Chris Tyrrell ficou em frente a uma tela que dizia “Blessed are the Blockchains?!?” (“Abençoadas são as Blockchains?!?”, em tradução livre), e dirigiu-se a uma multidão eclética de cerca de 200 pessoas, incluindo gerentes de fundos multimercado, médicos de cidades pequenas e evangelistas online. Eles viajaram de todo o país para o Sheraton Valley Forge em King of Prussia, pequena cidade do estado da Pensilvânia, EUA, em 17 de novembro. Alguns já eram milionários. Outros, talvez, ainda têm expectativa de serem. Mas todos estavam lá para envolver uma peculiar interseção de culturas e interesses: a Igreja Católica e a criptotecnologia.
A reportagem é de Christopher Parker, publicada por America, 20-12-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Há algo que vai acontecer nos próximos dois dias que é uma espécie de processo de conversão”, disse Tyrrell, ex-vice-presidente do Goldman Sachs. “A unidade entre seu chamado como católico e seu vocatio [latim para “chamado”] cripto... é disso que precisamos para que essa tecnologia realmente floresça”.
Foi o primeiro discurso da primeira Conferência Católica sobre Criptomoedas (Catholic Crypto Conference), um fórum de dois dias que reuniu duas entidades que, à primeira vista, podem não parecer uma combinação confortável. O que há no mundo pouco regulamentado e de alto risco da criptomoeda que atrairia especificamente os católicos?
A tecnologia subjacente que alimenta a criptomoeda se resume a uma ideia bastante simples: um grupo de partes interessadas cria uma lista pública de informações com as quais todos concordam, em vez de permitir que uma instituição como um banco ou agência governamental faça isso por eles. Pode ser uma lista de transações financeiras, contratos legais ou propriedade de arte, mas o processo permanece o mesmo. A criptografia eletrônica permite que as pessoas mantenham essa lista de informações segura e intocável por poderes centralizados. Para alguns investidores e especuladores, e aparentemente para alguns católicos, essa possibilidade tem um apelo enorme.
A história das criptomoedas é uma história de desconfiança financeira. A tecnologia foi lançada em 2008 com a criação da primeira criptomoeda, o Bitcoin, que aproveitou o poder de computação da internet para registrar transações financeiras de forma pública. Os fundadores acreditavam que, quando toda uma rede de computadores colabora para rastrear o movimento do dinheiro, não há necessidade de um banco agir como um terceiro confiável mantendo o score.
A inovação surgiu na esteira da Grande Recessão, época de perda recorde de confiança nos bancos dos Estados Unidos. Em 1979, a Gallup descobriu que 60% dos entrevistados tinham “suficiente” a “muita” confiança nos bancos; apenas 9% dos entrevistados disseram ter “muito pouca” confiança neles. Mas, em 2012, esses números quase mudaram: 9% relataram “muita” confiança nos bancos, 12% relataram “suficiente” confiança e 73% relataram “alguma” a “muito pouca”.
O criador do Bitcoin em 2008 propôs que a criptomoeda poderia ser a salvação.
Mas, no mês passado, surgiram evidências de que a criptomoeda pode não ser o antídoto para o comportamento financeiro imprudente. Em novembro, poucos dias antes da abertura da Conferência Católica de Criptomoedas, uma empresa multibilionária de criptomoedas, a FTX, entrou em colapso espetacular. Essa perda maciça de riqueza atraiu a atenção do mainstream, e FTX desde então tem sido criticada como um esquema de pirâmide. Seu fundador, Sam Bankman-Fried, enfrentou acusações generalizadas de fraude e extradição de seu complexo nas Bahamas em 13 de dezembro. Isso deixou claro que no lado financeiro, o desregulado setor das criptomoedas gerou uma série de escândalos que assustou muitos investidores. Mas os entusiastas da criptomoeda no evento em King of Prussia se apressaram em apontar que as finanças não são a única aplicação do modelo emergente.
Muitas informações podem ser armazenadas em livros contábeis, não apenas transações de moeda e commodities. A tecnologia de criptografia pode armazenar qualquer informação que um poder central, como um governo ou uma empresa poderosa, possa querer censurar. Em uma alternativa ao Facebook inspirada em criptomoedas, por exemplo, nenhuma autoridade poderia remover uma postagem que pudesse ser vista como discurso de ódio. Esse poder é descentralizado.
Assim como a perda de confiança nos bancos, a confiança em outras instituições civis e governamentais vem caindo. A Gallup descobriu uma perda constante de fé no governo, na mídia, nos sistemas de saúde e, recentemente, nas grandes empresas de tecnologia.
A tecnologia de criptomoedas pode atrair muitas pessoas que estão mais preocupadas com os abusos dessas instituições. Eles geralmente têm opiniões politicamente conservadoras, incluindo profunda desconfiança em grandes instituições e amplo entusiasmo pelo livre mercado.
Os políticos Republicanos associaram a criptomoeda a valores conservadores, incluindo a liberdade religiosa. Mas o economista Paul Krugman percebe o fenômeno como parte de uma estratégia para semear dúvidas nas instituições, assim como a desinformação em relação à covid-19 e as falsas alegações sobre fraude eleitoral.
Existem muitos entusiastas de criptomoedas fora da escola mais tradicional e libertária. O prefeito da cidade de Nova York, Eric Adams, um democrata, chamou a atenção ao receber seu primeiro salário em criptomoeda. Bankman-Fried doou pesadamente para candidatos liberais e organizações sem fins lucrativos com seus fundos ilícitos. E, em geral, reduzir o poder dos grandes bancos tem apelo em todo o espectro político.
No entanto, a Conferência Católica de Criptomoedas parece dar suporte à avaliação de Krugman de que as moedas digitais podem ser mais atraentes para os menos confiantes na sociedade.
Palestrantes e participantes discutiram temores sobre poderes insidiosos em ação nos Estados Unidos, sobre conluio entre empresas de tecnologia e o governo com o objetivo de minar as famílias e a liberdade religiosa. Os gerentes de fundos mutimercado, os médicos e diáconos paroquiais aparentemente compartilhavam a certeza de que os católicos precisam se proteger das falidas instituições públicas estadunidenses. Este tópico durou dois dias com palestrantes que ofereceram discursos de vendas de Bitcoin, histórico de avanços tecnológicos e alertas de apropriações marxistas.
No primeiro dia da conferência, um ex-guru de investimentos da Universidade de Notre Dame e cofundador de uma empresa de investimentos privados emitiu alertas severos sobre a cultura dos EUA e pediu aos participantes que mantivessem a mente aberta sobre as criptomoedas. Mark Yusko, que junto com sua esposa, Stacey, doou 35 milhões de dólares à Notre Dame em 2009, incentivou os participantes da conferência a “começar sua jornada [cripto] ou correr o risco de ficar para trás”.
Yusko falou com rapidez e confiança, compartilhando piadas e histórias pessoais durante sua apresentação que chamaram a atenção de seu público e passando por inúmeros slides de gráficos e estudos de caso históricos destinados a inspirar confiança no Bitcoin, mesmo que ela tenha caído ano passado para menos de 75% do seu valor máximo.
Yusko, que teve de se recuperar de seus próprios contratempos financeiros no passado, argumentou que os primeiros investidores em grandes tecnologias muitas vezes enfrentaram críticas por essas ligações, mas obtiveram grandes retornos a longo prazo.
“Se você investisse no telégrafo, as pessoas diziam: ‘É impossível! Você não pode se comunicar através de fios de cobre’... mas, então, vieram retornos de 11.000%. Muito bom”, disse.
Em uma comparação mais moderna, Yusko apontou para a Amazon, uma empresa que recompensou acionistas de longo prazo com ganhos enormes. Ele observou que apenas um punhado de investidores se manteve desde que a empresa abriu seu capital pela primeira vez em maio de 1997. “O mundo não conseguiu lidar com a volatilidade”, disse ele. “Bitcoin tem a mesma volatilidade”.
Os vilões da proposta de Yusko eram os bancos centrais, que imprimem moeda fiduciária “sem valor” não mais lastreada por ativos do mundo real como o ouro. Ele chamou a política monetária do Federal Reserve de “criminosa”.
“Eles venderam a você [a crença] de que a inflação é boa para você”, disse ele, referindo-se à taxa de inflação “alvo” de 2% tradicionalmente buscada pelo Comitê Federal de Mercado Aberto. “Mas inflação é roubo. A inflação é antiética. O Fed rouba seu dinheiro e o dá aos ricos”.
Yusko tinha mais do que apenas o Fed em sua mira. Inseridos em sua palestra, houve comentários sobre questões políticas polêmicas – ceticismo sobre protocolos de pandemia, dúvidas sobre a integridade das eleições e comentários simplórios sobre “cultura de cancelamento”. Ele sugeriu que os entendimentos convencionais de finanças e história foram encobertos para beneficiar os que estão no poder e apresentou suas próprias teorias sobre a mudança tecnológica.
“Tópico muito carregado, escravidão. A escravidão acabou por causa da Pensilvânia e da descoberta do petróleo”, disse ele, fazendo essa conexão incongruente durante uma análise de como as tecnologias se substituem. Ele também disse que a tecnologia cripto revolucionará a forma como os votos são contados, que ele descreveu como imprecisos e ineficientes.
A forte propaganda de Yusko e de outros para investir em criptomoedas parecia em desacordo com o tom que o organizador Matthew Pinto tentou definir com o lema da conferência: “Que comece a conversa”.
Pinto explicou que não queria que os participantes se sentissem pressionados a investir em algo que não entendiam completamente. Para tanto, ele incluiu um palestrante para discutir os perigos dos golpes de criptomoeda e como reconhecê-los.
“Não somos touros de criptomoedas. Somos discernidores de criptomoedas. Estamos discernindo o espaço”, disse Pinto à revista America.
No entanto, os painéis sobre investimentos em criptomoedas, mesmo após o colapso da FTX, que Yusko descreveu como uma “tempestade que passará”, incentivou fortemente os participantes a investir o mais rápido possível.
Essa mensagem não ressoou com todos.
O diácono Bruno Schettini disse que compareceu à conferência por curiosidade, porque pensou: “Católico e criptomoedas não devem andar juntos”. Ele é médico nas proximidades de St. Clair, Pensilvânia.
Schettini disse que se sentia cético sobre o “tremendo hype” sobre a especulação de criptomoedas na conferência.
“É uma imagem muito otimista para blockchain e criptomoedas”, disse ele. “Isso provavelmente é uma moda passageira, na minha opinião… é algo real, mas também é algo muito arriscado”.
Mas a opinião de Schettini parecia representar uma opinião minoritária.
Quando Yusko terminou sua apresentação, houve aplausos entusiásticos e um membro da plateia virou-se para seu companheiro para dizer: “Isso foi incrível. Acabei de mudar de ideia. Outros correram para falar com Yusko.
Além de sua aplicação no setor financeiro, a tecnologia subjacente da criptografia tem o potencial de descentralizar mais do que apenas o suprimento de dinheiro. Michael Matheson Miller, pesquisador sênior do Instituto Acton e criador do documentário “Poverty, Inc.”, usou sua palestra para desenvolver a ideia de uma “pólis paralela” – tecnologia blockchain que permite que os católicos se isolem do “despotismo brando” dos Estados Unidos.
Miller acredita que a liberdade religiosa está sendo atacada por instituições cívicas e culturais, especialmente empresas de tecnologia e mídia social e o governo. Alguns exemplos que ele citou incluíram uma decisão da Suprema Corte de 2022 exigindo que a Universidade Yeshiva reconhecesse um clube estudantil LGBTQIA+ e a suspensão do senador Rand Paul do YouTube em 2021, depois que o senador alegou erroneamente que as máscaras não ajudam a prevenir a transmissão do covid-19.
Miller disse que os católicos precisam construir uma rede de profissionais usando a tecnologia blockchain para que nem o estado nem as grandes empresas possam descartá-los ou censurá-los.
Como exemplo do que poderia estar em jogo, Miller compartilhou as alegações feitas pelo ex-senador dos EUA e governador do Kansas, Sam Brownback, de que o JPMorgan Chase “cancelou” sua organização, o Comitê Nacional de Liberdade Religiosa, ao se recusar a fazer negócios com por causa de suas crenças religiosas católicas. O JPMorgan Chase negou as acusações.
Assim como Yusko fez, Miller apimentou sua apresentação com expressões de preocupação sobre o conluio entre atores poderosos do governo dos Estados Unidos e empresas de tecnologia, acusando-os de padrões duplos em relação aos esforço da vacina da covid-19. Ele disse que os marxistas estão se mudando “para escolas católicas”. Com relação à sua ideia de “pólis paralela”, Miller previu que o resultado final certamente envolveria um conflito entre os católicos e o governo federal.
“Sim, o Estado pode nos esmagar. É absolutamente possível”, disse ele. “Mas isso vai exigir que eles não usem despotismo brando, não usem medidas regulatórias... Vai exigir que eles exerçam um despotismo duro contra nós. E temos que nos perguntar: o povo americano está pronto para ver o despotismo duro? E acho que a resposta, se Deus quiser, ainda não”, disse ele.
As opiniões de Miller e de Yusko, é claro, não representam todo o espectro de pensamento no mundo das criptomoedas ou mesmo daqueles entre os participantes da conferência. Alguns painéis focaram nas possibilidades humanitárias da criptomoeda como uma forma de troca sólida e independente.
O economista Stephen Barrows, também do Acton Institute, procurou aplicar os conceitos do Ensino Social da Igreja à cultura cripto. Ele citou cartas de papas recentes sobre a importância de um sistema monetário estável, incluindo o Papa Bento XVI, que escreveu na “Caritas in veritate” sobre a necessidade de um sistema financeiro mais moral após a crise bancária de 2008.
“O banco central, se não for bem feito, pode levar à instabilidade da moeda. Houve diferentes arranjos institucionais ao longo da história que tentaram mitigar isso… Acho que a criptomoeda vai conduzir essa conversa”, disse Barrows.
Timothy Jacklich não participou da conferência, mas trabalha como analista sênior de pesquisa de criptografia para o Tribal Credit, com sede em San Francisco. Ele explicou que nos Estados Unidos, o uso mais popular da criptomoeda tem sido especulativo: uma pessoa compra uma certa “moeda” virtual, então ela segura essa moeda, esperando vendê-la no futuro por um preço mais alto.
Jacklich trabalha com pequenas e médias empresas em mercados emergentes, principalmente na América Latina, onde moedas instáveis e práticas duvidosas em finanças e bancos encorajaram muitas pessoas comuns a considerar a adoção de criptomoedas. Nesses estados, a criptomoeda é mais comumente usada como reserva de valor do que para ganhos especulativos de curto prazo.
“Em mercados como a Venezuela, onde a moeda foi quase totalmente corroída pela hiperinflação, mesmo os criptoativos mais voláteis podem ser um meio melhor para proteger suas economias do que a moeda local”, explicou Jacklich.
Poderia ser isso o que vem a seguir para o mercado de criptomoedas nos Estados Unidos? Um ponto de acesso a uma moeda confiável para pessoas que desconfiam ou não podem acessar serviços bancários “normais”? Barrows acha que é possível, mas não como a indústria cripto está agora.
“No momento, não há criptomoeda que tenha uma função de valor de armazenamento que a torne um novo dinheiro para os não-bancarizados”, disse ele. “Acho que, para que haja uma adoção ampla, seria preciso haver algumas ‘regras do jogo’”, acrescentou.
O espaço das criptomoedas, assim como a internet antes dele, se expandiu em um ritmo vertiginoso, e todos os tipos de pessoas estão fazendo uso de suas ferramentas para seus próprios fins. Assim como as opiniões expressas na Conferência Católica de Criptomoedas não representavam a perspectiva de muitos católicos, elas não cobriam a amplitude de opinião no próprio mundo cripto.
Mas a curiosa interseção desses dois sistemas de crenças em King of Prussia certamente atraiu pessoas com ideias semelhantes de ambas as comunidades que parecem se encontrar do mesmo lado das guerras culturais de hoje. A promessa de descentralização da criptomoeda tem um apelo enorme para aqueles que acreditam que governos e empresas “acordados” estão conspirando para silenciá-los.
Como disse um participante do painel “O futuro das finanças”, “falar a verdade não deve ser uma teoria da conspiração. Às vezes, um chapéu de papel alumínio me serve muito bem”.