14 Outubro 2022
"O que buscam é colonizar um possível governo Lula fazendo-o aceitar por inteiro uma agenda que não ganha nas urnas há muito tempo no Brasil. E aqui vale enfatizar o “não ganha nas urnas”, a fim de não confundirmos necessidade de alianças com capitulação diante da agenda liberal-financista. Confundir isso pode custar caro já no dia 30, mas, sobretudo, depois", escreve Felipe Calabrez, Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e professor de Relações Internacionais na FMU, em artigo publicado por Outras Palavras, 13-10-2022.
Neste mês temos visto aumentar, em frequência e em intensidade, publicações dos grandes meios de comunicação que, em seus editoriais e textos de opinião, “exigem” da candidatura Lula um anúncio preciso sobre o que vai fazer na economia e quem seriam os nomes a ocupar seus ministérios chave. O ápice desse movimento – pelo menos até agora – foi o editorial dominical da Folha de S. Paulo.
Concomitante a esse movimento, pipocam apoios de economistas de matriz liberal à sua candidatura, a exemplo dos formuladores do Plano Real, economistas historicamente ligados ao PSDB. Em meio a isso tudo, vemos incontáveis análises do jornalismo econômico e político a afirmar a necessidade de que Lula se “desloque ao centro” a fim de conquistar os votos que lhe assegurariam uma vitória eleitoral no próximo dia 30 de outubro.
Apesar de dinâmico e complexo, esse quadro não espanta. É preciso, porém, desemaranhar alguns fios dessa trama política a fim de melhor compreendermos o que está em jogo.
As eleições presidenciais no Brasil envolvem um conjunto incontável de fatores, mas – e com o perdão da simplificação – podemos fazer uma espécie de síntese: a eleição possui um caráter plebiscitário sobre o governante de plantão. Pode, portanto, carregar um espírito de continuidade, reelegendo o presidente em exercício ou o candidato por ele apoiado, ou um espírito de mudança, elegendo qualquer outro nome que se apresente como oposição. O que alimenta esse espírito de mudança ou continuidade é um vasto conjunto de fatores – e a sensação de bem-estar econômico (ou “economia”) é apenas um deles.
Em relação a isso, o que as pesquisas eleitorais vêm demonstrando ao longo de todo esse ano é que a “economia” lidera como a principal preocupação ou o principal problema do país para os eleitores. Sucessivas pesquisas da Genial/Quaest captaram que a “situação econômica do país” é vista como o principal problema para os brasileiros. Quando desagregamos esse termo, temos a questão do desemprego liderando, seguida de crescimento econômico e inflação (Disponível aqui).
Não estou sugerindo que essa eleição se resume a isso. Justamente o contrário. Sabemos que muito mais coisa está em jogo e estamos diante da eleição mais importante da Nova República, ou do que restou dela. Nesse sentido, uma vitória de Lula representa a garantia do funcionamento regular da democracia liberal, com a independência entre os poderes, autonomia de órgãos de fiscalização e da Polícia Federal e funcionamento de uma burocracia “racional-legal”, para ficarmos apenas com “questões institucionais”. Além disso – que não é pouca coisa –, essa eleição é guiada por diversos outros elementos que vão além da “economia”, passando pelos afetos, pauta de costumes, manipulações de todo tipo e uma razoável dose de rejeição de lado a lado (é preciso reconhecer), de modo que outras lógicas guiam o voto.
Mas voltemos ao ponto: ao longo pelo menos do ano de 2022 temos a “economia” figurando como a principal preocupação do eleitor e Lula liderando em intenção de votos. A despeito da barafunda de todo o dia que se tornou o Brasil, é preciso ter em mente esse quadro amplo e relativamente estável.
Pois bem. Vamos ao plano para a economia. Para aqueles que cinicamente afirmam desconhecer quais seriam as ideias e intenções de Lula nesse campo, vale lembrar que em setembro de 2020 foi publicado um amplo documento. Fruto de um trabalho coletivo, o Plano de Reconstrução do Brasil, documento de 215 páginas que está disponível no site da Fundação Perseu Abramo, contém um conjunto de propostas detalhadas em diversas áreas. Naquele momento em que já era evidente a tragédia política que nos assolava, o documento foi apresentado por um de seus formuladores como um “convite do PT ao diálogo”, já pensando na necessidade da formação de uma frente ampla.
Como, evidentemente, a política não é feita por planos de especialistas, o movimento de lá para cá contou com importantes movimentos, entre lideranças e partidos, que produziu apoios, federações partidárias e culminou na atual Coligação Brasil da Esperança, formada por PT, PSB, PCdoB, PV, PSOL, REDE, SOLIDARIEDADE, AVANTE e AGIR. Essa coalizão protocolou junto ao TSE, como seu plano de governo, o documento intitulado Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil. Vale a pena reproduzir os seguintes tópicos relativos ao tema da economia:
51. Vamos recolocar os pobres e os trabalhadores no orçamento. Para isso, é preciso revogar o teto de gastos e rever o atual regime fiscal brasileiro, atualmente disfuncional e sem credibilidade.
52. Construiremos um novo regime fiscal, que disponha de credibilidade, previsibilidade e sustentabilidade. Ainda, que possua flexibilidade e garanta a atuação anticíclica, que promova a transparência e o acompanhamento da relação custo-benefício das políticas públicas, que fortaleça o Sistema de Planejamento e Orçamento Federal e a articulação entre investimentos públicos e privados, que reconheça a importância do investimento social, dos investimentos em infraestrutura e que esteja vinculado à criação de uma estrutura tributária mais simples e progressiva. Vamos colocar os pobres outra vez no orçamento e os super-ricos pagando impostos. (LULA ALCKMIN 2023-2026, Coligação Brasil da Esperança).
Como podemos ler acima, os princípios são explícitos. Esta é a linha programática da coligação que sustenta a candidatura Lula no que diz respeito àquele que é considerado o principal problema do país pela maioria do eleitorado: a economia.
Isto posto, todo apoio adicional nessa reta final tem sido não apenas muito bem-vindo como também energicamente buscado pelo comando da campanha, como temos visto. Assim, e dada a urgência eleitoral, não há nenhum problema em incorporar de maneira seletivamente inteligente e coerente elementos do programa de seus novos apoiadores, como foi feito com Tebet e com o PDT.
É claro que as equações políticas são delicadas. Sequer o termo “equação” é apropriado porque não estamos no campo das exatas. Mas não se pode perder de vista qual é a candidatura que passou para o segundo turno e lidera as pesquisas. Caso tivesse sido a de Simone Tebet seria igualmente coerente que ela contasse com o apoio de Lula. Mas não seria coerente cobrar que seu programa adotasse um projeto inteiramente desenvolvimentista e antiprivatista, por exemplo.
Não se trata de afirmar o que é vontade da esquerda, embora seja isso também. Se trata de coerência política. E defender isso não implica de maneira nenhuma em desconsiderar o que está em jogo nessas eleições.
De um lado temos uma candidatura de caráter mudancista e cujo projeto deve ser coerente com a mensagem política da campanha que ora lidera as pesquisas. Seu programa pode aceitar incorporações e recuos táticos, mantido o essencial.
Do outro lado, a ameaça de continuidade de um governo desastroso comandado por um sujeito inapto para o cargo e que ameaça abertamente minar os mecanismos de controle e acelerar a corrosão das instituições da democracia liberal, já limitada por definição.
Dessa forma, é preciso deixar claro: a democracia brasileira está em jogo e não podemos ver o papel de Lula nesse momento apenas como um grande líder de esquerda. Ele também é hoje o último bastião da República. Ele entendeu isso. Fernando Henrique Cardoso também entendeu, assim como todo o campo democrático. Justamente por isso o chamado “deslocamento ao centro” – ou o que restou dele – já foi feito. Não há mais centro a disputar.
Apoio não é chantagem. O que alguns têm chamado de “deslocamento ao centro” parece ser a ideia da continuidade de um governo Bolsonaro sem Bolsonaro, ou, mais precisamente, a continuidade de um governo Paulo Guedes, o outrora “fiador” de Bolsonaro e agora convenientemente esquecido.
O que buscam é colonizar um possível governo Lula fazendo-o aceitar por inteiro uma agenda que não ganha nas urnas há muito tempo no Brasil. E aqui vale enfatizar o “não ganha nas urnas”, a fim de não confundirmos necessidade de alianças com capitulação diante da agenda liberal-financista. Confundir isso pode custar caro já no dia 30, mas, sobretudo, depois.
Quanto a declarações de economistas famosos e editoriais de grandes jornais, eles devem ser lidos como aquilo que são: atores políticos agindo para tentar impor suas crenças ou interesses, que são sempre apresentados como imperativo da realidade. Mas não o são.
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Eleições: não há mais centro a disputar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU