15 Fevereiro 2023
“Purgavam na prisão crimes que nunca cometeram, inventados em leis repressivas promulgadas ex profeso; eles foram despojados de sua nacionalidade, mas agora viram a liberdade, como todo o país um dia verá”, escreve Sergio Ramírez, escritor, jornalista e advogado nicaraguense, em artigo publicado por La Nación, 15-02-2023. A tradução é do Cepat.
A grande maioria dos presos políticos que cumpriu pena nos presídios da ditadura por crimes que nunca cometeram, inventados em leis repressivas promulgadas ex profeso, foi solta, embarcada em um avião fretado e enviada de madrugada ao exílio, da mesma forma arbitrária como foram capturados e submetidos a processos que nunca tiveram valor jurídico, e mantidos em condições iníquas em celas de isolamento, alguns poucos deles confinados em suas casas.
Acabei de ver o vídeo em que um magistrado de toga, presidente do Tribunal de Apelações de Manágua, lê com voz cavernosa, em uma sala deserta do Complexo Judicial, a sentença em que se comuta as longas penas a que foram condenados à pena de desterro. Além disso, estão destituídos para sempre de todos os seus direitos políticos e cidadãos por traição à pátria, outra arbitrariedade sem qualquer fundamento.
Pouco depois, a Assembleia Nacional, em reunião de emergência, aprovou por obediente unanimidade um decreto para despojar da nacionalidade nicaraguense os traidores da pátria, ou seja, os exilados em voo, contrariando a Constituição. Outra arbitrariedade. E se esquecem que as leis não são retroativas por princípio universal, mesmo que fosse uma lei constitucional, mas na Nicarágua os princípios universais deixaram de valer.
Exilados, apátridas, mas livres. Deus escreve torto as linhas da liberdade, mas com letra certa. E esta é apenas a primeira página. As melhores páginas ainda estão por vir.
Tiram-lhes a nacionalidade para dar um jeito de satisfazer os ouvidos dos fanáticos furibundos, militantes às cegas, paramilitares comprometidos com sangue na repressão, que devem estar confusos, acostumados como estão com o discurso raivoso, martelado todos os dias, de que esses traidores da pátria, terroristas responsáveis por um golpe frustrado em 2018, jamais veriam a luz do sol. Esse tem sido o discurso oficial. Traidores, terroristas, escória, vendedores da pátria. E eles viram a luz do sol. Eles viram a liberdade. Como todo o país verá um dia.
Todos os presos políticos da ditadura, os que embarcaram no avião que os levou para o exílio, assim como os 38 que ficaram, são nicaraguenses exemplares, que resistiram com dignidade ao isolamento em celas de castigo por longos meses, e fizeram da prisão sua trincheira de luta, a prisão onde nunca deveriam ter estado. Líderes políticos, sindicais e camponeses, defensores dos direitos humanos, empresários, líderes estudantis, juristas, acadêmicos, padres católicos.
E até um bispo, o das dioceses de Matagalpa e Estelí, dom Rolando José Álvarez, uma voz verdadeiramente profética, que se recusou a ser expatriado e preferiu a prisão: "Que sejam livres, eu pago a sentença deles", disse.
Todos eles, réus de um crime tirado da cartola – “atentado à soberania nacional”; a soberania apropriada por um casal, uma família no poder, um velho partido revolucionário transformado no arremedo de um sonho que há tanto tempo fracassou.
Nunca conseguiram dobrá-los. Nunca baixaram a cabeça diante dos juízes enxeridos nas audiências orwellianas. Vestiram os uniformes de prisioneiros sem detrimento da sua dignidade, e deram um exemplo de decoro a um país silenciado à força, que, entretanto, viu sair milhares por pontos cegos das suas fronteiras, fugindo da repressão, do silêncio e do medo. Um país que ainda não acordou do seu longo pesadelo, depois de outra ditadura, ainda mais feroz, mas que quando decola o avião que leva os presos exilados, celebra-o em seu íntimo, como uma pequena alegria, mesmo sabendo que ainda está longe do objetivo final da liberdade e da democracia.
Sempre ficou claro que esses presos políticos eram reféns. A ditadura, diante do seu crescente isolamento político internacional, quis manter esta carta de negociação, a única possível à mão, os presos em troca de alguma coisa: as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, União Europeia, Canadá, Suíça, Inglaterra, tanto a entidades governamentais como empresas públicas e empresas privadas ligadas ao regime, quanto policiais, funcionários e membros da família ditatorial.
Conseguiram algo disso? Ainda não se sabe o que receberam em troca. O voo fretado em que viajaram tinha como destino o Aeroporto Dulles, em Washington, mas o Departamento de Estado se apressou em esclarecer, em comunicado dirigido aos congressistas, que se tratava de uma decisão unilateral de Ortega, "sua própria decisão", e o exorta a tomar outras medidas para a restauração da democracia e da liberdade na Nicarágua, sem reconhecer qualquer compromisso.
Ortega, em sua aparição pública após a chegada dos exilados a Washington, também disse que se tratava de uma decisão unilateral de seu governo e que não houve negociação. Ele apenas pediu ao embaixador dos EUA para levá-los embora. Ponto final.
Muito estranho e paradoxal. No passado recente, esnobou o presidente Andrés Manuel López Obrador, do México, e o presidente Alberto Fernández, da Argentina, assim como esnobou o presidente Gustavo Petro, da Colômbia, quando lhe pediram a mesma coisa: tirar os presos das cadeias; e fê-lo mal, acusando-os de ingerência, apesar das identificações ideológicas que afirma ter com eles. E agora concede o que negou a eles ao implacável inimigo imperialista. Como entender isso?
De qualquer forma, a ditadura ficou de mãos vazias. Sua melhor estratégia teria sido negociar os reféns em lotes, e não soltá-los todos de uma vez, para ter cartas na mão. Sinal ruim, no que diz respeito a eles. E soltá-los não é uma demonstração de força, mas de fraqueza. Demonstra-o ao declará-los apátridas, uma vingança final, já longe do alcance de suas garras, como se seus decretos e as sentenças e leis de seus comparsas, juízes e deputados, tivessem valor perpétuo e a Nicarágua fosse continuar eternamente sob seu governo.
Esses exilados são mais nicaraguenses do que nunca.
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Nicarágua. Da prisão da ditadura ao exílio, e mais nicaraguenses do que nunca. Artigo de Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU