Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 3º Domingo da Quaresma, 12 de março de 2023 (João 4,5-42). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois de ter nos apresentado as tentações de Jesus e sua transfiguração, a Igreja nos propõe, no Ano Litúrgico A, por meio de trechos do quarto Evangelho, um percurso que nos ajuda a aprofundar os valores do batismo. Hoje, meditamos sobre o encontro entre Jesus e a mulher samaritana, no qual se revelou o dom da água da vida.
Jesus deve voltar de Jerusalém para a Galileia e poderia fazer isso subindo novamente o vale do Jordão. A estrada era mais plana, mais segura e permitia que não se precisasse atravessar a Samaria, terra cujos habitantes, há séculos, eram tão inimigos dos judeus – que os consideravam impuros e heréticos – a ponto de os atacarem quando estes a atravessavam (cf. Lc 9,52-53).
Mas – diz o texto – Jesus “devia” (édei) passar pela Samaria, um “dever” que expressa uma necessidade divina: em obediência a Deus, justamente por ter sido enviado não só aos judeus, Jesus atravessa aquela terra para cumprir sua missão. Por isso, receberá o insulto de quem não o entende: “És um samaritano e um endemoninhado!” (Jo 8,48).
Porém, Jesus aceita se encontrar com essas pessoas que são consideradas inimigas e ímpias; ou, melhor, vai buscar esse povo desprezado e se faz samaritano entre os samaritanos, parando junto a um poço, como o samaritano da parábola parou junto a quem havia sido agredido pelos assaltantes (cf. Lc 10,33-35).
Ele chega à Samaria na hora mais quente do dia, “cansado da viagem”, e vai se sentar perto do poço de Sicar, o poço de Jacó (cf. Gn 33,18-20). Ele está cansado e com sede, mas não tem nenhum meio para tirar água. Então, chega também uma mulher que, talvez devido a seu comportamento imoral publicamente reconhecido, é forçada a sair pela estrada àquela hora, para não se deparar com aqueles que a desprezam.
Jesus lhe pede: “Dá-me de beber”. Ao ouvir aquelas palavras na língua dos judeus, ela se admira: alguém que está em sua mesma condição de sedenta lhe pede de beber, pede-lhe hospitalidade, mas é um inimigo, alguém que deveria se sentir superior a ela. Uma mulher samaritana só podia esperar desprezo de um homem judeu; mas ele se faz mendicante em relação a ela.
Eis a verdadeira autoridade vivida por Jesus: sua capacidade – como indica o latino “auctoritas”, de augere – de aumentar o outro, de fazê-lo crescer.
Surpresa, a mulher pergunta a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?”. Que rebaixamento! É isso que a impressiona e desencadeia uma dinâmica relacional, em um face a face cordial, sem mais barreiras. De fato, entre Jesus e a mulher, caiu um muro de separação (cf. Ef 2,14) ou, melhor, dois: um muro devido à inimizade entre samaritanos e judeus, e um muro cultural e religioso de injusta disparidade, que impedia que um homem, particularmente um rabi, conversasse com uma mulher. Mas, se uma pessoa não pode ir a Deus, é Deus quem vai buscá-la, porque ninguém pode ser excluído de seu amor: é isso que Jesus narra com seu comportamento.
Ele, intuindo que o diálogo promete ser de qualidade, começa a intrigar a mulher: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva”. A mulher tem sede, Jesus tem sede, mas, na realidade, quem dá de beber ao outro? Há uma sede de água de Jesus e da mulher, tornada mais urgente pelo calor, mas há também outra sede que emerge lentamente... Jesus sabe que existe uma sede mais profunda e sabe que o poço simboliza a Torá, aquela parte das Escrituras que justamente os samaritanos consideraram como a única que continha a palavra de Deus e à qual deviam recorrer para viver como pessoas de fé.
Jesus também sabe que essa mulher, figura da Samaria adúltera (cf. Os 2,7), tentou aplacar sua sede por meio de caminhos equivocados: teve diversos homens, bebeu todo tipo de água, vítima e artífices de amores equivocados...
E, assim, Jesus lhe revela sua condição, mas sem condená-la, mas sim convidando-a a aderir à realidade e, consequentemente, a retornar ao Deus vivo. A samaritana, intrigada, quer saber mais: “Quem és tu para dar essa água viva? Por acaso, és maior do que nosso pai Jacó? Realmente tens uma água que sacia para sempre? De onde tiras essa água?”. O patriarca Jacó não apenas havia cavado aquele poço profundo, mas, de acordo com a tradição judaica, tinha a força para fazer a água subir do poço apenas com sua presença. Jesus talvez é maior do que Jacó, poderá talvez dar água que sobe do poço, água viva?
A mulher aceita se pôr em jogo e recebe em troca uma promessa extraordinária: “A água deste poço não sacia a sede para sempre. A Lei de Moisés não sacia definitivamente, mas eu dou uma água que se torna fonte de água transbordante, fonte inesgotável que dá água para a vida eterna”.
Jesus lhe anuncia o inaudito, o humanamente impossível: há uma água por ele doada que, em vez de ser tirada do poço, torna-se fonte transbordante, água que sobe das profundezas. Beber a água dada por ele significa encontrar em si uma fonte interior: essa água é o Espírito derramado por Jesus nos nossos corações (cf. Jo 7,37-39; 19,30.34), Espírito que jorra para a vida eterna, que, no coração do fiel, torna-se “mestre interior”.
A samaritana começa a intuir alguma coisa e então lhe pede: “Senhor (Kýrios), dá-me dessa água!”. Aqui, Jesus dá uma guinada brusca no diálogo: “Vai chamar teu marido e volta aqui”. O que o marido tem a ver com isso? Na realidade, Jesus conhece bem a situação da samaritana, porque “conhece o que há em cada ser humano” (Jo 2,25). Na infeliz história amorosa dessa mulher, ele lê a história idólatra dos samaritanos com os ídolos estrangeiros. Ele lê aí, simbolicamente, a história do reino do norte, Israel, chamado pelos profetas de “mulher adúltera e prostituta” pela infidelidade ao único Esposo, o Senhor Deus, e pelo adultério com os ídolos falsos (cf. Os 2,4-3,6).
A mulher, respondendo que agora não tem marido, que está à procura de amantes, confessa que não encontrou o único esposo, sempre fiel no amor, mesmo em caso de traição (cf. Os 14,5). Jesus está diante do povo dos samaritanos para lhes dizer que o Senhor nunca os abandonou, que quer atraí-los para si (cf. Os 2,16) e celebrar com eles as bodas da aliança eterna.
É por isso que a samaritana, além da água, deve encontrar quem é a fonte, por trás do dom ela deve descobrir o doador. Na resposta dada a Jesus, ela reconhece implicitamente seus numerosos fracassos, sua sede frustrada de comunhão e de amor; é uma mulher na miséria, que conhece patrões, mas não um esposo, uma mulher explorada e abandonada.
Mas, descobrindo a si mesma, descobre que Jesus é profeta e imediatamente lhe pergunta onde é possível adorar, onde é possível encontrar a Deus e iniciar uma vida de comunhão com ele: em Jerusalém, como dizem os judeus, ou no monte Gerizim, como defendem os samaritanos?
Em resposta, Jesus lhe anuncia a hora: “Acredita-me, mulher: está chegando a hora – e é esta – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade”, isto é, no Espírito Santo e em Jesus Cristo mesmo, que é a verdade (cf. Jo 14,6), a última e definitiva narração de Deus (cf. Jo 1,18). Sim, o lugar da autêntica liturgia cristã não é mais um lugar-santuário, monte, templo ou catedral, mas sim a morada do Pai, do Filho e do Espírito Santo, isto é, a nossa pessoa inteira, corpo de Cristo (cf. 2Cor 13,5) e “templo do Espírito” (1Cor 6,19)!
Diante dessas palavras, a samaritana ousa confessar a própria expectativa: ele e seu povo esperam o Messias profético, o novo Moisés (cf. Dt 18,15-18), esperam aquele que desvelará tudo. E é nesse momento que Jesus lhe diz: “Eu sou – o Nome de Deus (cf. Ex 3,14) – que estou falando contigo”. A mulher se desvelou em sua miséria, Jesus se desvela em sua verdade de Messias, de Cristo, enviado por Deus.
Mas o encontro humaníssimo com Jesus transformou essa mulher em uma criatura nova, tornando-a testemunha e evangelizadora. É por isso que, "deixando seu cântaro” – um gesto que diz mais do que muitas palavras! –, corre para a cidade para testemunhar o que lhe aconteceu. Para a samaritana, testemunhar é acima de tudo recordar os eventos, narrar a própria experiência: algo decisivo aconteceu em sua vida, e isso provocou nela uma mudança, uma conversão.
E assim, depois de recordar os fatos, sugere uma interpretação: “Será que ele não é o Messias?”. Ela não impõe a quem a escuta um dogma nem uma verdade expressada em termos rígidos, mas propõe uma leitura que lhes permitirá fazer uma escolha na liberdade, movidos pelo amor. Ela sugere, mais do que conclui, e assim acende o desejo do encontro.
“A fé nasce da escuta” (Rm 10,17), dirá o Apóstolo: da escuta de Jesus nasceu a fé da samaritana; da escuta da samaritana nasceu a fé de seu povo. E da fé procede o conhecimento; do conhecimento, o amor: esse é o evento cristão, admiravelmente resumido no encontro de duas pessoas sedentas!