Ajustando a rota: as possibilidades de novos caminhos através de reflexões sobre o mundo a partir da África

Na próxima atividade do Ciclo de Estudos Saberes Decoloniais, o tema será a filosofia política africana, com Nadine Machikou

Imagem: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 05 Dezembro 2022

O documentário Da África aos EUA: Uma Jornada Gastronômica (Netflix, 2021), produzido por Roger Ross Williams, Geoff Martz e Sarba Das, nos interpela e provoca a fazermos um movimento de volta. Muitos amantes e conhecedores dos bons pratos são capazes de jurar que o hambúrguer e o churrasco texano são realmente comidas típicas estadunidenses, assim como como o frango frito ou com quiabo e tantos outros. No entanto, a série quer justamente provar que essas comidas têm conexão direta com a África, com ingrediente e preparos trazidos de uma cultura ancestral silenciada dos séculos desde os processos de escravização. A narrativa, conduzida pelo gastrônomo e historiador Stephen Satterfield, revela que a África nos constitui para muito além do que imaginamos, embora venhamos negando essas apropriações das culturas ancestrais.

 

 

 

O fio condutor pelo qual Satterfield e seus produtores tecem a narrativa é a comida, mas revela bem mais do que só alimentos. É como que se, ao levantar as tampas das panelas, deixasse sair toda uma cultura por tempo abafada, dando a ver não só modos de vida, mas também uma filosofia e formas de ver e compreender o mundo. Como as descobertas gastronômicas do documentário, a filosofia africana tem sido fundamental nos movimentos decoloniais. Além de dar a ver essa forma de pensamento, ela abre outras possibilidades para compreender nossos tempos e, talvez, fazer frente a desafios tão contemporâneos como reedições de experiências totalitárias e crises que vão desde ambientais até econômicas e sociais.

  

 

Para Lewis Gordon, professor de Filosofia e Estudos Africanos, na Universidade de Connecticut, Estados Unidos, há questões básicas desse pensamento que podem nos inspirar a reflexões muitos atuais. “A filosofia existencial africana nos pede que façamos quatro perguntas importantes: 1) Se o colonialismo nos humaniza, devemos nos perguntar o que significa ser humano. 2) Se o colonialismo nos escraviza, devemos nos perguntar o que significa ser livre. 3) Se o colonialismo mente para nós, devemos perguntar o que significa ser verdadeiro. 4) E, também, precisamos perguntar por que enfrentamos a colonização o tempo todo. Será que todo sofrimento valeu a pena e essa é a crise da redenção?”, explica.

Guardadas as proporções, as distorções que fazemos sobre a comida, negando o passado e a ancestralidade africanas, podem ser vistas também quando não reconhecemos matrizes desse pensamento e o abafamos com discussões éticas arreigadas ainda num eurocentrismo. “A discussão sobre a origem racial e étnica distorce os povos da África”, aponta Gordon, que foi um dos conferencistas do Ciclo de Estudos Saberes Decoloniais: inquietações e saídas às crises de hoje. Para ele, é preciso que se tenha clareza de que “os povos da África não eram brutos que estavam no meio do mato”. “O motivo pelo qual o mundo moderno prosperou é porque as pessoas que foram escravizadas tinham um trabalho capacitado e levaram seu conhecimento para os locais onde atuaram, desde conhecimento sobre irrigação, medicina, arquitetura, até técnicas militares. Eles fizeram os locais florescerem, prosperarem”, conclui.

 

 

 

Assim, podemos conceber que a modernidade ocidental tinha problemas. A busca por formas de trabalho e conhecimento para lastrear o que compreende como desenvolvimento e os saberes e pensamentos africanos foi fundamental para a concepção de saídas aos problemas que se colocavam. E hoje? Sim, vivemos mergulhados radicalismos que nos remontam a disputas tribais, hoje transvestidas pelos modernos conceitos de xenofobia, racismo, machismo e muito mais. Quem sabe, se voltarmos às realidades ancestrais das populações e comunidades africanas e suas lógicas de relacionamento, não poderemos pensar novas saídas?

Essa é uma das provocações que podem ser levadas para a última atividade do ano no Ciclo de Estudos Decoloniais, a conferência “A filosofia política africana na resposta aos radicalismos contemporâneos: do regional ao universal”, com a professora Nadine Machikou. A palestra, que vai na linha das provocações e descobertas de Gordon, ocorre na próxima quarta-feira, 7-12, às 10 da manhã. A transmissão será no formato live, pelos canais do IHU.

Talvez, como as descobertas gastronômicas de Stephen Satterfield, quem sabe nós não possamos corrigir nossas rotas e voltar à África. A possibilidade de aprendermos sobre a vida, resistência e esperança é grande e, quem sabe, possamos rever e reinterpretar o mundo e nossos problemas, através dessa filosofia tão silenciada, e abafada como o quiabo posto fervura.

 

 

 

Saiba mais sobre Nadine Machikou

Nadine Machikou é professora de Ciência Política na Universidade de Yaoundé. É coeditora-chefe da Review Politique Africaine e membro do comitê de edição da revista Global Africa. Ela também é diretora de seminários no International War College de Camarões e diretora do Centro de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional e Comunitário (Universidade de Yaoundé II) e presidente do júri de agregação de 2019 e 2021 da Seção Política da Conselho Africano e Malgaxe para o Ensino Superior (CAMES). É vice-presidente da Associação Africana de Ciência Política desde março de 2021.

  

Nadine Machiko

Foto: Universitaire de la Francophonie

 

Seu trabalho hoje se concentra nas expressões práticas e simbólicas da violência, na economia política e moral das emoções (compaixão pela África, raiva no contexto da crise anglófona ou da seita islâmica Boko Haram, etc.), políticas públicas e integração comunitária na África.

É professora convidada da Universidade de Nanterre, da Universidade de Dauphine, do Instituto Internacional de Francofonia da Universidade de Lyon e da Academia Diplomática do Vietnã, bem como da Universidade de Lomé, Abomey Calavi, Kara, Abidjan.

Reportagem com Nadine Machikou reproduzidas pelo IHU

 

O Ciclo de Estudos Saberes Decoloniais

O Ciclo de Estudos Sabares Decoloniais: inquietações e saídas às crises de hoje vem na esteira de uma série de atividades promovidas pelo IHU, como “Decálogo sobre o Fim do Mundo”, “A (in)existência de um mundo comum. Pensamento vivo e mudanças possíveis à luz de Bruno Latour”, “Ciclo de Estudos – A condição humana entre a Biosfera, a Tecnosfera e a Infosfera em tempos sindêmicos”, “Populismos, autoritarismo e resistências emergentes”, que buscam apontar novas questões e buscar respostas para os grandes desafios de nossa época. As atividades começaram em setembro e tem na conferência de Nadine Machikou sua última atividade do ano.

 

Confira as demais conferências realizadas em 2022

 

 

 

 

 

 

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