26 Novembro 2022
60 anos após a abertura do Concílio Vaticano II, uma mesa redonda releu aquele período fecundo da história da Igreja, entendendo-o como uma revolução que levou ao florescimento das editoras católicas, particularmente na Itália.
O evento intitulado “A revolução do Concílio Vaticano II e o florescimento das editoras católicas”, realizado em 12 de novembro passado em Bolonha, reuniu o padre dehoniano italiano Alfio Filippi, diretor emérito das Edizioni Dehoniane Bologna (EDB), e Francesca Cocchini, professora de História do Cristianismo na Universidade La Sapienza de Roma.
A fala de Filippi foi publicada por Settimana News, 21-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na passagem entre o século XX e o XXI, há cerca de 20 anos, Italo Calvino notava que o milênio passado “foi o milênio do livro, na medida em que viu o objeto livro tomar a forma que nos é familiar. Talvez o sinal de que o milênio está para se fechar seja a frequência com que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica, chamada de pós-industrial (...). A minha fé no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura pode dar com seus meios específicos” (“Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas”, Companhia das Letras, 1990).
Capa do livro "Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas" de Italo Calvino
Foto: divulgação
O que Italo Calvino diz sobre o “milênio do livro” também vale para o livro de teologia: todos nós vivemos o livro como instrumento privilegiado de saber, como lugar natural para buscar e praticar a teologia. A conexão livro-teologia é tão pacífica que, entre as condições estabelecidas pela autoridade competente da Santa Sé para reconhecer uma faculdade teológica, está a da presença de uma biblioteca em funcionamento.
A biblioteca é um componente fundamental de uma universidade, um dado essencial, tal como o corpo qualificado de docentes e uma zona de influência suficiente. Também se pode lembrar que a estrutura típica dos mosteiros da Era de Ouro se organizava em torno de dois ambientes simetricamente dispostos: a igreja e a biblioteca.
Como a imagem grandiosa da abadia de Maria Laach, berço do renascimento litúrgico na Alemanha no século passado, com os dois blocos simétricos, estruturando a vida e o espaço monacal. E bibliotheke farmakon thes psukés, a biblioteca é o remédio para a alma, foi o que encontrei escrito em grego no solene portal de uma antiga biblioteca.
Abadia Maria Laac, localizada na Alemanha
Foto: Nikanos | Wikimedia commons
Mais do que nos princípios, portanto, é oportuno fixar a atenção nos interlocutores que o binômio livro-teologia põe em questão. Que são fundamentalmente três: o autor, o editor e o leitor. A figura do livreiro deve ser inserida entre o editor e o leitor, reduzida no senso comum a um mero lugar de fornecimento do objeto livro, mas, na realidade, ponto determinante (hoje particularmente crítico) na difusão desse instrumento de saber. E é um problema que põe sobre a mesa muitos e graves aspectos técnicos e econômicos para serem tratados aqui.
O editor é o sujeito por meio do qual o autor chega ao leitor, produzindo o lugar de encontro que se chama livro. Em certo sentido, é um paralelo da escola-universidade, que possibilita o encontro entre professor e estudante. Para compreender a partir de dentro o papel das editoras teológicas na Itália, prossigamos gradualmente.
Até o Concílio Vaticano II e os anos 1970, as faculdades de teologia na Itália concentravam-se em Roma nas universidades pontifícias. A difusão da teologia ocorria por meio dos seminários, voltados diretamente à formação do clero. As editoras teológicas assumiam a fisionomia dos manuais de texto, com um circuito de difusão específico e limitado.
Os livros litúrgicos e devocionais eram publicados pelas “editoras pontifícias”, que funcionavam em regime oficioso. Textos de teologia ou de reflexão sobre o cristianismo eram publicados na Itália por poucas editoras, entre os quais podemos lembrar Vita e Pensiero, Morcelliana, SEI, Paoline.
O Concílio Vaticano II, com seus debates internos e com os documentos publicados, representou:
Só me deterei em dois pontos: o lugar da celebração (o edifício-igreja na sua articulação), os textos da celebração (do missal que tudo contém até à pequena biblioteca composta por missais, lecionários, rituais para todas as circunstâncias. Não por acaso esses vocábulos estão no plural).
A redescoberta e a obrigatoriedade para o fiel da dupla mesa (o pão e a palavra) impôs às comunidades uma nova forma de conceber a igreja-edifício e o rito-presença. No edifício, os polos de referência tornam-se dois: o ambão e o altar; na celebração, a Palavra torna-se Sacramento. Se a Palavra lida e proclamada está no centro do rito, o livro é chamado em questão. E o livro por excelência é a Bíblia.
Do ponto de vista editorial, antes do Vaticano II, todo pároco tinha que ter quatro livros: o missal, o breviário, o ritual e (talvez) o Código de Direito Canônico. A reforma do rito da missa e dos sacramentos, que coloca a Palavra no centro, impõe os missais, os lecionários, os rituais no plural e também os códigos, que se tornam dois, o da Igreja latina e o Código dos Cânones das Igrejas Orientais: uma verdadeira biblioteca, como bem sabem os párocos e quem participa seriamente da liturgia.
E, naturalmente, missais, lecionários, rituais e códigos devem ser compreendidos para serem aplicados. Com o Vaticano II e a forja de ideias que ele representou, nasceu na Itália a época das traduções teológicas.
Os jovens professores oriundos das universidades pontifícias tornaram-se tradutores e divulgadores das ideias debatidas no Concílio, davam a conhecer na Itália as orientações inovadoras expressadas nas universidades francófonas, flamengas e alemãs; o ecumenismo logo se enraíza, e os primeiros teólogos do terceiro mundo são lidos com surpresa.
As editoras são protagonistas nessa obra de divulgação e de explosão do interesse teológico: é a “temporada das traduções”, sobretudo do francês e do alemão (razão pela qual escolhi o alemão como segunda língua estrangeira em vez do inglês… e isso me foi muito útil em mais de 40 anos de Feira do Livro de Frankfurt).
Os efeitos dessa temporada são múltiplos.
Em pouco mais de uma década, entre 1962 e 1975, o panorama teológico italiano mudou substancialmente por efeito do produto livro. Não há dúvida de que, por meio das editoras católicas, a Igreja italiana conheceu e assimilou a teologia da qual nasceram os textos do Vaticano II.
Imediatamente após o Concílio, a teologia italiana passou da “temporada das traduções” para a temporada da “competência adquirida”; por mérito da semeadura nas universidades pontifícias, dos números e das capacidades do pessoal eclesiástico e do empreendedorismo das editoras católicas.
A Igreja local se beneficiou de sua própria produção autônoma. Dizer teologia significa dizer uma Igreja que pensa. As editoras têm sido um campo de treinamento e um ponto de referência para dar visibilidade ao pensamento teológico na Itália.
Os efeitos dessa “competência adquirida” emergem com força nas décadas do pós-Concílio: a Igreja italiana planejou a renovação da catequese (não se subestime uma obra como a de escrever todos os catecismos por faixa etária); lançou planos pastorais cada vez mais consciente do dado conciliar e das transformações socioculturais em curso; produziu os textos litúrgicos amplamente enriquecidos em comparação com as outras edições.
Catequese, renovação da pastoral, liturgia, pastoral bíblica: são quatro setores nos quais se expressa significativamente a vitalidade da Igreja italiana.
Uma vitalidade da qual as editoras são, em grande parte, a causa. Voltando a apenas 60 anos atrás, quando na Itália a teologia estava totalmente e somente nas universidades pontifícias de Roma, pode-se medir à distância o papel positivo que as editoras católicas – e o pessoal religioso e leigo que nela atuou e atua – desempenharam para todas as articulações da Igreja italiana.
Em diversas circunstâncias públicas, inclusive como presidente da União de Editores e Livreiros Católicos Italianos (UELCI), tive a oportunidade de enfatizar que a forte presença das editoras religiosas é um dos traços típicos do catolicismo italiano. A UELCI chegou a reunir 55 editoras e uma centena de livrarias (entre estas, quatro redes: Paoline, San Paolo, LDC, Àncora).
Para compreender o fenômeno editorial católico na Itália, algumas características específicas devem ser destacadas:
- Nesse fenômeno de grande porte, um dado de relevo é a presença dos institutos religiosos: 13 em 55 editoras são emanações de uma congregação religiosa, e entre esses 13 há algumas das mais importantes editoras católicas, como por exemplo San Paolo, LDC, SEI, Il Messaggero, Dehoniane, Paoline, Àncora, Queriniana… Isso significa que uma fatia substancial de pessoal eclesiástico está engajada na atividade cultural e que as editoras católicas se apresentam tanto como fato de produção cultural quanto como forma de apostolado.
- É uma atividade que vem de longe, a ponto de marcar a história do mundo católico nos últimos 100 anos. O enraizamento no tempo é testemunhado pelos nomes de algumas editoras. Pensemos na Libreria Doctrina Cristiana (LDC, com o termo doutrina); na editora Studium (nascida em 1927 por obra de G. B. Montini e I. Righetti, e o nome latino deriva dos Laureados Católicos); a editora La Scuola foi fundada em 1904; a SEI iniciou sua atividade com outro nome em 1908; a Cantagalli foi fundada em 1923; a Àncora foi fundada em 1934; a Elledici opera desde 1941; a Città Nuova começou suas publicações em 1959.
- A época do Concílio e do pós-Concílio representa um momento de entusiasmo nas ideias e nas iniciativas. O efeito dessa temporada nas editoras é:
- o da morte de algumas editoras: a época das “editoras pontifícias” terminou na Itália e também no exterior (Daverio, a exclusividade de Marietti, Desclée, Pustet…); fecharam-se também as gloriosas editoras de música sacra (mudaram os ritos e sua língua).
- o de transformações profundas: algumas editoras, de protagonistas da produção religiosa e teológica, tornam-se coadjuvantes (Vita e Pensiero, Morcelliana), outras passam da atividade tipográfica predominante para uma conotação editorial mais sobressalente (Àncora), outras ainda são levadas a reorganizações internas (Paoline e San Paolo), algumas, como a AVE, passam de editoras de associação a editoras com forte presença nas livrarias;
- o nascimento ou renascimento de novas editoras: Gribaudi, Borla, Dehoniane Nápoles e depois Roma, Dehoniane Bolonha, Massimo, Jaca Book e a requalificação da Queriniana.
- Algumas dessas editoras são expressões de novos movimentos eclesiais e de espiritualidades ou associações eclesiais: Città Nuova, AVE, inicialmente a Jaca Book e outras menores.
- Neste ponto, é obrigatório mencionar positivamente a editora Il Mulino pela sua “Coletânea de Estudos Religiosos”, que inicia com dois textos clássicos: Barr, “Semantica del linguaggio bíblico” [Semântica da linguagem bíblica], e K. Barth, “Dogmatica ecclesiale” [Dogmática Eclesial] (1969). É um testemunho de como o fenômeno religioso pode ser considerado para além das Igrejas e do cristianismo, porque o senso religioso constitui um componente inapagável do humano e é cultura. E assim, ao lado de Il Mulino, também é obrigatório citar a Carocci e a Rubbettino entre as editoras sérias de cultura religiosa hoje. Precisamente para enfatizar essa ampliação para a cultura secular, está prevista a intervenção da professora Francesca Cocchini, emérita de História do Cristianismo na Universidade La Sapienza de Roma.
Antes do Vaticano II, a única associação teológica italiana de dimensão nacional era a Associação Bíblica Italiana (ABI). Sua revista científica, Rivista Biblica, já tem 70 anos de publicação, e a ela se juntaram mais tarde as revistas Ricerche Storico-Bibliche, também em nível científico, e Parole di Vita, de nível divulgativo.
A ABI publicou pelas EDB um grande volume (676.000 caracteres) intitulado “Un secolo di studi biblici in Italia. Biblisti italiani del Novecento” [Um século de estudos bíblicos na Itália. Biblistas italianos do século XX], organizado por R. Fabris e escrito por um grupo de biblistas. O volume apresenta cerca de 70 retratos de estudiosos italianos da Bíblia, falecidos, que, com seus escritos e sua atividade, animaram a partir de dentro a cultura e o sentimento da Igreja italiana. Vale lembrar que, ao lado das revistas, a ABI edita uma coletânea de aprofundamento científico, que já chegou a cerca de 70 volumes.
Depois do Concílio Vaticano II, a fermentação da pesquisa justamente sobre aquela temporada levou à constituição de diversas associações teológicas. A Associação Teológica Italiana para o Estudo da Moral (ATISM, 1966), a Associação Teológica Italiana (ATI), a Associação Italiana dos Professores de História da Igreja (1967), a Associação dos Professores e Cultores de Liturgia (APL, 1972), a Associação dos Estudiosos de Direito Canônico, a Associação Italiana de Catequetas (AICA), a Sociedade Italiana para a Pesquisa Teológica (SIRT 1989), a Associação Mariológica Interdisciplinar Italiana (AMI 1991), a Coordenação das Teólogas Italianas (CTI, 2003).
Uma variedade e uma riqueza que sentiram a necessidade de assumir uma coordenação, mesmo que apenas para se conhecerem: a Coordenação das Associações Teológicas Italianas (CATI). Cada uma dessas associações organiza congressos profissionais de estudo, e várias delas têm um periódico científico oficial ou editam coletâneas por conta própria, junto a editoras ou centros de estudo.
Vale a pena indicar dois resultados diretos dessas associações: 1) em seu interior ou por sua iniciativa, nasceram manuais de estudo para os vários setores da teologia. Ou seja, elas contribuíram diretamente para o crescimento da teologia no clero e nos agentes de pastoral; 2) os bispos locais e a direção da Conferência Episcopal Italiana (CEI) recorreram aos membros mais ativos dessas associações para a animação de programas pastorais e realizações históricas da Igreja na Itália.
Basta lembrar a tradução italiana da Bíblia (1971, 2008), a redação dos catecismos nacionais por faixas etárias (não se subestime uma operação desse tipo, porque envolve competências e cultura incomuns), a edição italiana dos livros litúrgicos (missal ampliado nas orações dominicais, nas orações eucarísticas, com o missal/lecionário de Nossa Senhora – nas minhas estadas na Espanha ou na Alemanha, verifiquei que não existem tais dilatações nos livros litúrgicos daquelas Igrejas), os vários programas decenais de pastoral que caracterizaram a vida da CEI nos últimos 50 anos.
Antes do Concílio, a teologia na Itália era representada pelas universidades pontifícias de Roma. Com a transformação do pós-Concílio, nasceram novos sujeitos do fazer teologia: as editoras e as associações teológicas devem ser colocadas em primeiro plano.
Passa-se da importação à produção própria. Depois da fase das traduções (era preciso desenvelhecer a teologia curial e italiana...), os tradutores tornaram-se autores capazes de dar roupagem italiana à teologia, à catequese, à liturgia e à pastoral.
Sem a forte presença organizada das editoras religiosas e do que elas produziram para o crescimento de todo o povo de Deus, a Igreja italiana seria mais pobre de pensamento e de interioridade, mais pobre de formação e mais pobre de pastoral.
Existe uma característica da teologia italiana? Sim, e totalmente positiva: sua referência constante à pastoral. Isto é, é funcional ao crescimento do povo de Deus.
Esse aspecto a diferencia significativamente da situação francesa, que se exerceu na alternativa “teologia en église ou teologia en Sorbonne”, e da alemã, que viveu sua presença institucional na universidade estatal primeiro como uma fortuna, mas depois foi sufocada pelo enfraquecimento da referência à pastoral.
As editoras têm sido determinantes para valorizar o crescimento da teologia na Itália, porque
Ou seja, as editoras representam um sujeito pensante pelo menos tanto quanto as faculdades teológicas.
O leitor é o terceiro sujeito chamado em questão pelo binômio teologia-livro. A partir do que eu disse até aqui, fica evidente que os dois primeiros sujeitos só encontram possibilidade de vida e de legitimação em virtude de um terceiro convidado: o leitor.
Aqui também vale o ditado “ou se seguram juntos ou caem juntos”. O leitor do livro de teologia é chamado de “corpo vivo da Igreja”. “Vivens homo”, o homem vivo é o título da revista da Faculdade Teológica de Florença e da Itália Central.
As editoras de teologia e de religião na Itália têm a possibilidade de vida sobretudo pelo fato de a Igreja italiana ainda ser uma realidade viva e inervada na sociedade. A zona de influência das editoras de teologia é constituída sobretudo pelo público que gravita em torno da Igreja (paróquias, movimentos, instituições religiosas…).
Sem essa ênfase de atualidade eclesial, não é possível entender o conhecido desenvolvimento das editoras religiosas nos últimos 50 anos e não é possível entender por que na Itália a maior parte das editoras religiosas é gerida por congregações religiosas ou por entidades eclesiásticas.
A maior interrogação diante dessa situação é a progressiva e radical secularização que avança com as novas gerações. Até quando a “sociedade do campanário”, que encontra uma referência quase natural na estrutura eclesial, ainda resistirá diante da mudança de sentido induzida pela cultura do consumo, do imediato, do subjetivo e da aparência?
Os indicadores que vem de sociedades como os Países Baixos, a França e a Alemanha estão longe de favorecer a continuidade. E esse é o tema que mais do que qualquer outro merece ser aprofundado.
“A revolução do Concílio Vaticano II e o florescimento das editoras católicas” é o título que os organizadores deram a este encontro. É realista refletir que, depois da floração, vêm outras estações, nas quais, infelizmente, já entramos.
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Livro, o lugar da teologia. Artigo de Alfio Filippi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU