28 Novembro 2022
Surto de cólera, expansão de grupos armados e bloqueios de estradas e portos.
A reportagem é de Sofia Troiano, publicada por Pagina|12, 27-11-2022.
A falta de acesso a combustível, alimentos, água potável e atendimento médico atinge a população, explica Sabina Frederic, presidente da Missão da Agência Argentina de Cooperação Internacional e Assistência Humanitária.
O Haiti está em uma situação dramática, alerta Sabina Frederic, presidente dos Capacetes Brancos argentinos. Em diálogo com o Página|12, Frederic conta as dificuldades pelas quais passa o país caribenho, marcado pela presença violenta de gangues, cólera e fome.
Esta semana foi realizada uma missão oficial da Agência Argentina de Cooperação Internacional e Assistência Humanitária - Capacetes Brancos (ACIAH) a Porto Príncipe, capital do Haiti, com o objetivo de avaliar a situação humanitária naquele país. Segundo Frederic, ex-ministro da Segurança do atual governo, um dos problemas mais graves do Haiti são as gangues. “Entre os meses de setembro e outubro, quadrilhas criminosas bloquearam portos e rotas, interrompendo a distribuição de combustível, deixando o Haiti paralisado até 4 de novembro”, comenta Frederic.
Capacetes Brancos é "a agência do Ministério das Relações Exteriores da Argentina dedicada ao desenho e execução da assistência humanitária, atendimento de emergência, gestão integral do risco de desastres e a contribuição para o desenvolvimento sustentável da República Argentina em nível internacional", segundo explica o site do Ministério. Em 27 anos de existência, realizaram mais de 700 missões em 73 países.
Esta não é a primeira missão dos Capacetes Brancos ao Haiti. Em 2016, realizou uma missão de ajuda humanitária após o furacão Matthew. Em 2019, outra missão participou de uma campanha de saúde junto com outros países da América Latina e Caribe a bordo do Navio Hospital "USNS Cofmort". Em 2010 e 2021, as missões dos Capacetes Brancos também partiram da Argentina para o Haiti para ajudar após um furacão.
A atual missão da ACIAH também foi integrada pelo vice-presidente da Comissão dos Capacetes Brancos, Pablo Virasoro, e pela diretora nacional de Planejamento e Coordenação de Assistência Humanitária, Mariana Galvani. Durante a estada, eles se reuniram com a ex-primeira-ministra, Michèle Duvivier Pierre-Louis, e com Patrick Pellisier, do Instituto Haitiano de Direitos Humanos.
Segundo o presidente da ACIAH, os bloqueios das gangues foram uma das causas do ressurgimento da cólera, doença erradicada há três anos. “Nesses meses de bloqueio, onde as pessoas não tinham acesso a água potável e não podiam tomar banho e não tinham acesso a alimentos, estourou a cólera, que não acontecia há três anos”, explica Frederic, lembrando que esta situação é pior nos bairros mais humildes da capital haitiana, como Cité Soleil. Esta comuna está localizada no oeste do país e é uma das mais pobres da região metropolitana de Porto Príncipe.
Os cortes das três vias que ligam o centro, o norte e o sul do país dificultam muito o acesso às organizações humanitárias. “É uma situação dramática porque a cólera está avançando em todo o país e não apenas em Porto Príncipe. As gangues bloqueiam a circulação de pessoas impossibilitando o acesso de ajuda de organizações, tanto nacionais quanto internacionais ”, lamenta.
“Aquele bloqueio ao povo significava que a ajuda não podia sair nem entrar. Então eles ficaram sem água, sem comida. Quando começou a ser possível entrar nos bairros bloqueados, encontravam-se pessoas com sarna porque não podiam tomar banho. Tem gente que morreu de fome”, diz Frederic.
Porém, aos poucos está sendo possível voltar a distribuir o combustível, um dos grandes problemas que afeta o funcionamento dos hospitais em momentos de expansão do cólera. “Houve uma negociação da polícia haitiana com uma das gangues, que estava bloqueando o porto. Isso fez com que começasse a ser distribuído em Porto Príncipe, mas ainda não chegou a todo o país, está sendo feito aos poucos”, diz Frederic.
Frederic conta que a expansão das organizações criminosas tem crescido nos últimos tempos. “Essas quadrilhas criminosas existem há alguns anos, mas há cerca de dez anos começaram a proliferar. Hoje estima-se que existam cerca de duzentas gangues que reúnem cerca de 3.500 pessoas em todo o país ”, explicou em uma comunicação telefônica do aeroporto de Miami, onde fez escala na noite desta sexta-feira após cumprir a missão.
“As gangues desempenham um papel dramático. Elas até ocuparam alguns prédios públicos e isso significa que os funcionários não podem ir trabalhar. Por exemplo, a Câmara de Cassação, que é como a Suprema Corte de Justiça da Argentina, não está funcionando”, está alarmado Frederic. Também conta que o Ministério da Saúde funciona em um hotel. “O Ministério da Educação e o Ministério do Trabalho estão com muitos funcionários trabalhando de casa porque não dá para circular, ou seja, a cidade está sitiada. Cerca de 60% do território está sitiado por grupos criminosos”, acrescenta.
As forças de segurança são intimidadas pelo poder dessas organizações. “A polícia haitiana não tem equipamento suficiente, nem autoridade, nem legitimidade e, além disso, há corrupção entre as gangues e a polícia. Os policiais não recebem e quando prendem alguém correm o risco de serem mortos. A falta de institucionalidade é absoluta”, afirma a responsável, que é antropóloga. “O Estado não existe, perdeu o controle territorial ao longo de muitos anos. Esse processo é mais ou menos trinta anos desde a última ditadura que acabou em 1985”, acrescenta.
“As gangues estão fortemente armadas. As armas chegam dos Estados Unidos e a circulação estimada de armas é de aproximadamente quinhentas mil armas. Segundo a Gendarmaria haitiana, que faz a segurança do embaixador argentino, César Alberto Faes, no país, o poder de fogo das quadrilhas criminosas é maior que o da polícia.
Sobre a posição do governo quanto à situação do país, o presidente da ACIAH diz que há uma visão compartilhada entre a oposição haitiana e o partido no poder. “Existe um consenso sobre o diagnóstico da situação e sobre a necessidade de haver um acordo mínimo entre as forças do atual partido no poder, que se encontra muito debilitado, e a oposição”, explica. Além disso, foi estabelecida a necessidade de ajuda internacional.
A falta de legitimidade do Estado haitiano pode ser vislumbrada na nomeação do atual primeiro-ministro, Ariel Henry, que foi nomeado pelo anterior, Jovenel Moise, dois dias antes de ser assassinado em julho de 2021 por um grupo armado. “O primeiro-ministro não tem muita legitimidade porque, para a nomeação de ministros, é necessária a validação do Parlamento, mas o Parlamento não funciona há mais de um ano”, explica Frederic.
Mas, segundo a antropóloga, nem tudo está perdido. “Existem ilhas de vitalidade coletiva no Haiti. Fomos ver uma comunidade agrícola que está trabalhando para recuperar a fertilidade da terra e estão produzindo hortaliças”, conta Frederic. “Existem desejos de transformar a sociedade, mas o diálogo, o acordo, a conversa é muito difícil e os níveis de violência são muito altos. As pessoas estão apavoradas”, acrescenta.
No entanto, o Haiti não recebeu muita ajuda internacional nos últimos tempos. “Somos uma das primeiras delegações internacionais a chegar em três meses”, diz Frederic. No âmbito da presidência pro tempore argentina da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), a missão do Itamaraty é diagnosticar a situação humanitária haitiana. Com todas essas informações estamos trabalhando em um relatório para que nosso ministro das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, construa uma posição fundamentada para o diálogo com os demais países da CELAC”, explica Frederic.
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Haiti: diagnóstico dramático - Instituto Humanitas Unisinos - IHU