada pelo Primeiro Comando da Capital - PCC e pelo Comando Vermelho - CV e seus aliados regionais no Norte e Nordeste do país”, que disputam o controle do tráfico e os mercados consumidores. “Parte das violências que vemos nas ruas é orquestrada de dentro das cadeias, e como o Estado perdeu o controle das prisões, a sociedade fica sempre a depender das disposições e dos acordos que as facções fazem entre si para acalmar ou não a violência”, afirma.

De acordo com Cerqueira, outro fator que condiciona a criminalidade violenta é o demográfico, e é a partir dele que o Atlas da Violência explica o aumento do número de homicídios no país como um todo, mas também a redução de homicídios em 15 estados da federação. Esse fator, explica, “tem a ver com a estrutura etária da população: quanto maior o número de jovens numa população, maiores são as chances de se observarem crimes violentos naquela comunidade. Essa é uma evidência empírica internacional e nós mesmos fizemos esse trabalho no Brasil, analisando os dados de todos os censos demográficos de 1980 para cá para mostrar que isso também acontece no país”.

O pesquisador pontua ainda que o Brasil está atravessando a “mais intensa transformação no regime demográfico” de sua história. Esse processo não é linear em todos os estados e isso explica por que o Sudeste, que já tem uma população mais velha, teve os índices de homicídio reduzidos, enquanto as regiões Norte e Nordeste, que têm um excedente de jovens, registra mais homicídios. “Se, por um lado, a diminuição da população está trazendo problemas para o setor da previdência, de outro lado, no campo do crime, isso está trazendo um bônus, porque em muitos dos estados em que se observou uma redução do número de jovens, houve uma redução do número de homicídios. A região onde essa transição demográfica aconteceu de forma mais intensiva é no Sudeste, enquanto no Norte muitos estados não passaram por essa transição”.

Na entrevista a seguir, Cerqueira menciona os demais fatores que estão determinando o aumento ou a diminuição dos homicídios no país e adverte que o Estado deve atuar como “um bom indutor de políticas públicas para gerar equilíbrio e qualidade na segurança pública local”, permitindo a criação de “políticas baseadas em diagnóstico” em vez de “retóricas vazias”.

Daniel Cerqueira (Foto: Blog Elimar Cortes)

Daniel Cerqueira é doutor em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, mestre em Economia pela Fundação Getulio Vargas e bacharel em Economia pela Universidade Santa Úrsula. Desde 1995, é técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, sendo diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea, entre 2012 e 2015. Desde 1999, estuda Economia do Crime e Segurança Pública.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Segundo o Atlas da Violência, no ano de 2017 ocorreram mais de 65 mil homicídios no país. Esse dado foi uma surpresa ou já era esperado?

Daniel Cerqueira — O número ficou um pouco acima do esperado, mas já imaginávamos que haveria esse crescimento. Nós já tínhamos conhecimento dos dados a partir dos registros policiais do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que deu um número um pouco menor — cerca de mil mortes a menos. Mas já esperávamos que haveria esse crescimento, sobretudo por conta do aumento da intensidade da guerra entre facções no Norte e Nordeste do país.

IHU On-Line — O que os dados do Atlas da Violência indicam sobre a situação da violência e da segurança pública no país? Como interpretá-los?

Daniel Cerqueira — O Atlas traz uma boa notícia: apesar de que, quando olhamos o dado agregado, vemos um crescimento ainda maior no número de homicídios no Brasil, chegando a mais de 65 mil casos — o equivalente a 1,6 mortos a cada 100 mil habitantes —, quando desagregamos esses dados por unidade federativa, vemos que existem dinâmicas diferenciadas ocorrendo. Então, há dois fatos que basicamente compõem esse resultado do aumento do número de homicídios.

O primeiro fato tem a ver com a guerra das facções criminosas liderada pelo Primeiro Comando da Capital - PCC e pelo Comando Vermelho - CV e seus aliados regionais no Norte e Nordeste do país. Trata-se de uma guerra muito intensiva para manter o controle do tráfico de drogas e também dos mercados consumidores. Para termos uma ideia da importância desse mercado do tráfico de drogas e de como ele cresceu na região Norte do Brasil, sobretudo nos últimos anos, entre 2002 e 2013, é preciso considerar que a área plantada de cocaína na Colômbia diminuiu 70%. Existem apenas três países que produzem a cocaína: Colômbia, Peru e Bolívia. Com a diminuição relativa do mercado colombiano, Bolívia e Peru passam a ter mais importância na produção, e essas drogas, para serem escoadas para África e Europa, naturalmente passam pelo Brasil. Então, tem a chamada rota do Solimões, em que a droga chega pelo Acre, passa pelo Amazonas, Pará e termina sendo escoada para a Europa e a África a partir de Fortaleza, Natal e Recife; isso causou muitas mortes. Esse é um ponto que destacamos no Atlas.

Olhando os outros estados, vemos que, gradativamente, houve diminuição do número de homicídios em cada vez mais unidades federativas. Quando comparamos os anos de 2007 e 2017 — este é o último ano que temos de dados — percebemos que houve diminuição do número de homicídios em oito unidades federativas. Já quando comparamos apenas o último ano, 2016 contra 2017, verificamos que 15 unidades federativas conseguiram reduzir homicídios. Então, já há uma trajetória de redução de homicídios há muitos anos e em cada vez mais unidades federativas. Isso nos mostra que existe uma luz no final do túnel e que nem tudo está perdido.

O Atlas mostra também um indicativo do que está acontecendo em 2018 — o Ministério da Saúde divulgou os dados de 2017 e nós ainda não temos os de 2018, mas já sabemos algo através dos dados das polícias e, pelo que a imprensa está veiculando, houve uma queda dos homicídios em 2018. Se, por um lado, registramos um aumento no número de unidades federativas nas quais estão diminuindo os homicídios, em 2018 houve uma parada na guerra das facções do Norte, porque é inviável economicamente ficar com uma guerra de alta intensidade por muitos anos. Então, em 2018 as facções fizeram um “acordo de paz”, ao menos momentâneo, e o efeito que preponderou foi a queda de homicídios nas outras unidades federativas.

IHU On-Line — Então a redução dos homicídios nesses 15 estados está mais relacionada à trégua das facções do que a políticas efetivas e similares adotadas pelos respectivos estados?

Daniel Cerqueira — Exatamente. A questão das facções é sempre muito delicada e instável. Recentemente, no Ceará houve um “acordo de paz” entre as facções, que se juntaram para fazer atos terroristas contra o Estado — e pelo menos deixaram de se matar. Por conta disso, os homicídios diminuíram muito neste último ano. Agora, esse cenário pode ser revertido a qualquer momento. Dias atrás houve uma nova chacina num presídio no Amazonas por conta de uma disputa de uma facção local. O Estado perdeu o controle do sistema prisional e tudo pode acontecer. Parte das violências que vemos nas ruas é orquestrada de dentro das cadeias, e como o Estado perdeu o controle das prisões, a sociedade fica sempre a depender das disposições e dos acordos que as facções fazem entre si para acalmar ou não a violência. Mas quando analisamos outras unidades da federação, percebemos que houve uma redução no número de homicídios, a qual é explicada por alguns fatores.

O primeiro fator que condiciona a criminalidade violenta — que geralmente é deixado de lado porque as pessoas sempre pensam nos fatores políticas públicas ineficientes ou surgimento de facções — é demográfico e tem a ver com a estrutura etária da população: quanto maior o número de jovens numa população, maiores são as chances de se observarem crimes violentos naquela comunidade. Essa é uma evidência empírica internacional e nós mesmos fizemos esse trabalho no Brasil, analisando os dados de todos os censos demográficos de 1980 para cá para mostrar que isso também acontece no país. Nesse campo demográfico, estamos atravessando a mais intensa transformação no regime demográfico como nunca tivemos na nossa história. Até cinco anos atrás, tínhamos um pico do número e da proporção de jovens na população brasileira: chegamos a ter 51 milhões de jovens. O que está acontecendo a partir de agora e acontecerá nos próximos anos é um envelhecimento da população a passos largos; a população brasileira está envelhecendo muito rapidamente e em 2050 deve diminuir.

Se, por um lado, a diminuição da população está trazendo problemas para o setor da previdência, de outro lado, no campo do crime isso está trazendo um bônus, porque em muitos dos estados em que se observou uma redução do número de jovens, houve uma redução do número de homicídios. A região onde essa transição demográfica aconteceu de forma mais intensiva é no Sudeste, enquanto no Norte muitos estados não passaram por essa transição.

O segundo aspecto tem a ver com o Estatuto do Desarmamento: ele funcionou como um freio dos homicídios no Brasil. Em alguns estados, como São Paulo, onde o enfoque da política pública foi a apreensão de armas de fogo nas ruas, junto com uma legislação responsável e baseada no estatuto do desarmamento, se conseguiu reduzir os homicídios. Além desses dois fatores gerais, existem as questões específicas de cada unidade federativa. Em algumas unidades, não se conseguiu fazer nenhuma inovação em termos de investigação, porque a polícia está falida e a segurança pública passa a ser um sinal de uma política que usa a brutalidade ao invés de defender os direitos de cidadania. Então, nesses estados, as políticas não contribuíram para a redução dos homicídios. Mas em alguns estados foram feitas políticas interessantes, que servem de exemplo do que podemos fazer.

Entre essas experiências, menciono o Pacto pela Vida, de 2007, levado a cabo em Pernambuco pelo governador Eduardo Campos, que infelizmente faleceu. Esse foi um programa bem-sucedido e que se baseava não em achismos e retórica vazia, mas em diagnósticos territoriais, locais, em sistemas de gestão baseados em resultados. O programa tinha metas para diminuir os crimes, os delegados e policiais respondiam por essas metas e pelos resultados e, além disso, era um programa que se baseava em dois pilares. Um era uma mudança no padrão de policiamento: além da polícia na rua, era preciso um trabalho de qualificação e de inteligência policial para saber quem são os criminosos perigosos e homicidas que atuam na localidade. A polícia na rua prende flagrantes, nos quais geralmente estão envolvidos os “aviõezinhos” que levam papelotes de cocaína e os caras que cometem furtos. Com esse tipo de política, estamos enchendo os presídios de “ladrões de galinha” que servem de mão de obra para os criminosos. A inversão desse sistema para o policiamento qualificado consiste em mudar esse modelo por um trabalho de investigação e inteligência policial. O segundo pilar consistia no trabalho de prevenção social para evitar que, nos territórios mais conflagrados, as crianças de hoje não sejam os criminosos de amanhã. Esse programa foi feito em Pernambuco, no Espírito Santo, na Paraíba, e em todos os lugares em que isso foi bem feito e levado a cabo pelo próprio governador, as coisas funcionaram.

IHU On-Line — Um dado impressionante do Atlas diz respeito ao número de jovens assassinados no país. Esses casos de homicídios têm uma correlação direta com o tráfico? Como devemos olhar para esses dados?

Daniel Cerqueira — Essa é uma questão central para a política pública de segurança e de desenvolvimento do próprio país, então, trata-se de uma coisa muito mais profunda. É claro que uma boa parcela dessas mortes tem a ver com as brigas das facções criminosas e do tráfico de drogas, mas não é só isso. Muitas mortes, em vários lugares do país, são ocasionadas por brigas de gangues que muitas vezes não têm nada a ver com drogas. São grupos de jovens que moram nas periferias e que não têm acesso a bens culturais, esporte, e que se reúnem na comunidade e têm um sentimento de pertencimento de grupo muito forte. Às vezes um jovem de uma comunidade mata um jovem de outra gangue e aí começa uma espiral de violência que leva a várias mortes em alguns meses. Então, existe uma série de elementos e situações que levam à morte de jovens.

Na base, que coloca esse jovem como ator central dessa novela trágica, existe uma situação que começa ainda na primeira infância: no território brasileiro, algumas comunidades foram simplesmente abandonadas pelo Estado e pela sociedade. Muitas crianças nascem em famílias desestruturadas, presenciam casos de violência doméstica e comunitária e não têm um desenvolvimento sadio na primeira infância. Posteriormente, elas não têm acesso a uma boa escola e, quando chegam à juventude, não têm acesso ao mercado de trabalho — 23% dos jovens hoje não trabalham nem estudam. Então, o que estamos fazendo com a nossa juventude? A resolução disso depende de algo muito mais profundo do que simplesmente a polícia dar tiros para cima para reverter esse quadro.

IHU On-Line - De outro lado, o que os dados indicam sobre a situação de grupos vulneráveis, como as mulheres, os negros e a comunidade LGBT?

Daniel Cerqueira — Analisando os dados do Atlas da Violência, percebemos que existe, sobretudo em relação a crimes letais, duas dinâmicas que cresceram até 2017: os homicídios ocasionados pelas guerras das facções criminosas no Norte e Nordeste do país, e um aumento da vitimização de alguns grupos populacionais mulheres foram mortas por questões passionais, crimes de feminicídio, e na população LGBT também teve um aumento de casos de violência. A violência contra a população negra não é uma novidade, mas ela se acentuou. Há um clima de ódio contra determinadas minorias e esse é um eixo importante para pensar políticas públicas para reverter esse quadro.

IHU On-Line - O senhor tem estudado a economia do crime e temas relacionados à segurança pública. A partir das suas pesquisas, quais diria que são as causas que levam às pessoas para o crime?

Daniel Cerqueira — Esse é um assunto extremamente complexo e tem inúmeras teorias que explicam por que as pessoas cometem crimes e existe também uma abordagem empírica para verificar se essas teorias dão conta ou não de explicar o fenômeno. Obviamente existem questões que dizem respeito ao indivíduo e cada um é diferente: numa mesma família pode ter dois irmãos gêmeos e um pode ir para o mundo da delinquência e o outro, não. Por que isso acontece? Certamente tem um elemento de incerteza e de mistério nisso, que tem a ver com a alma humana. Mas além disso, existem fatores estruturais, demográficos e de política social que ajudam a explicar a prevalência de homicídios.

Quando olhamos a história do Brasil de 1980 para cá — e minha tese de doutorado foi exatamente sobre as causas e consequências do crime no Brasil —, verificamos algumas coisas. Uma delas é que houve um aumento dos homicídios já nos anos 1980, que vem no rastro de uma grande crise econômica pela qual o país passou — em 1981 o Brasil não pagou a dívida, ficou insolvente internacionalmente, houve estagnação econômica, desigualdade de renda, e essa situação fez com esse período ficasse conhecido como a década perdida. Isso ocasionou uma situação de estresse social num momento em que havia uma transição de passarmos de um país agrário para um país urbano. Só para ter uma ideia, a população das grandes cidades brasileiras aumentou 54% apenas em uma década. Então, em 1980, as cidades estavam inchadas, caóticas, porque não havia planos diretores, o Estado estava desorganizado e sem condições de fazer políticas públicas. O crime começou a aumentar, a polícia não conseguia resolver a situação porque não estava capacitada, pois tinha e ainda tem – com algumas exceções – um sistema de trabalho que vem desde o período da Regência, com Dom Pedro. Nesse cenário em que o Estado não conseguia defender a população, as pessoas começaram a comprar arma de fogo, e da década de 1980 até 2003 houve uma verdadeira corrida armamentista no Brasil. Isso, ao invés de melhorar a situação, jogou mais lenha na fogueira dessa tragédia.

Outro ponto é que ao longo desse tempo, a evolução dos homicídios e a prevalência de crimes seguiu à deriva a depender das condições socioeconômicas: se estava tendo emprego, se as crianças estavam na escola ou não, e as políticas de segurança pública não tinham efeito. Esse é o quadro que mais ou menos explica como chegamos nos anos 2000. Dos anos 2000 para frente é o que falamos antes: temos um quadro de deterioração na segurança pública por conta das facções. Só para ter uma ideia, até 1990 havia no máximo meia dúzia de facções criminosas; atualmente existem pelo menos 79 facções criminosas e todas elas nasceram de dentro dos cárceres, de uma política míope do Estado brasileiro de simplesmente amontoar presos que servem de mão de obra para os criminosos. Então, hoje temos um problema a ser resolvido, que é o problema de política criminal e de execução penal do sistema carcerário. Outra questão é que alguns estados conseguiram dar alguns passos no sentido de propor políticas públicas efetivas. O quadro que temos hoje é este: existe uma clara oportunidade de diminuir o crime a partir das experiências que já foram acumuladas, e de uma maré a favor da diminuição de crimes ocasionada pelo envelhecimento da população e, por outro lado, remando contra a boa maré de diminuição de crimes, temos hoje um populismo penal dos mercadores do medo, que propõem dar tiro e exterminar o outro.

IHU On-Line — Qual é o custo econômico da criminalidade no Brasil? Pode nos explicar como é feito o cálculo acerca do custo econômico da criminalidade?

Daniel Cerqueira — Nós fizemos vários trabalhos ao longo de muitos anos para tentar estimar o custo da violência. Estimamos que o custo da violência no Brasil hoje corresponde a 6% do PIB; é muito recurso jogado fora. Como esses cálculos foram feitos? Existem os custos da sociedade, do setor privado e os custos que o Estado brasileiro tem em função da criminalidade. Nós calculamos alguns desses itens que compõem os grandes custos e olhando a sociedade como um todo: quanto mais crimes existem em determinada localidade, provavelmente mais as pessoas vão contratar serviços de segurança privada e isso faz parte de um custo social da violência e da insegurança. Além disso, as pessoas gastam mais com seguros, com fretes e, eventualmente, o preço da mercadoria aumenta, o que gera uma perda de bem-estar para toda a sociedade. Para além do custo maior que é a perda de vidas humanas, existe um custo econômico dos homicídios. Então, a partir de uma literatura econômica, calculamos que o custo de homicídios no Brasil corresponde a cerca de 2,5% do PIB a cada ano. São pessoas que morrem prematuramente, deixando de consumir, de produzir. Esse não é um custo financeiro, ninguém paga por isso, mas é um custo econômico intangível.

Além desses custos da sociedade, existem os custos públicos, que são despesas financeiras realmente: despesas do sistema público de saúde para tratar as vítimas de violência, despesas com segurança pública, que toma algo de 1,8% do PIB, o custo das polícias e o custo com o sistema prisional para a manutenção das pessoas dentro das cadeias. Então, quando somamos todos esses pontos, fica em torno de 6% do PIB.

IHU On-Line — O Atlas afirma que “há uma lacuna sobre o papel do governo federal na Segurança Pública”. Qual deve ser o papel do governo nessa questão e o que se espera com a aprovação da Lei nº 13.675, que criou o Sistema Único de Segurança Pública – Susp no ano passado?

Daniel Cerqueira — Em qualquer lugar do mundo em que o governo federal entrou e colaborou com uma política efetiva de segurança pública, fazendo operações de lei e ordem, militarizando ou usando a Força Nacional, isso não deu certo. No México, o presidente Felipe Calderón, quando estava passando por uma crise de popularidade e havia um alto índice de criminalidade, colocou as forças armadas nas ruas. Desde então, só aumentou o número de crimes e, inclusive, de denúncias de torturas e de corrupção das forças militares. Então, a participação direta do governo federal nunca deu bom resultado. O que dá bom resultado é o governo federal ser um bom indutor de políticas públicas para gerar equilíbrio e qualidade na segurança pública local.

Não se resolve o problema da segurança pública como se resolve o problema da inflação, em que se faz um Plano Real, o Banco Central opera e chega num ponto que é possível reduzir a inflação. Com o crime não existe isso, porque os problemas são locais e é preciso entender as especificidades locais: onde o crime está ocorrendo, quais são os problemas sociais ali presentes, quais são os problemas de crimes envolvidos ali, quem são esses criminosos etc. Então, cada situação é diferente e, portanto, precisa ter um plano local, que leve em conta as especificidades locais.

Política baseada em diagnóstico

Como o governo federal pode entrar nessa história? Ele pode induzir os governos estaduais e municipais a fazerem boas políticas baseadas em diagnóstico ao invés de fazer uma política na base de uma retórica ou de um “apagão de incêndio”. Veja que após uma cachina que repercute na mídia, as autoridades se reúnem e no dia seguinte aparecem duas patrulhas no local onde a chacina ocorreu, mas depois de duas semanas, elas somem. Essas patrulhas não mudam nada; há que mudar o padrão de qualidade na gestão da segurança pública. Isso passa, primeiro, por um trabalho e uma visão estratégica que devem ser calcados nos melhores mecanismos de gestão científica, baseados num diagnóstico preciso do que está acontecendo. Portanto, temos que ter um diagnóstico social e um diagnóstico de inteligência e esses dois diagnósticos se juntam para fazer um plano de onde vamos atuar, determinar qual é o foco, quais são as ações, quais são os resultados que esperamos a curto, médio e longo prazo, fazer um monitoramento dessas ações e uma gestão por resultados. Tudo isso tendo à frente um político principal, seja o governador, seja o prefeito, que vai liderar o processo, pois isso envolve a mobilização social, a articulação de vários atores sociais, como as comunidades, a academia científica, os empresários, as igrejas etc. O governo federal pode induzir a essa mudança de qualidade: não resolve ficar falando em dar “tiro na cabecinha”, ficar pregando o ódio; o que resolve é usar a inteligência.

De que maneira o governo federal deveria induzir a essas mudanças? Primeiro, dando apoio tecnológico, empregando pessoas qualificadas e financiando. O governo poderia dizer que, se a situação está difícil para o estado e os municípios, ele não vai financiar mais uma viatura, nem vai colocar mais um policial na rua, mas vai financiar uma mudança no padrão da política local. O governo deveria apoiar aqueles estados que querem implementar uma política inteligente. Esse é o grande eixo que o governo federal deveria trilhar.

Nós fazíamos essa crítica ao governo federal há muito tempo, mas felizmente fomos ouvidos — nós e os companheiros do Fórum de Segurança Pública — e, finalmente, no ano passado, o ministro Raul Jungmann assumiu o Ministério da Segurança Pública, leu nossos trabalhos, me chamou para conversar e tomou a decisão de caminhar nessa direção. Foi muito interessante, porque nos dez meses em que ele ficou no Ministério, fez bastante coisa se considerarmos que só faltavam dez meses para acabar o governo Temer, e o país estava em uma situação fiscal apertada. Ele propôs a lei do Susp, que ainda está no início e é o primeiro passo na direção correta. Inclusive, o Susp é uma boa carga de intenções, mas precisamos aprofundar essa direção, porque as responsabilidades federativas no campo da segurança pública estão amarradas constitucionalmente no artigo 144 da Constituição. Por isso, se quisermos aprofundar o Susp, necessariamente, teremos que fazer reformas constitucionais mais à frente. A lei do Susp foi numa nova direção, e agora precisamos saber se vamos caminhar nessa direção ou se vamos retroceder.

IHU On-Line — Como o senhor avalia o projeto do pacote anticrime do governo federal, que foca em três grandes áreas: crime contra corrupção, crime organizado e crimes violentos? Entre as medidas propostas, quais são os erros e acertos para enfrentar o atual índice de homicídio no país?

Daniel Cerqueira — O chamado pacote anticrime não deveria ser chamado assim, porque não tem nada de anticrime ali. Trata-se de uma lista de intenções rascunhadas, diria até mal rascunhadas, que precisaria ser mais discutida e refletida. A primeira versão que o ministro Moro liberou era simplesmente um rascunho, que não tinha nem justificativas para as políticas, era uma série de ações isoladas que não se compreende porque estão ali, qual a ligação entre elas, qual foi o diagnóstico, nem como uma ação está ligada a que problema, a que causa. Portanto, não tem uma consistência lógica, não foi discutido por ninguém, nem pelos próprios aliados do governo, como o secretário de segurança. Esse pacote já começou errado.

Mas, além de começar errado, ele contém ideias que são muito ruins e perigosíssimas. Vou centrar a atenção em duas ações propostas, que levam a uma verdadeira “licença para matar”: as sugestões de reforma dos artigos 23 e 25 do Código Penal. No Código Penal já existe uma situação, no artigo 23, de que não haverá crime se o ator que perpetrou aquele incidente agiu em legítima defesa. Então, já existe uma legislação para a pessoa que agiu assim e, eventualmente, ela não responderá por crime — isso tem que ser divulgado. O pacote vai além disso e sugere mudança nos artigos 23 e 25, propondo que se as pessoas matarem em situação de surpresa ou grande emoção — são três características — não haverá crime e o juiz poderá até abater ou perdoar a pena. Ao fazer isso, não estamos falando apenas para os policiais que eventualmente matam, mas estamos falando a respeito da conduta de qualquer pessoa que, por exemplo, matou alguém e se tiver sido motivada por uma forte emoção, estará perdoada. Agora, me diga, qual é o homicídio que acontece — menos dos psicopatas — que não são motivados por forte emoção? Portanto, permitir um artigo desses é, na verdade, a reprodução do Doca Street. Não sei se você se recorda, mas esse é um caso dos anos 1970 em que o Doca matou sua esposa [Ângela Diniz] e no primeiro tribunal teve uma pena reduzida porque alegou legítima defesa da honra; isso é algo inconcebível.

Se isso for aplicado também à questão das polícias, também não procede, porque um policial, em qualquer lugar do mundo, tem a prerrogativa de matar alguém em uma situação de exercício profissional se for em legítima defesa ou se colocar a vida de alguém em perigo. Existem técnicas policiais chamadas de gradientes da força para saber qual é o quantitativo de força que se deve usar num caso desses: se o policial vai avisar, se vai dar um tiro para o alto ou na perna; matar seria o último grau do uso da força. Se ele mata ou não mata, o caso tem que ser investigado depois, porque em qualquer sociedade democrática tem que haver o controle do uso da força pelas polícias. O que se está colocando é uma minimização, dizendo que “o cara matou e isso provavelmente está certo”. É um absurdo do ponto de vista do Estado Democrático de Direito.

Além disso, o pacote do Moro se baseia numa ideia já muitas vezes experimentada no Brasil e em lugares do mundo e que não dá certo: o populismo penal. Uma lei mais dura não resolve o problema. Existe uma literatura econômica internacional empírica mostrando qual é o efeito de endurecer leis para diminuir crimes. O efeito é zero. No Brasil, para dar alguns exemplos, em 1990 foi elaborada a lei dos crimes hediondos, que estavam previstos na Constituição de 1988, e essa lei veio para regulamentar a Constituição, aumentando a pena para alguns tipos de crimes. Em 1994, essa lista foi aumentada, ou seja, mais um endurecimento da lei, e em 1998, de novo foi aumentada essa lista. Em 2006 também foi aprovada a Lei de Drogas, que endureceu a pena para o crime de tráfico de drogas. O que aconteceu nesses períodos? A taxa de crimes só aumentou e levou mais pessoas a ficarem mais tempo dentro das cadeias, superlotaram as cadeias e não resolveu o problema.

Parte-se de uma premissa de que o endurecimento penal vai resolver o problema, sem ter estudado o problema e sem ter elaborado um diagnóstico. Se tivessem estudado o problema da segurança pública e feito um diagnóstico, teriam visto que não é esse o remédio e que não é esse o problema que nós temos. Na verdade, nem sabemos direito qual é o problema, tal a calamidade que temos hoje na segurança pública e na incapacidade de investigação, pois apenas 8% dos homicídios são esclarecidos. No Rio de Janeiro, por exemplo, dos mais de 200 mil roubos que acontecem por ano, 1% é investigado pela polícia. Logo, o problema não é de penas duras, o problema é fazer com que a pessoa que transgrediu a regra seja identificada e punida, seja através de uma pena de prisão, pena alternativa ou trabalho comunitário, a depender do tipo de crime.

IHU On-Line — Em 2018, o senhor declarou que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea havia feito uma crítica à participação do governo federal na política de segurança pública, a qual não foi bem recebida à época, mas ainda em 2018 o senhor sinalizava que havia uma mudança de rumos nessa área por conta do trabalho realizado pelo Ipea. Que mudanças estão sendo implementadas na área de segurança pública desde o ano passado?

Daniel Cerqueira — Esse é exatamente aquele ponto que começamos a falar. Desde o governo Dilma [Rousseff], mas sobretudo no governo [Michel]Temer, cada vez mais o governo federal procurou entrar na questão da segurança pública, olhando os holofotes a partir das operações de lei e ordem.

Na Maré o exército ficou 14 meses e, salvo engano, gastou cerca de 600 milhões de reais, isto é, dinheiro jogado fora, porque quando o exército saiu dali, tudo continuou na mesma situação. Então, o governo federal tinha essa estratégia de atuação direta nos estados pela aplicação das operações de lei e ordem e pela Força Nacional. Nós criticamos essa postura e falamos que era um equívoco total, um erro, um desperdício de recurso público que não levaria à resolução do problema, e falávamos que o papel da segurança pública deveria ser baseado em um critério de indução de boas políticas pelos estados e municípios.

A partir de então, fizemos um novo documento com vários parceiros propondo isso e houve uma mudança posterior. O Jungmann, que era ministro da Defesa, passou para a pasta da Segurança Pública, leu nossa proposta — realmente ele é uma pessoa que lê todos os documentos que recebe, também é uma pessoa que compreende muito de segurança pública —, percebeu que era um equívoco o que estava sendo feito e fez uma inflexão total na política. Mas esse foi um período muito curto de dez meses, no final de um governo já desgastado e que tinha dificuldades orçamentárias. Mesmo assim foram dados vários passos interessantes na direção correta. No governo atual, realmente já houve uma mudança total, estão colocando o pacote anticrime e também essa política sobre o uso da arma de fogo, que é um tremendo equívoco e uma irresponsabilidade contra a vida das pessoas.

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Daniel Cerqueira — Um ponto fundamental é: qual é a política mais barata e mais efetiva para reduzir crimes? É investirmos nas crianças. De zero a três anos é a fase mais importante de desenvolvimento do ser humano. Se pegarmos essas crianças que, muitas vezes, estão largadas pela sociedade nas periferias e fizermos políticas para garantirmos um bom desenvolvimento para elas nessa fase, vamos lograr frutos no futuro. Claro que não podemos apenas investir nas categorias de base, nas crianças, para que elas sejam o Brasil de amanhã, também é preciso ter um planejamento para ações de curto prazo, o que envolve um trabalho de qualificação policial, de inteligência e de aumentar o poder de investigação criminal.


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