27 Outubro 2022
Carta aos pastores enviada pelo presidente da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), pastor Geraldo W. Schüler, no início de outubro, derramou um galão de gasolina e provocou incêndios na até então moderada denominação quanto a posicionamentos no campo político. A mensagem, que tinha a intenção de dar uma orientação pastoral nesse perturbado momento do país, polarizou obreiros e membros.
A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista.
Mesmo sem mencionar nominalmente as candidaturas, a carta não deixou erro de interpretação na mensagem transmitida pelo pastor presidente. “Está se tentando vender a ideia de que há voto em favor do bem e voto em favor do mal, como se a eleição fosse uma luta entre o bem e o mal. Se analisarmos a situação com um pouco mais de cuidado, vamos perceber que há um grupo combatendo o cristianismo de forma explícita e o outro, também de forma explícita, se utilizando do cristianismo para alcançar o seu intento. Sendo assim, neste aspecto, ambos são uma ameaça ao cristianismo, e nós, pastores, não podemos ignorar esse fato”, escreve Schüler.
Ou seja, a campanha do Partido dos Trabalhadores trabalha contra o cristianismo. “Em face disso, manifestamos nossa perplexidade e indignação frente à qualificação da posição política com a qual nos identificamos como contrária ao Cristianismo”, diz nota de desgravo à Carta dos Pastores emitida pela direção da igreja, que vai assinada por dezenas de obreiros e membros leigos.
A crença, sustentam esses luteranos indignados, “é questão de consciência, não cabendo o uso de meios estatais para a imposição de valores religiosos aos indivíduos. Portanto, conceber a defesa desses direitos como ameaça ao Cristianismo parece-nos ser deturpação grosseira do princípio da laicidade do estado e da liberdade de consciência. Salientamos que laicidade não significa se posicionar contra determinada confissão de fé, mas de garantir direitos iguais a todas elas”.
Os luteranos indignados lembram passagem do reformador Martinho Lutero: “Crer ou não crer é assunto de consciência de cada um e isso não vem em prejuízo da autoridade secular. Para isso ela também deve contentar-se e ocupar-se com seus negócios, e deixar que cada um creia isto ou aquilo, como puder e quiser, e não coagir ninguém. Pois a fé é um ato livre, no qual não se pode forçar a ninguém”.
Os que assinam a nota de desagravo destacam que é função social da Igreja e da fé que a anima a construção de uma sociedade mais digna, justa e sem desigualdade. Ser fiel ao Evangelho, arrolam, “é chorar com os órfãos, viúvas e viúvos dos cerca de 690 mil mortos pela Covid-19”, condoer-se com “os 30 milhões de pessoas que passam fome todo dia no Brasil”, empenhar-se para que pessoas, por causa de sua cultura, cor da pele, gênero ou orientação sexual deixem de ser alvo de agressões. Denunciam, ainda, “a destruição da natureza divina por meio de desmatamento e queimadas ilegais”.
O grupo conclui que “a caracterização de nossa postura política como combativa ao Cristianismo decorre de uma interpretação caricata, pouco embasada, e que se alinha às estratégias de determinados grupos em se valer do pânico moral para atingir seus interesses, inclusive com a massiva distribuição de fake news”.
De outro grupo de pastores e leigos da IELB veio a reação à nota de desagravo, reafirmando e ratificando a Carta aos Pastores emitida pela presidência. A carta, alegam, sendo dirigida a um grupo definido de destinatários “tem caráter reservado, não se prestando para debates e discussões no seio da Igreja, de forma pública”.
A nota de desagravo, denuncia o grupo em defesa da direção da igreja, quebra “o caráter reservado do documento”, em evidente “sobreposição de cidadão militante político à condição de membro da Igreja, num texto que deixa evidente o alinhamento político de seus autores”.
Mas o grupo contestador usa o mesmo recurso, deixando evidente o seu alinhamento. “Nos posicionamos contrários aos conceitos hoje firmemente defendidos na sociedade por aqueles grupos que se definem à esquerda do campo político, por representarem ameaça à ordem social e confrontarem nossos ditames de fé e de consciência: aborto, liberação de drogas; ideologia de gênero e sexualização de crianças; tolerância com o crime; sonegar ao cidadão o direito de defesa sua e de sua família em ambiente privado; desconstituição da autoridade da família na educação dos filhos em benefício do controle do Estado; interferência cada vez maior do Estado na vida privada do cidadão; desrespeito contumaz à pessoa da autoridade legalmente constituída e escolhida; relativização do direito de propriedade urbana e rural. Não vemos possibilidade de um cristão poder se alinhar com grupos políticos que defendem esses conceitos”.
Seja por um lado, seja por outro, e até mesmo quanto à posição da presidência da igreja, a Comissão de Teologia e Relações Eclesiais, se aplicar o que expressa numa reflexão jurídica, teológica e ética sobre a participação política do pastor, terá muito trabalho pela frente, mesmo passado o período eleitoral.
O Artigo 31 do Estatuto e Regimento e Código de Ética Pastoral da IELB veda ao pastor, enquanto no ministério pastoral, a política partidária. A IELB frisa a separação de Igreja e Estado. A Comissão traz a debate a questão sobre a liberdade de expressão dos pastores. O pastor tem liberdade de se expressar livremente? – indaga.
“Se pensarmos somente em termos de cidadania, a resposta é sim. Porém a questão não se esgota aqui”, porque o pastor tem que levar em conta o critério da conveniência. Segundo análise da comissão, “o ministério impõe limites a uma pretensa liberdade de expressão por parte do pastor”, porque “o que convém ou não ser dito publicamente, seja em que ambiente for, inclusive em redes sociais (terrível se for do púlpito), poderá levar prejuízos irreparáveis ao apascentar confiado por Jesus àqueles que, por graça divina tão somente, têm a bênção e o privilégio de serem pastores”. Até aqui o texto da comissão da IELB.
Em seus tantos escritos, Lutero apontou para a graça divina e deixou um recado duro aos pregadores:
- Pois é um grande entrave para um pregador que ele queira primeiro sondar o ambiente e verificar o que se gosta ou não se gosta de ouvir ou o que lhe poderia acarretar desagrado, prejuízo ou ameaça. Pelo contrário, assim como Cristo se encontra no alto do monte, em um lugar público e olha livremente em volta, assim, também, o pregador deve falar abertamente e não temer ninguém, embora possa ver muitos tipos de pessoas e cabeças ao seu redor. Não deve ter papas na língua, não deve considerar nem senhores e fidalgos clementes nem irados, nem dinheiro, riqueza, honra, poder, nem status, pobreza, prejuízo, e nada deve pensar a não ser falar o que o seu ministério exige, razão pela qual se encontra ali.
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Carta pastoral incendeia polarização na IELB - Instituto Humanitas Unisinos - IHU