22 Junho 2022
“O ministério dos jesuítas à população negra – livre, fugitiva e escravizada – foi motivo de preocupação entre outros proprietários de escravos no Haiti. Seus esforços missionários eram vistos como perturbadores para a subsistência dos proprietários de escravos e até mesmo uma ameaça à sua segurança. No século XVII, alguns teólogos jesuítas especularam que, sob certas circunstâncias, o regicídio poderia ser considerado moralmente permissível. No contexto da sociedade escravista do Haiti, tal especulação era vista como o mesmo que encorajar a revolução contra os proprietários de escravos. Perto do clímax da disputa na década de 1760, o governo colonial aprovou leis proibindo quaisquer textos jesuítas que discutissem o regicídio”, escreve Benjamin E. Heidgerken, professor de teologia na University of St. Thomas, Minnesota, EUA, em artigo publicado por America, 17-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quando uma mulher escravizada entregava sua filha recém-nascida para seu senhor, ela não podia nem olhar nos olhos dele. Estava calor (e sempre fazia calor), e ela devia voltar para o canavial naquela tarde. Os deveres estavam acima das manias delas.
O homem pegou a menina, deus as costas e caminhou com ela para a fonte batismal. Ele sempre andava confiantemente – sua confiança era típica dos grand blancs na colônia hatiana. As pessoas escravizadas em quem ele confiava estavam por lá, com sua esposa e criança. Sua família o acompanhou da França à ilha, embora à contragosto. Eles viam a colônia da mesma forma: apenas um passo para um retorno lucrativo para a terra natal e uma mansão no Loire.
O grand blanc segurava a criança na fonte, esperando pelo padre dos negros começar a cerimônia. Em seu clergyman, o jesuíta se postou quase que como o senhor. Tendo substituído os capuchinhos ao norte de Santo Domingo em 1704, a Companhia de Jesus sabia o que precisava fazer para manter seus direitos eclesiásticos e sua posição na colônia. Apesar dos muitos obstáculos financeiros e civis, construíram uma grande empresa missionária, pregando e ensinando na ilha onde sobrevivência e lucros eram a ordem do dia. Deus formou servos desde o solo, mas a Companhia teve que sujar suas mãos para devolver a humanidade ao serviço de Deus. Tinha cinco plantações na ilha com muitos africanos escravizados para financiar sua missão.
O padre sorria para a bebê, então olhava severamente para o suposto dono daquela pequena imagem de Deus. Sua pele era diferente da dos seus irmãos – muito mais clara. O jesuíta notou o olhar abatido no rosto da mãe.
“Eu vejo”, disse o jesuíta, procurando as próximas palavras. A “confiança” dos grand blancs era bem conhecida em Cap-Français, mas até então suas consequências tinham sido confinadas à expressão oprimida da mãe e às paredes do confessionário. Reunindo-se e olhando rapidamente para ver se algum funcionário do governo estava entre os presentes ao batismo, ele olhou gravemente para o senhor: “Qual é a sua relação com essa garotinha?”
Minha pesquisa sobre a Companhia de Jesus em Santo Domingo começou há mais de dois anos, quando eu procurava por histórias que meus alunos seminaristas pudessem contar a suas congregações sobre a escravidão e o catolicismo. Em contraste à narrativa que reflete as ansiedades do período anterior à Guerra Civil Americana dos senhores de escravos protestantes sobre os perigos de uma revolução, eu quis encontrar histórias de agência católica – o bom, o mau e o feio. Os escritos de Médéric Louis Élie Moreau de Saint-Méry, de onde eu tirei o relato acima, se tornou minha janela nesta história.
Saint-Méry era um advogado francês, escritos e político moderado que apoiava os governos colônias franceses em seus escritos. Ele escreveu um ensaio decididamente pró-França sobre a história da ilha de Santo Domingo e compilou seis volumes de documentos do governo francês que foram publicados menos de uma década antes da Revolução Francesa. Sua perspectiva nesses escritos dificilmente está escondida. Como muitos na sociedade iluminista francesa, ele demonstra ceticismo em relação à religião autoritária e não era amigo dos escravizados (tornando muito difícil recuperar histórias simpáticas de católicos escravizados de seu trabalho). Muito deste material não apareceu em inglês, mas seu trabalho fornece uma das mais claras analogias para católicos de língua inglesa em relação ao envolvimento católico na escravidão americana.
O catolicismo era a religião estabelecida do Haiti colonial, o local de uma das maiores populações de povos escravizados nas Américas – mais de 150 mil pessoas escravizadas na região jesuíta somente em 1743. O Code Noir do colonialismo francês (promulgado pela primeira vez em 1685) fabricou uma sociedade altamente estratificada na colônia. Em 1791, o ressentimento que esse sistema produziu levou à revolta mais bem-sucedida dos povos escravizados na história humana – modelada na Revolução Francesa.
O papel pastoral do “Padre dos Negros [curé des negres]” foi ocupado por pelo menos dois jesuítas na antiga colônia haitiana por um período de 59 anos. A história deste escritório pastoral oferece aos católicos americanos hoje uma janela única para a conturbada relação histórica da Igreja com a escravidão e o racismo. Quando a “questão da escravidão” transbordou nos Estados Unidos em 1860, deixou de lado a consciência pública da “questão católica”: como uma nação historicamente protestante pode acolher e apoiar um enorme influxo de imigrantes católicos romanos?
Nesse contexto, os católicos dos EUA podem, com alguma justificativa, olhar para a “questão da escravidão” e suspeitar que era realmente um “problema protestante”. Mas refletir sobre o trabalho dos jesuítas no Haiti dissipa esse mito.
Para os católicos estadunidenses que buscam um caminho através do conturbado clima racial de hoje nos Estados Unidos, o padre jesuíta dos negros oferece um grau de clareza moral e um exemplo único de reflexão e imitação. Os relatos de Saint-Méry sobre suas ações dificilmente são mais simpáticos do que os relatos de Saint-Méry sobre pessoas escravizadas, mas a posição do Padre dos Negros – como um ministério estabelecido nos documentos fundadores da Companhia de Jesus no Haiti – tornou impossível para o governo colonial ignorá-lo ou silenciá-lo imediatamente.
Intelectualmente, o período colonial anterior deu origem a correntes teológicas opostas. À medida que o interesse de Portugal na África Ocidental cresceu durante o século XV, o Papa Nicolau V abordou essa expansão colonial em um par de bulas na década de 1450 que endossou a “servidão perpétua” dos “pagãos” da África Ocidental como uma parte necessária da missão evangélica da Igreja.
Tais declarações papais refletiam a influência da Maldição de Cam, uma estrutura teológica explicitamente racista: os africanos ocidentais, com sua inclinação única à violência e hipersexualidade, devem ser fisicamente subjugados se quiserem abraçar (tanto quanto possível) a verdade e a fé cristãs. Uma abordagem contrária à escravidão foi encontrada nos escritos do Papa Eugênio IV (já da década de 1430) e desenvolvida pelo Papa Paulo III em 1537. Esses papas argumentavam que evangelização e escravidão eram opostas uma à outra e trabalhavam para diminuir o papel da escravidão entre povos recém-encontrados.
Após a primeira viagem de Colombo, o Papa Alexandre IV concedeu o controle da Ilha Hispaniola à Espanha (que compreende o Haiti e a República Dominicana) na esperança de que a Espanha espalhasse o cristianismo na ilha. À medida que vários párias franceses se estabeleceram na parte ocidental da ilha ao longo do século XVII, a presença espanhola diminuiu e a colônia francesa resultante passou a ser conhecida como Santo Domingo.
A diocese espanhola ocidental já havia sido absorvida de volta à diocese oriental em 1527. A porção ocidental francesa voltou ao território de missão e permaneceu efetivamente sem bispo por mais de 300 anos. Em 1697, o Tratado de Ryswick colocou oficialmente a França no controle de Santo Domingo, solidificando a colônia como centro de trabalho escravo nas plantações francesas. A maioria das pessoas escravizadas foi trazida da África Ocidental, onde existia uma variedade de tradições religiosas indígenas, incluindo pelo menos um grupo monoteísta com simbolismo religioso e práticas devocionais centradas em serpentes não venenosas.
Entre as ordens religiosas que chegaram a Santo Domingo naquela época, os jesuítas parecem ter demonstrado o maior fervor evangélico – embora não sem contradições muito típicas da época. Em vez de procurar estudar as tradições religiosas pré-existentes dos escravizados, os missionários jesuítas preferiram acreditar que os africanos escravizados simplesmente não tinham religião alguma. Mesmo quando os colonos tiveram que reconhecer a existência da religião da África Ocidental, o papel das serpentes nessas tradições certamente levou a avaliações teológicas negativas entre os cristãos, que tendiam a ver as serpentes em um contexto religioso muito diferente (na verdade, demoníaco). Mais dolorosamente, porém, os jesuítas se tornaram proprietários de fazendas e pessoas escravizadas quando a missão encontrou desafios financeiros. Entre os escravizados e os outros franceses proprietários de escravos, os jesuítas se posicionaram como “os bons proprietários de escravos”.
Sob a influência dos jesuítas, foram aprovadas leis que ilegalizavam o trabalho dos escravizados aos domingos e que permitiam que os escravizados assistissem à missa, recebessem o batismo e se casassem. Os jesuítas foram encarregados de todos os esforços missionários no norte da colônia em 1704 e supervisionaram a construção ou manutenção de 12 igrejas paroquiais em 1726. Eles trabalharam para converter fugitivos e tiveram contato como missionários com uma população escravizada de talvez 25 mil nos primeiros anos da missão.
O ministério dos jesuítas à população negra – livre, fugitiva e escravizada – foi motivo de preocupação entre outros proprietários de escravos no Haiti. Seus esforços missionários eram vistos como perturbadores para a subsistência dos proprietários de escravos e até mesmo uma ameaça à sua segurança. No século XVII, alguns teólogos jesuítas especularam que, sob certas circunstâncias, o regicídio poderia ser considerado moralmente permissível. No contexto da sociedade escravista do Haiti, tal especulação era vista como o mesmo que encorajar a revolução contra os proprietários de escravos.
Perto do clímax da disputa na década de 1760, o governo colonial aprovou leis proibindo quaisquer textos jesuítas que discutissem o regicídio.
É difícil não perguntar, em retrospecto, se os jesuítas como um todo fizeram o suficiente para libertar os escravizados. Inegavelmente, muitos deles não viam a situação com a devida clareza moral. Ainda assim, a retrospectiva fornece alguns motivos para simpatia com sua defesa, por mais limitada que tenha sido. Em 24 de novembro de 1763, as autoridades civis determinaram que bastava; decretaram a expulsão dos jesuítas da colônia. À luz dessa expulsão, pode-se ver as limitações práticas que circunscreveram suas opções. Agir de forma mais “radical” em favor dos escravizados só poderia ter apressado sua saída da ilha, para ser substituído por missionários mais bajuladores. Esta supressão local alimentou a supressão global da Companhia de Jesus dez anos depois.
Desde o início de seus esforços missionários, o ministério jesuíta entre a população negra plantou as sementes que levariam à sua eventual expulsão da colônia. Seu ministério repetidamente despertou a ira do governo colonial.
A partir de 1705, o padre Pierre-Louis Boutin serviu na cidade nortenha de Cap-Français como o primeiro padre dos negros. Como todos os registros da defesa de Boutin chegam até nós em segunda mão (seja através das leis coloniais que condenaram suas atividades ou de relatos jesuítas posteriores), não temos uma visão direta de suas visões morais pessoais. Não sabemos, por exemplo, se Boutin se opôs à propriedade de pessoas escravizadas pela Companhia de Jesus. Tampouco sabemos se ele, no modelo do bispo e santo Gregório de Nissa do século IV, considerava a própria escravidão imoral.
O relato oficial de suas ações preservado por Saint-Méry muitas vezes obscurece intencionalmente a natureza da disputa entre o Padre dos Negros e outros na colônia. Em tal contexto, deve-se ler as fontes com ceticismo e olhar penetrante para determinar as próprias intenções do padre. A conjectura e a imaginação são inevitáveis quando confrontadas com fontes documentais explicitamente dedicadas a defender uma ordem social injusta.
Em 1737, a morte de dois indivíduos na colônia haitiana – um homem branco e uma mulher negra – causou comoção. Um padre jesuíta foi chamado para dar os últimos ritos a um homem branco, o Sr. Olivier, que havia adoecido. Ao chegar, o homem recusou a oferta do padre de ouvir sua confissão. Naquela noite, o Sr. Olivier morreu. Os jesuítas recusaram-se a dar-lhe um enterro cristão, alegando que ele demonstrava uma obstinada rejeição da fé.
Naquela época, uma mulher negra foi espancada e enforcada. Nenhuma outra circunstância relacionada à morte da mulher é preservada, nem mesmo seu nome. Mas pode ser provável que um proprietário de escravos tenha espancado e enforcado uma de suas escravas. Enquanto o Code Noir impunha multas aos proprietários que espancavam seus escravos, os espancamentos continuavam comuns; além disso, o registro comumente preservado de fatores agravantes para a morte de pessoas negras. A falta de mais detalhes registrados pode, portanto, apontar para um “legítimo” proprietário de escravos disciplinando sua “propriedade”. Além disso, Boutin soube da morte da mulher e fez um esforço para encerrar e curar a comunidade negra: ele realizou seu enterro, conforme descrito no registro oficial, com “uma espécie de solenidade”.
Pode-se imaginar a família da mulher espancada reunida para uma missa funerária ou no túmulo enquanto Boutin tentava oferecer algumas palavras que pudessem dar algum sentido ao seu assassinato. Sua decisão de tratar a morte dela dessa maneira foi claramente uma desculpa para a mulher e, ao mesmo tempo, uma repreensão ao assassino. A resposta do governo colonial reconheceu essas implicações: “As ações deste religioso não podem ser aprovadas… o superior dos jesuítas deve proibir que algo semelhante aconteça novamente.”
Ao mesmo tempo, o governo continuou a insistir que o Sr. Olivier, que havia sido embalsamado enquanto a disputa estava sendo resolvida, recebesse um enterro cristão. Após sete meses de recusas, os jesuítas finalmente obedeceram.
Boutin serviu a comunidade negra do Haiti por mais de 35 anos até sua morte na ilha em 1742. Uma biografia jesuíta póstuma de sua vida fala dele em termos altamente santos, reconhecendo seu serviço à população negra, bem como sua intensa piedade pessoal. Após sua morte, pelo menos mais um jesuíta serviu como “Padre dos Negros” até a expulsão da Companhia em 1763. Nem os registros coloniais, nem os jesuítas declaram claramente a identidade desse sucessor. Mas suas ações foram denunciadas em 21 de fevereiro de 1761, quando foi emitida uma reprimenda oficial por suas ações. A repreensão reconheceu as intenções “sem dúvida louváveis” do padre, mas cabe ao leitor discernir quais eram essas intenções. Do registro, parece que este Padre dos Negros trabalhou para construir laços de caridade e respeito mútuo na sociedade altamente estratificada do Haiti colonial.
Reconhecendo o grande número de membros livres e escravizados da comunidade negra, o Padre dos Negros nomeou catequistas leigos negros para pregar o Evangelho entre a população negra da colônia. Naquele tempo, quando muitos papéis sociais eram barrados para as comunidades negras, ele trabalhou para nomear negros como sacristãos, seguranças da Igreja e músicos em Cap-Français.
Embora as reuniões da comunidade negra na ilha fossem severamente restritas, ele celebrou a missa para congregações exclusivamente negras e permitiu que elas se reunissem na igreja quando ele não estava presente. Em tais reuniões, eles cantavam canções e um leigo negro se acostumou a pregar para a congregação. O governo via essas reuniões de negros na ilha como uma ameaça. Em vez de simplesmente reconhecer suas ansiedades sociais, no entanto, o mesmo registro que castiga o padre também o acusa de erro teológico: o padre está dizendo que prejudica a integridade da fé católica uma comunidade de negros separada da população branca da colônia. Ignorando as inúmeras maneiras pelas quais a estratificação racial haitiana negava a unidade e a catolicidade da comunidade cristã, o governo argumentou que era o próprio ato de permitir que os negros cultuassem por si mesmos de maneiras culturalmente familiares que atacavam a unidade da Igreja.
Finalmente, embora relacionamentos significativos entre escravos e brancos fossem amplamente desencorajados, esse jesuíta procurou formar laços não exploradores entre essas populações incentivando, em algumas circunstâncias, padrinhos brancos para crianças negras e mestiças. Em todos esses casos, o padre empoderou e levantou vozes negras e forçou os brancos na ilha a ver a humanidade das pessoas que estavam explorando para obter ganhos financeiros.
No registro oficial, a reprimenda mais enigmática que esse sucessor Padre dos Negros recebeu foi especificamente relacionada à sua conduta nos batismos de crianças mestiças. A circunspecção e a evasividade com que o documento aborda a situação obscurece a compreensão do leitor. Dizem-nos que o padre às vezes se opunha aos padrinhos brancos de tais crianças. O jesuíta “discutiu a conduta” do padrinho branco de uma forma que recaiu sobre o padrinho branco como “uma espécie de insulto” e levou a atrasos na administração do sacramento.
O comportamento do padre e suas objeções são registrados como “bizarros e desconhecidos no resto da cristandade”. Mas é possível vislumbrar através desse emaranhado de palavras uma reconstrução perfeitamente razoável da objeção do padre. Desde o século IX, a igreja não permitia que os pais de uma criança atuassem como padrinhos. Ao buscar a conformidade com as regras da igreja para o batismo, o Padre dos Negros expôs a exploração sexual de pessoas escravizadas – para constrangimento dos proprietários de escravos ou outros perpetradores brancos.
Há mais evidências no registro oficial que indicam um esforço sistêmico para suprimir um segredo tão terrível. Em 14 de novembro de 1755, as autoridades proibiram os párocos de registrar os nomes dos homens livres nas certidões de batismo dos filhos “ilegítimos”. Uma regra semelhante foi aprovada para os notários em setembro de 1761. Mas o elemento mais perverso desse encobrimento aparece na reprimenda de 1761 do Padre dos Negros, onde as autoridades levantaram argumentos teológicos contra seus esforços. Eles repreenderam o padre por não reconhecer a importância do batismo infantil, deixando as crianças em estado de pecado original até que a disputa fosse resolvida. Eles o lembraram que até os leigos podem batizar em caso de emergência. Eles apontaram que os padrinhos nem mesmo são estritamente necessários para um batismo válido – por que discutir sobre sua conduta?
Escondendo-se por trás de uma falsa preocupação com a salvação da alma da criança (a lei não menciona nenhuma ameaça imediata à saúde ou à vida dos bebês em questão), as autoridades civis mascararam sua verdadeira intenção: evitar o constrangimento de criminosos brancos que haviam explorado sexualmente escravizados pessoas ou mulheres negras livres. A solução das autoridades foi tornar ilegal que um padre recusasse um padrinho com base em sua conduta, desde que o padrinho fosse católico. Sem mais perguntas desconfortáveis.
Tanto o governo quanto o Padre dos Negros estavam tecnicamente corretos, no que diz respeito a cada lado, nos argumentos que fizeram sobre o batismo. Mas os fins para os quais eles empregaram essa teologia foram drasticamente diferentes.
O Padre dos Negros usou a teologia para chamar a atenção para o grave mal moral e levantar os fracos e vulneráveis. As autoridades civis usaram a teologia para obscurecer a injustiça, apagar o mal do registro público e perpetuar a escravidão. O conteúdo proposicional preciso por si só não garantia que seu pensamento sobre Deus promoveria o verdadeiro bem de todos os povos.
As ações do padre tiveram um alto custo para ele e para a Companhia. O documento que expulsou os jesuítas do Haiti em 1763 relata as ações do Padre dos Negros como a principal evidência dentro da colônia para a repressão aos jesuítas.
Entendida dessa maneira, a história do Padre dos Negros lança alguma luz sobre o que John Henry Newman chamou de “um dos assuntos mais misteriosos da história da Igreja”. Embora tenha havido, sem dúvida, muitos fatores que levaram à repressão global dos jesuítas em 1773, podemos dizer com alguma certeza que sua repressão no Haiti foi uma consequência da defesa da Companhia em favor da população negra da colônia.
Ao nível da ação pessoal, o sucessor de Boutin oferece-nos um valioso caminho a seguir. Em vez de uma insistência paternalista em controlar a mensagem do Evangelho, esse jesuíta permitiu que a população negra do Haiti fizesse seu o Evangelho e o falasse com suas próprias palavras. Ele abriu novos caminhos para eles expressarem sua fé e adorarem a Deus de maneiras familiares à sua herança cultural. Quando viu indícios de abuso sexual de pessoas escravizadas, recusou-se a ficar calado. Ele viu que mesmo a reflexão teológica de alto nível poderia ter sérias ramificações práticas (positivas e desastrosas) para a igreja e seus fiéis. Ele sabia que a diversidade cultural de práticas de adoração não era uma ameaça inata à unidade da igreja, mas sim uma expressão de sua unidade em conjunto com sua catolicidade. Ele articulou persistentemente as verdades da fé para criar uma sociedade mais justa e promover o florescimento de todos aqueles sob seu cuidado espiritual.
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O complicado passado dos jesuítas no Haiti. Da propriedade das fazendas ao serviço à comunidade negra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU