01 Março 2023
É impressionante a capacidade desta pintura de Giovanni Serodine de manter unida a brancura quase abstrata da dalmática diaconal de São Lourenço com a sujeira escura dos pobres: não como duas coisas opostas, mas como duas faces da nossa humanidade comum.
O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado na revista Vita Pastorale, de março de 2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como a misericórdia foi representada na história da arte? A resposta é surpreendente: na arte sacra, sua personificação quase não teve direito de cidadania.
Todo o cenário foi ocupado pelas virtudes teologais (fé, esperança, caridade) e pelas coirmãs cardeais (prudência, justiça, fortaleza, temperança): porque a misericórdia não é uma virtude, mas, como já escrevia Dante, “é paixão”, isto é, um movimento muito profundo da alma.
A tradição iconográfica preferiu as obras de misericórdia à misericórdia e privilegiou especialmente as sete obras corporais, representando-as, por exemplo, nos hospitais (pensemos no friso do hospital de Ceppo, em Pistoia, executado por volta de 1525 por Santi Buglioni).
Em um de seus livros (“La mia idea di arte” [A minha ideia de arte], editado por Tiziana Lupi), o Papa Francisco incluiu uma dessas séries entre os exemplos que permitem entender sua relação com o figurativo: as “Obras de misericórdia”, de Olivuccio di Ciccarello, que hoje estão na Pinacoteca Vaticana, mas que foram pintadas, nos primeiros anos do século XV, para a Igreja da Misericórdia de Ancona.
O papa ama esse ciclo porque aqui “os ‘descartados’ da sociedade se afirmaram como atores principais da representação”: um ponto de vista evangélico, que os contemporâneos de Olivuccio não teriam compartilhado, concentrados como estavam no papel não dos necessitados, mas dos benfeitores.
São Lourenço distribui o tesouro da Igreja aos pobres, pintura de Giovanni Serodine, 1623-1625, Abadia de Casamari, Itália
Ainda nos Sagrados Palácios, o papa poderia encontrar um exemplo desse “protagonismo dos descartados”: o maravilhoso afresco em que o Beato Angélico (pintor santo e frade mendicante) exalta São Lourenço ao distribuir os bens da Igreja aos pobres. É suprema a dignidade com que os mendicantes, os mendigos, as crianças descalças de Angélico ocupam a perspectiva da basílica onde ocorre o gesto subversivo: a hierarquia que se despoja de suas riquezas e na parede da capela privada de um papa!
Esse filão iconográfico atinge o seu ápice no retábulo em que Caravaggio concentra as “Sete obras de misericórdia”, ambientando-as – escreve Roberto Longhi – “ao entardecer, em uma encruzilhada napolitana”, com anjos voando “na altura dos primeiros andares, no gotejamento dos lençóis mal lavados e que sacodem em festão debaixo da janela na qual, agora, se assoma uma ‘nossa senhora com o Menino’”.
Graças à presença de Maria – saudada desde o século X como “mater misericordiae” – Caravaggio funde a iconografia das sete obras com a da Nossa Senhora da Misericórdia, aquela que reúne todos os fiéis sob seu manto: uma imagem muito difundida na Idade Média italiana, que Piero della Francesca (no políptico de Borgo San Sepolcro, pintado por volta de 1460) transforma em um espaço habitável, uma verdadeira arquitetura de misericórdia.
É justamente a um dos seguidores de Caravaggio que se deve uma das imagens mais belas desse filão, que retoma o tema já tratado por Angélico. Serodine, natural do Ticino, é um dos pintores mais misteriosos e fascinantes do século XVII europeu. Ele é documentado em Roma por apenas sete anos (de 1623 até o ano de sua morte precoce, 1630), durante os quais cria algumas das mais altas realizações de todo o naturalismo: como o São Lourenço que distribui o tesouro da Igreja aos pobres, que foi pintado, junto com a Decapitação do Batista, para a Basílica de San Lorenzo Fuori le Mura em Roma, da qual foi removido e periferizado apenas em 1862.
Referindo-se ao último Caravaggio napolitano e siciliano, Serodine insere a cena em um subterrâneo angustiante, onde as pessoas são engolidas pelo vazio e pela escuridão. Até mesmo a disposição das figuras parece dilatar as fórmulas de Caravaggio, enquanto a luz colorida e a desagregação impressionista da pincelada mostram que Serodine olhou com grande interesse para a pintura de Guercino.
A riqueza material da dalmática de São Lourenço nos leva a crer que nem a obra romana de Rubens, nem mesmo as primeiras obras de Pietro da Cortona são estranhas a essa extraordinária leitura protobarroca do naturalismo mais franco e revolucionário de Caravaggio.
A restituição da fugidia figura de Serodine ao conhecimento dos estudos modernos se deve em grande parte a Roberto Longhi, cuja leitura fulgurante desta obra deve ser mencionada:
“E, de fato, na grande sala lívida de uma sacristia romana, com tijolos toscos, com uma parede de salitre com as crostas escamosas perto da inclinação da janela escura, um jovem diácono em dalmática branca e dourada, enfeitada como uma planta de tulipas, distribui o tesouro a três exemplares eternos da pobre gente que veio dos casebres até o limite do interior romano: o jovem aleijado patético, o velho sanguíneo de apostólica seriedade e o indizível ‘barba-negra’ precursor do Jean Journet courbetiano, a testa enrugada como uma velha estrada e no ato de se apoiar no bastão descascado. Nenhuma ênfase caricatural, nem mesmo de longe, como teria sido nos amigos flamengos e holandeses, mas sim uma seriedade de objetivação que não pode ser alcançada sem uma simpatia humana. E Serodine a alcança, por meio da pintura, quando, pela referência metafórica contínua entre a luz e a matéria que dela se embebe, o sapato furado do aleijado, na mistura variada e comovente de seus tons marrons, assume o mesmo pretium operis da prataria, que, já tendo perdido toda beleza formal cobiçada, se funde no brilho indecifrável de uma ourivesaria rembrandtiana; mas, é preciso lembrar, antes de Rembrandt”.
Ao lado da prosa altíssima de Longhi, situa-se a emoção do encontro pessoal com essa obra extraordinária. Lembro que fiquei impressionado com a capacidade de manter unida a brancura quase abstrata da dalmática diaconal de Lourenço com a sujeira escura dos pobres: não como duas coisas opostas, mas como duas faces da nossa humanidade comum.
Uma Igreja com os pobres e para os pobres: capaz de dar um sentido humano também àqueles vasos de ouro maciço que só se tornam sagrados no momento em que, passando de mão em mão, vão aliviar um pouco a dor de uma pobreza não escolhida, mas sofrida.
Esse quadro não representa a Igreja que ajuda os pobres: mas sim os pobres que acorrem para salvar a Igreja, permitindo que ela se torne o verdadeiro ícone da misericórdia de Deus.
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Misericórdia e tradição iconográfica. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU