21 Novembro 2022
"A discordância na Igreja local faz-nos ler melhor e faz-nos descobrir os novos famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes e encarcerados de Mateus, 25, 31-46, que muitas vezes não conseguimos sequer conhecer e considerar como necessitados".
O artigo é dos teólogos italianos Paolo Scarafoni e Filomena Rizzo, publicado por L'Osservatore Romano, 19-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, no Brasil, padre conciliar, bem sabia que na Igreja não eram poucas as dificuldades de compreensão do que havia acontecido: “Vocês devem saber como é realmente o Concílio. Divino-humano. Guiados por Deus, feitos por homens". É cada vez mais evidente que a acolhida do Concílio passa necessariamente pela realização de uma Igreja sinodal pelos homens. Até hoje, foram destacados caminhos virtuosos de escuta paciente e benevolente. As indicações das Igrejas locais indicam os elementos a serem observados nos próximos anos sobre os quais se encontrou acordo e consenso. Os pastores recolheram e condensaram os frutos da oração e da reflexão, procurando exprimir, também para os que não participaram, o que o Espírito Santo indicou nas suas comunidades.
Essa fase não deve significar achatamento e formalismo, nem deve representar um ponto de chegada.
Há um tesouro precioso que não se deve perder, pelo contrário, deve ser valorizado: a discordância que se manifesta sob dois aspectos, aquele ad intra, ou seja, entre aqueles que estão dentro do recinto da comunidade e que exprimiram visivelmente profecias e visões não em sintonia com a maioria; e aquele ad extra, isto é, dos distantes, que são a presença anônima de Cristo, aqueles que se encontram no ponto cego de uma comunidade cristã. Estes são recuperados no processo sinodal por acaso, atraídos pelo Espírito divino e pela promessa de uma nova criação e de uma nova humanidade. O espírito sinodal manifestou-se inesperadamente também naqueles que não são visíveis dentro das estruturas eclesiais.
A prova decisiva do processo sinodal serão os vestígios que o pároco terá desse "desentendimento", que não deve enterrar, para "fazer florescer esperanças, estimular confiança, curar feridas e tecer relações" e encontrar novos caminhos para anunciar o Evangelho. Na Igreja, a discordância não deve mais assustar: nos pontos cegos da participação, na “zona cinzenta”, a comunidade torna-se inclusiva, alarga os seus horizontes, transforma-se, caminha para o Reino. É preciso vencer o medo de que seja sinônimo de pecado, ou de quebra de obediência e unidade. Trata-se de propor novamente aquele princípio conciliar não formulado explicitamente, mas amplamente aplicado e antiquíssimo: a "sinfonia das verdades". Hans Urs von Balthasar explicou com clareza que a verdade é sinfônica, isto é, não uma harmonia melosa sem tensões; "dissonância não é cacofonia". Assim também se realizou o estudo e a formulação do Catecismo da Igreja Católica, como prolongamento ideal da experiência conciliar.
O Papa Francisco, em 2019, na Carta ao povo de Deus que está em caminho na Alemanha, destacou as características do sensus Ecclesiae que vive no povo fiel de Deus: “Recorda-nos o rosto plural da Igreja [Novo millennio ineunte, 40] , não só numa perspectiva espacial nos seus povos, raças e culturas [Lumen gentium, 13], mas também na sua realidade temporal, que nos permite mergulhar nas fontes da mais viva e plena Tradição, que tem a missão de manter vivo o fogo em vez de conservar as cinzas [Gustav Mahler: “A tradição é a salvaguarda do futuro e não a conservação das cinzas”] e permite que todas as gerações reavivem o seu primeiro amor com a ajuda do Espírito Santo”.
A discordância nada tem a ver com o diabo (diabolus), aquele que divide e quebra a comunhão com Deus e com os irmãos. A visibilidade e a participação dentro de uma comunidade não podem ser baseadas na exclusão de outros. A divisão é uma atitude hostil do espírito humano, inspirada pelo inimigo de Deus. A discordância, por outro lado, não é conflito, rejeição, hostilidade e raiva, mas é uma percepção fundamentalmente diferente da realidade, muitas vezes mais autêntica do que aquela expressa dentro da instituição. Desenvolve um elemento dinâmico que torna a comunidade mais capaz de compreender a realidade e se testar. Sem perder a bússola, a discordância ajuda a ressintonizar-se com o mundo, como almejava a Gaudium et spes, ou pelo menos a ser mais consciente. A discordância revela uma desarmonia a ser resolvida e convida a coordenar-se sabendo que ninguém intervém por si só. É preciso continuar a ouvir com o coração aberto sem pressa, reconstruir as comunidades em seu fundamento. Não buscar o uníssono, mas a sinfonia, mesmo com aqueles que estão fora do recinto.
Uma inserção é necessária. A parte invisível da comunidade cristã é fonte de grande esperança, mesmo que pareça fraca, insignificante e perigosa. Porém, muitas vezes a parte visível da comunidade está esgotada e assustada com as dificuldades e as responsabilidades. Estamos no momento em que os pastores deveriam dizer como Pedro: “Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas” (Atos, 10, 34); ver que o Espírito Santo não faz distinção entre "circuncisos e incircuncisos", mas desce abundantemente sobre todos os chamados que se abrem à escuta da Palavra de Deus. As vozes discordantes são elementos fisiológicos numa comunidade, permitem transformar os critérios de decisão para eliminar preconceitos sobre a cultura e a história dos outros. Trata-se, portanto, de uma nova "qualidade de escuta da inspiração divina", de uma compreensão mais profunda da verdade por parte da Igreja. Temos experimentado que se as discordâncias são ignoradas, deixadas de lado ou banalizadas, com o tempo elas se transformam em conflitos, que por séculos têm sido a praga da Igreja e da humanidade. Cuidar da discordância é para a Igreja contribuir para desenvolver aquela antropologia teológica vezes demais foi negligenciada na história.
A Igreja local na sua missão de evangelização valoriza a relação com os distantes com gestos humanos, sinais de respeito, através dos quais reconhece o outro como igual em dignidade. O invisível social conduz à visibilidade de Deus. A discordância na Igreja local faz-nos ler melhor e faz-nos descobrir os novos famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes e encarcerados de Mateus, 25, 31-46, que muitas vezes não conseguimos sequer conhecer e considerar como necessitados. Em vez disso, Cristo se manifesta justamente neles. Sem esta compreensão corremos o risco de passar o tempo de nossas vidas sem encontrá-lo: “'Senhor, quando te vimos faminto ou sedento ou estrangeiro ou nu ou enfermo ou preso, e não te servimos?' Então ele lhes responderá: "Em verdade vos digo: tudo o que não fizestes a apenas um destes pequeninos, não o fizestes a mim".
A lista que Jesus faz está aberta. A voz dos diferentes nos dá a possibilidade de uma atualização e uma ampliação que leve em conta as mudanças nas coordenadas sociais. Atualiza as obras de misericórdia, sem medo da mudança. A sua voz ajuda-nos a dar vida à "sinfonia da caridade" e a reconhecer "os sinais dos tempos". Assim, a perspectiva escatológica também poderá mudar. O desejo do Reino e da realização final não pode ser uma apropriação do tempo e do espaço para poder apropriar-se também da eternidade. Não ignorar a discordância é um elemento de amor e de liberdade da Igreja, que não seleciona, não afasta, não se fecha, não impõe, mas sabe acolher e discernir na entrega a Cristo. O esforço realizado pela Igreja sinodal para caminhar sem excluir os invisíveis e sem ignorar aqueles que expressam a discordância será um exemplo importante também para a sociedade civil que está à busca de formas para ir além de um consenso excludente.
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Beleza do rosto multifacetado. A importância da discordância no processo sinodal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU