“Uma visão antropológica e política sobre o desenvolvimento das criptomoedas daria razão ao pensamento de que as leis e as regras estão sempre na retaguarda das evoluções técnicas e dos mercados. Mas, como saber hoje – a menos que sejamos videntes – o que só poderemos saber amanhã?”, problematiza o economista francês Étienne Perrot, padre jesuíta, em artigo publicado por La Civiltà Cattolica, 15-10-2021. A tradução é do Cepat.
No ano passado, as criptomoedas foram objeto de um renovado interesse que não diminuiu até esse momento em 2021. A razão? Essas moedas estão se desenvolvendo, estão melhor regulamentadas pelas autoridades públicas, seguem assustando os responsáveis políticos, que, como contramedida, aplicam normativas cada vez mais invasivas. Inclusive, tentam lançar suas próprias criptomoedas, moedas digitais dos bancos centrais.
Os principais aspectos técnicos dessas criptomoedas podem ser facilmente identificados. Sua base – o blockchain (“cadeia de blocos”), uma tecnologia de armazenamento e transmissão de dados digitais – e seus prováveis desenvolvimentos industriais permitem reduzir os intermediários encarregados de revisar e conservar os dados dos traders de modo indelével e sempre verificável.
O princípio do blockchain é muito simples: cada transação é armazenada de modo que integre, por blocos, em seu criptograma, o conjunto de todas as transações que a precederam. Em matéria de moeda, isso impede que alguém possa pagar sem primeiro contar com o dinheiro necessário. Assim, desaparecem os cheques devolvidos, o medo da falência de um banco, a necessidade de confiar cegamente em um intermediário, porque não existem mais intermediários.
O corolário dessa criptografia é o anonimato, tanto de quem paga como de quem recebe. E isso torna as criptomoedas um cômodo meio de pagamento para todas as operações ilegais: transferências para pagar um resgate em bitcoins, compra de armas cuja venda está proibida, tráfico de bens ilícitos, acumulação de mais-valias secretas, etc. O paradoxo é que esse duplo anonimato de quem paga e quem recebe ocorre em um cenário de total transparência das transações. Todos os que participam do intercâmbio são informados de todas as transações.
Ao contrário das moedas legais emitidas por um banco (central ou comercial), as criptomoedas não se apoiam em uma autoridade bancária. Daí, às vezes, serem chamadas de “fichas”, ainda que, por exemplo, a Corte de Cassação Francesa conceda a elas o título de moeda. De qualquer modo, as criptomoedas respondem – muito mal – às três funções econômicas de qualquer moeda: unidade de medida, meio de troca e reserva de valor.
Unidade de medida, porque podem ser utilizadas para conferir valor a produtos e serviços e se beneficiam de um sistema de intercâmbio que permite a sua conversão em dólares, euros, ienes, etc. As criptomoedas também são um meio de troca, ao menos para os comerciantes, fornecedores de serviços e especuladores que estão dispostos a aceitá-las.
Os fornecedores podem rejeitar bitcoins, ripples, europas ou ethereum, mas não podem rejeitar pagamentos em moeda legal. Por último, são uma reserva ruim de valor, porque cada moeda criptografada é proporcional às variações especulativas de seu preço e à segurança do sistema eletrônico que mantém a rastreabilidade.
Aqui, o perigo não é da mesma natureza que o dos depósitos bancários, expostos a hackers ou a débitos diretos. Por não estarem armazenadas em uma memória central, mas em toda a rede de internet, mesmo supondo que o sistema seja suficientemente robusto, as criptomoedas podem se perder, caso seu dono esqueça seus códigos de acesso ao sistema, ou se seu computador é hackeado, ou se perde a chave USB na qual havia transcrito suas senhas, etc. Em todos esses casos – nos quais se manifesta o aspecto negativo do anonimato -, assim como acontece com os bilhetes perdidos ou roubados, não é possível recuperar o crédito.
As criptomoedas se diferenciam das moedas com trânsito legal porque não possuem contrapartidas. A primeira contrapartida das moedas legais – historicamente falando – é o ouro. Além do ouro e dos metais preciosos, as contrapartidas da oferta monetária são principalmente os créditos concedidos pelo banco central à tesouraria do Estado (o caixa do Estado) e, em sua maior parte, os créditos que os bancos comerciais conferem à economia. Isso significa que o valor de uma moeda com trânsito legal varia de acordo com a ideia que se tem do valor futuro dessas três contrapartidas.
Devido à ausência de contrapartidas, a especulação das criptomoedas é de natureza diferente. Baseia-se apenas na ideia de valor futuro das criptomoedas que possuem aqueles que intervêm nesse mercado. Fundando-se exclusivamente em rumores de aumento ou diminuição de valor, os movimentos de preço das criptomoedas tendem a se autolimentar. Isso explica o aspecto errático e de grande alcance observado nesses mercados.
Para resistir a esses movimentos e poder se beneficiar da tecnologia em que as criptomoedas se baseiam, sem sofrer o risco de movimentos erráticos de preço, foram criados os mercados de criptomoedas. Mas, como todos os sistemas de cobertura (que funcionam como seguros), esses mercados têm um custo. Por isso, a solução mais conveniente – que, no entanto, requer um controlador que regule a quantidade de moedas para preservar o valor – consiste em indexar o preço de uma criptomoeda a uma moeda com trânsito legal (menos flutuante), a cestas de moedas ou ao preço de commodities como o ouro, os diamantes ou o petróleo.
Assim, obtêm-se os benefícios da tecnologia (transações imediatas, sem intermediários), evitando o risco de uma variação muito abrupta dos preços. Nesses casos, fala-se em stablecoin (literalmente: “moeda estável”). O estado de Nova York, por exemplo, permite realizar pagamentos administrativos em stablecoins (ao menos com as criptomoedas autorizadas por ele).
Alguns supostos profetas das finanças especulativas anunciam que as criptomoedas substituirão o ouro como reserva de valor. Assim, o chefe da estratégia de títulos de uma das maiores administradoras de fundos do planeta (BlackRock, que administra ativos de 8 trilhões de dólares) afirma peremptoriamente que o bitcoin se fortalecerá e substituirá o ouro.
Com isso, esquece que o ouro não é uma reserva de valor das mais confiáveis: de 35 dólares a onça, no dia 15 de agosto de 1971, o preço multiplicou por 10 nos meses sucessivos, oscilou entre 300 e 850 dólares a onça, por várias décadas, antes de ultrapassar os 1.000 dólares, nos anos 2000. Então, chegou aos 2.000 dólares para depois voltar aos 1.000 dólares, e retornar aos 2.000, em agosto de 2020, caindo novamente em mais de 10%, quando foi anunciada a descoberta de algumas vacinas contra a Covid-19.
Apostar no auspicioso futuro das criptomoedas mais importantes, como o bitcoin, significa esquecer que elas também estão à mercê de melhorias tecnológicas (alguns dos bitcoin challengers possuem uma velocidade de transação mais alta e são mais fáceis de serem usados). Implica, além disso, esquecer que o valor das criptomoedas – ao menos das que não estão indexadas –, muitas vezes, com o seu investimento e ampliação, reflete o valor das moedas legais e, portanto, a ideia que fazemos da política monetária dos bancos centrais.
É verdade, por outro lado, que a pandemia de Covid-19 ao justificar a criação quase ilimitada de dinheiro por parte dos bancos centrais, desferiu um golpe à credibilidade das moedas legais e potencializou o valor das criptomoedas, desde o fim de 2020. A isso se acrescentou a possibilidade de utilizar bitcoins na plataforma PayPal.
Pensar que as criptomoedas substituirão o ouro significa, por último, esquecer o fortalecimento dos controles e da regulação pública. Alguns anos atrás, em setembro de 2017, bastou a administração chinesa evocar a possibilidade de proibir as plataformas de intercâmbio de criptomoedas em seu território para que seu preço caísse por um determinado período. E no início do verão boreal de 2021, fomos testemunhas de uma nova queda provocada pela proibição da China à proliferação de criptomoedas em seu próprio território, por meio da mining [1] (que consome muita eletricidade).
A implementação das criptomoedas no panorama cultural acarreta uma mudança antropológica que pretendemos tratar nesse artigo. Quando nos libertamos da concepção restritiva dos economistas, que reduzem a moeda à sua tripla funcionalidade (unidade de medida, meio de troca e reserva de valor), então, percebemos que a moeda desempenha o papel de uma prenda.
Uma prenda é um objeto simbólico que recorda uma dívida. O euro que tenho em minhas mãos ou em minha conta bancária é o sinal de um compromisso contraído por todos os que, algum dia, talvez precisarão corresponder à minha contrapartida em forma de serviço, bem ou outra moeda. É claro, não se trata do reconhecimento de uma dívida com uma pessoa, uma empresa ou uma administração.
Além disso, essa prenda não tem um prazo determinado. Mas isso não retira que ela seja a promessa recebida de uma comunidade que se compromete a satisfazer, quando chegar o momento, minhas necessidades conforme as percebo. Por isso, os antropólogos falam da moeda como uma “dívida de vida”.
Em termos mais rigorosos, a moeda é um “crédito vista” diante de uma comunidade pagadora. Crédito, porque é o sinal de uma dívida. Vista, porque posso reivindicar a contrapartida a qualquer momento. Diante de uma comunidade, porque posso me dirigir a qualquer membro da comunidade, fornecedores de bens ou serviços, ou especuladores. Pagadora, porque, ao dar essa prenda, liberto-me de uma dívida pessoal sem que por isso a dívida da comunidade seja eliminada.
De fato, o pagamento em dinheiro é simplesmente a transmissão de uma prenda à comunidade, porque o fornecedor que recebe o pagamento adquire uma prenda, sinal de uma dívida da comunidade em relação a ele. Além disso, ele só aceita a prenda como pagamento, caso esteja convencido de que, chegado o momento, a comunidade honrará sua dívida. Dívida de vida, então, porque a moeda mobiliza os bens e as capacidades da comunidade a serviço – e segundo as preferências pessoais – de cada um de seus membros.
Assim, a antropologia que subjaz à moeda como reconhecimento da dívida de uma comunidade a cada um, funda-se em uma relação assimétrica, em uma dependência. No entanto, só uma concepção equivocada da liberdade pode enxergar nessa dependência da comunidade pagadora uma alienação. Nem sequer é necessário recorrer a Spinoza para justificar a liberdade como uma soma de condições aceitas, basta lembrar a natureza social e política do ser humano em toda a tradição cristã.
A dimensão política do ser humano parece desaparecer com o uso das criptomoedas, ao menos nas que não possuem trânsito legal. Os criadores das criptomoedas queriam subverter essa estrutura antropológica fundamental, caindo na corrente individualista radical da modernidade contemporânea. A criptografia eletrônica da qual nasceram as criptomoedas foi inicialmente, a partir dos anos 1980, o campo dos cypherpunks (palavra composta pelos termos em inglês cypher, “criptografia”, e punk: literalmente, os “anarquistas da criptografia”). Era o momento em que a internet deixava entrever o perigo de um controle da vida privada por uma administração pública tentacular, à maneira dos regimes totalitários evocados pelo conhecido romance de George Orwell, 1984.
A tecnologia utilizada pelas criptomoedas, o blockchain, ao eliminar os denominados “intermediários fiduciários” (bancos ou plataformas de pagamento), impulsionava ao extremo a tendência cultural do do it yourself (faça você mesmo). Por meio do blockchain, desvaloriza-se a instância política, escapando das normas decretadas pelo coordenador central. Assim, o indivíduo adquire uma margem de liberdade.
Em fins dos anos 1990, deu-se um passo fundamental, quando se descobriu a forma como substituir o intermediário fiduciário por um controle multipolar distribuído na web. Nas transferências digitais, a maior ameaça ao anonimato é o roubo da identidade ou, pelo contrário, sua divulgação, que é particularmente fácil quando se acessa a base de dados central responsável pelas conexões entre participantes. Foi o que aconteceu com as contas escondidas em paraísos fiscais. Com o blockchain, não existe nenhuma base de dados central, nenhum intermediário que controle a identidade dos participantes e a legalidade da operação. A realização da transferência está garantida sem a intervenção humana.
A subjetividade que permite a prenda monetária se estende até o individualismo com o uso das criptomoedas. No entanto, essa subjetividade individualista não está privada de regras. A autonomia individual na qual os apaixonados pela ideologia moderna se comprazem também está condicionada.
Nesse ponto antropológico, as criptomoedas diferem das moedas legais. Assim como as fichas do cassino ou as moedas locais, as cerca de 70 moedas locais, por exemplo, que circulam na França, valem um euro. Do mesmo modo, a unidade de medida nas associações que praticam a troca entre seus membros – os sistemas locais de intercâmbio, como se costuma chamá-los – pressupõem, além do conhecimento dos sujeitos que intercambiam e uma contabilidade precisa, um certo consenso do valor dos serviços intercambiados.
Por outro lado, no sistema das criptomoedas, a identidade dos portadores de direito permanece desconhecida até o momento em que desejarem converter sua criptomoeda em moedas legais, dólares, ienes, euros. Nesse momento, a administração pública está à espreita.
O espírito anárquico que presidiu a emergência das criptomoedas permanece, ao menos em uma parte de seus usuários. Isso quer dizer que o sistema carece de qualquer espécie de regras? Não. Não é possível imaginar uma instituição – linguagem, moeda, mercado – que não tenha um mínimo de organização vinculante ou, para usar a fórmula consagrada pelas ciências sociais, uma comunidade – por mais ectoplasmática que seja a das criptomoedas – sem sociedade.
Mesmo uma associação de pescadores artesanais, na qual cada membro participa ou se retira segundo o seu próprio estado de ânimo, é regida por regras, procedimentos ou costumes que se impõem. Nenhuma interação individual é possível sem linhas guias que enquadrem ou limitem as iniciativas de cada um, e isso é válido tanto para as criptomoedas como para qualquer comunidade.
Na comunidade da dívida recíproca das criptomoedas, a organização restritiva é óbvia: é a dos protocolos efetivados pelos fundadores, sendo o primeiro Satoshi Nakamoto, pseudônimo sob o qual se esconde um grupo de cientistas da computação. Eles criaram o bitcoin e publicaram seu protocolo no dia 31 de outubro de 2008.
Cada criptomoeda tem uma forma de se organizar. Algumas anunciam um limite total ao número de unidades monetárias que serão criadas (21 milhões para o bitcoin, das quais quatro quintos já estão em circulação, o que explica em parte sua atratividade). Outras especificam as condições exigidas para modificar o protocolo. São administrados os circuitos eletrônicos, enquanto os usuários são deixados livres: é também o ideal do liberalismo econômico radical.
Como internet, sem o qual não existiriam, as criptomoedas se desenvolvem no ritmo do capitalismo liberal, no mesmo ritmo do individualismo contratual, seu suporte cultural. Cada um se sente obrigado a fazer apenas aquilo a que se comprometeu contratualmente – ou que lhe foi imposto -, desconfiando de qualquer interface que possa interferir em sua liberdade individual.
Mas como não é possível passar da soma das vontades individuais à vontade geral, sem algum tipo de mediação, também não se passa diretamente da soma dos interesses individuais ao interesse geral. Daí certos ajustes que tornam a intervenção dos poderes públicos necessária – como demonstram as reações esperadas, mas sempre muito tardias, na esfera política – para contrabalançar as derivas observadas no uso das criptomoedas, como a do mercado.
Já existem liberdades nocivas que são o corolário da criptografia (o anonimato tanto do pagador como do destinatário). O anonimato torna as criptomoedas um cômodo meio de pagamento para transações ilegais. Esses abusos levaram os estados a regular o uso das criptomoedas de modo cada vez mais invasivo.
No Estado Vaticano, rege uma proibição geral de “prestação de serviços de emissão, venda, transferência, custódia, depósito, administração, intercâmbio, negociação e intermediação de moedas criptografadas, eletrônicas, virtuais ou sintéticas” (Lei n. XVII de 8 de outubro de 2103, sobre a transparência, vigilância e informação financeira, art. 5). Na França, ao contrário, a posse e o uso de criptomoedas é legal. Desde primeiro de janeiro de 2020, deve-se declarar qualquer conta aberta, vigente ou fechada em uma plataforma ou através de um intermediário para o intercâmbio de “bens digitais” (categoria que inclui as criptomoedas, conforme a classificação da administração francesa).
Já em 2014, na normativa fiscal francesa sob o título de “unidades de contas virtuais conservadas em um suporte eletrônico”, as criptomoedas obtidas no mercado eram tributáveis de acordo com o esquema progressivo do imposto de renda, na categoria de lucros comerciais. Em 2018, por outro lado, a administração as classificou sob a categoria de ‘bens imóveis incorpóreos’, tributáveis com base na sua mais-valia, como os instrumentos financeiros (flat tax de 30%).
A partir da lei financeira de 2019, as criptomoedas voltaram a entrar na categoria de “bens digitais”, definidas como “qualquer representação digital de um valor que não foi emitido ou garantido por um banco central ou uma autoridade pública; que não está necessariamente vinculada a uma moeda de trânsito legal e que não tem o status jurídico de uma moeda, mas que é aceita por pessoas físicas ou jurídicas como meio de troca e que pode ser transferida, conservada ou intercambiada eletronicamente”.
Longe do anonimato sonhado pelos cypherpunks, em vários países desenvolvidos, entre eles a França, quem possui ou utiliza uma criptomoeda deve se identificar e declarar todas as transações que efetua, junto com seus lucros e perdas. Os bancos são – como em todas as operações financeiras – zelosos auxiliares da autoridade monetária e dos serviços fiscais, em especial por meio do monitoramento da conversão em moeda legal efetuada em plataformas de intercâmbio, para identificar, entre outras coisas, a lavagem de dinheiro.
O marco político das criptomoedas não afeta apenas criminosos e contribuintes que querem sonegar impostos. Quanto mais aumenta a oferta de criptomoedas no mundo, maiores são os efeitos nos sistemas financeiros internacionais: efeitos capazes de obstaculizar as políticas monetárias públicas.
Em 2019, em nível internacional, o perigo das criptomoedas foi enfrentado pelos ministros das finanças do G7. Na ocasião, falava-se do projeto de uma criptomoeda lançada pelo Facebook: a libra (em latim, “balança”). Em 2019, o Facebook e outros gigantes da internet – Visa, Mastercard, Paypal, que depois se retiraram do projeto – manifestaram a intenção de emitir essa criptomoeda, destinada a cerca de 2 bilhões de potenciais usuários no mundo. A libra, anunciada para 2020, mas adiada sine die, lembrava a libra esterlina, de feliz memória, a moeda inglesa dominante no século XIX. Mas segundo seus criadores, baseia-se na antiga moeda romana.
Na mente de seus criadores, seu valor não se baseava em uma valorização especulativa do mercado, como os bitcoins e outras criptomoedas de valores erráticos, mas na média ponderada de uma cesta de moedas, como os Direitos Especiais de Giro (DEG) do Fundo Monetário Internacional (FMI). Sendo assim, não seria mais uma moeda para os estados, como os DEG, mas destinada à população e empresas, administrada por um ente privado.
Sob a aparência de argumentos sobre a evasão fiscal e o financiamento do terrorismo, a razão oculta dos opositores estadunidenses oficiais era a de que a libra, enquanto moeda internacional privada, poderia substituir o dólar em países golpeados pela dolarização, como aconteceu há algum tempo com Israel, e hoje na Argentina, e em alguns países africanos (quando a população abandona a moeda oficial desvalorizada para utilizar o dólar, mais resistente).
A difusão da libra repousaria na rede eletrônica global, como no caso das criptomoedas, ainda que de forma mais regulada. Na era do Big Data, na qual a informação útil provém em massa das estatísticas e bem menos de diagnósticos individualizados, a vantagem potencial é enorme para os donos do sistema – GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) –, mas não para os fiscalizadores, nem para os cidadãos preocupados em preservar sua privacidade.
Com efeito, a privacidade dos dados está polarizando a atenção da sociedade civil e inclusive, ainda que tardiamente, a das autoridades públicas. Mais ainda quando o Facebook acaba de ser condenado pela venda de dados comerciais extraídos de seus usuários. A monetização do Big Data é uma característica do “capitalismo de vigilância”, cuja informação elaborada estatisticamente tem um preço nos mercados globais. Informação que cada um alimenta com um gesto – um clique – aparentemente sem valor.
O Ministro das Finanças francês se opôs categoricamente à libra. O Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, por sua parte, expressou sua “grande preocupação”. Se algum dia a libra vier à luz, prevemos para as criptomoedas um cenário semelhante ao da internet: junto às promessas de democracia radical e de livre colaboração universal, a internet favoreceu muito rapidamente o controle burocrático, por um lado, e o domínio GAFAM, por outro.
O predomínio é cada vez mais aceito pela população, pois vem adornado com os valores da modernidade: racionalidade, segurança e rendimento. Esse cenário possível se baseia na lógica da economia de redes, na qual o maior – que muitas vezes é o primeiro a chegar – tem maiores probabilidades de ficar com a maior fatia, ainda que a qualidade de seu produto ou de seus serviços não seja a melhor.
Compreende-se, pois, como no jogo monetário mundial os bancos centrais buscam movimentar suas próprias peças, antes que seja tarde demais. Entre os países com economias fragilizadas pela geopolítica, as Ilhas Marshall abriram o caminho. Em 2018, a Venezuela lançou uma criptomoeda, o petro, indexada ao preço do barril de petróleo, para escapar das sanções dos Estados Unidos. Pelos mesmos motivos, em 2018, o Irã havia pensado em criar uma criptomoeda nacional, baseada no bitcoin, para enfrentar a queda de sua divisa nacional golpeada pelas políticas do presidente Donald Trump. A Turquia busca, igualmente, fortalecer sua economia lançando uma criptomoeda nacional.
Além desses países economicamente fragilizados, algumas grandes nações, junto com a China, estão se preparando para emitir criptomoedas públicas. No Canadá e em Singapura, pensa-se em desenvolver sistemas de pagamento oficiais em criptomoedas. Também o Banco Central do Reino Unido deseja criar uma criptomoeda indexada à divisa britânica.
Por último, o Banco Central Europeu (BCE), em um Informe de 2 de outubro de 2020, estimulou uma consulta dirigida a criar um “euro digital”, apoiado no euro e, portanto, menos volátil do que as criptomoedas não indexadas. No verão de 2021, o BCE afirmou que: “Nenhum obstáculo técnico foi identificado durante a fase preliminar de teste”. O BCE quer passar à fase seguinte, ou seja, à instalação de um “projeto piloto” bianual para criar um euro digital. Colocaram como prazo o ano de 2025.
Os motivos apontados carecem de originalidade, mas não têm segundas intenções: adaptar-se à prática crescente dos usuários que favorecem a digitalização dos pagamentos e, ao mesmo tempo, resistir à multiplicação e peso crescente das criptomoedas.
Em suma, uma visão antropológica e política sobre o desenvolvimento das criptomoedas daria razão ao pensamento de que as leis e as regras estão sempre na retaguarda das evoluções técnicas e dos mercados. Mas, como saber hoje – a menos que sejamos videntes – o que só poderemos saber amanhã?
[1] Mining (termo cunhado como metáfora da extração mineira) é um processo de natureza digital por meio do qual podemos obter criptomoedas geradas pela rede e distribuídas online.