29 Março 2019
Há algo essencial na celeuma despertada pelos artigos de André Lara Rezende. Uma ideia básica do neoliberalismo entrou em crise: não estamos condenados a submeter as decisões políticas à lógica gélida dos mercados.
O artigo é de Felipe Calabrez, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), professor de Relações Internacionais na FMU, publicado por Outras Palavras, 27-03-2019.
Semana retrasada um artigo de André Lara Resende no Valor Econômico deu o que falar entre os economistas. No artigo, Lara Resende, um dos artífices do Plano Real, que passou pela Presidência do Banco Central no Governo FHC e integra o mundo das finanças privadas, vaticina uma crise terminal da teoria macroeconômica dominante.
Não é a primeira vez que o autor ataca o pensamento econômico dominante no Brasil e propagado por seus colegas da ortodoxia. No início de 2017, no mesmo Valor, Resende colocou em questão os fundamentos da teoria monetária que orientam as decisões do Banco Central. (Comentei o episódio aqui). A conclusão era de que os altos juros praticados no Brasil nas últimas décadas não possuíam sustentação teórica alguma. O efeito dessas políticas, no entanto, em termos distributivos e de baixo crescimento, são reais.
Dessa vez o economista foi ainda mais longe. Se naquele momento sua crítica foi centrada na teoria monetária, agora o alvo foi também a teoria fiscal.
Resgatando a teoria das finanças funcionais de Lerner, escrita na década de 1940, Resende põe em cheque a visão fiscalista que inunda diariamente os jornais e domina o debate econômico-moralista, que apregoa que o Estado, assim como a dona de casa, deve equilibrar suas finanças a qualquer custo.
Em síntese, a ideia por trás de seu argumento reside na prerrogativa que o Estado possui para emitir sua própria moeda, o que o libera das restrições financeiras que se impõem a um família ou empresa. A única restrição que se impõe então, ao Estado, diz respeito ao volume de recursos (naturais e trabalho) disponíveis para a atividade da economia. Se forem ultrapassados, produzem efeitos inflacionários.
O ponto mais interessante do artigo, no entanto, reside nos efeitos que a controvérsia científica pode produzir. Vejamos suas palavras:
“A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento”.
A desconstrução de paradigmas científicos é lenta e exige embates, sobretudo no campo dos economistas, conhecidos por se apegarem ferreamente a certas crenças. E aqui reside o perigo a que estamos submetidos. Ora, não são eles – os economistas – os profissionais credenciados a elaborar a política econômica que orienta as ações do Estado e nos promete um mundo e um país melhores? E aqui levanto outra pergunta: Quais são as bases sobre as quais Paulo Guedes se apoia ao afirmar de maneira ameaçadora que se a reforma da previdência não passar, não haverá dinheiro para pagar os salários dos servidores?
Não é preciso acompanhar exaustivamente o debate econômico para notar que há um diagnóstico geral propagado pelos economistas convidados a opinar nos jornais e telejornais, e que esse diagnóstico foi inteiramente endossado pelo ministro Paulo Guedes e elevado a um imperativo urgente, indiscutível e inquestionável. Ei-lo, em síntese: O Estado deve cortar imediatamente seus gastos, sob pena de inviabilizar o pagamento de suas despesas, a retomada do crescimento e o bem-estar da população. Qualquer ponderação a essa máxima deve ser imediatamente desclassificada, porque seria “populista”, mal intencionada ou oriunda daquele incapaz de entender os fundamentos econômicos e contábeis que o Ministro e sua equipe técnica supostamente dominam.
Dessa máxima derivam, então, a integralidade das propostas políticas da atual equipe econômica. Reparem, faço questão de frisar, que são os “fundamentos econômicos” os elementos chamados a dar ares de verdade e urgência ao programa político. O Ministro e seus técnicos jamais defenderão tal ou qual política em nome dos interesses de setores da sociedade — seja industrial, financeiro, agroexportador ou qualquer outro. Seria então o “saber econômico” do economista Paulo Guedes que fornece o fundamento para o desenho das políticas propostas.
Voltemos então a Lara Resende:
“Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte das despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe”.
A “situação em que nos encontramos” é conhecida: a economia opera com imensa capacidade ociosa e o desemprego atinge níveis alarmantes, na casa dos 12%, o que significa um brutal desperdício de recursos físicos e humanos. Parte expressiva da população se ocupa da informalidade e, portanto, está inserida em uma atividade que não gera qualquer receita para o sistema de seguridade e Previdência Pública, aquele que, insistem alguns economistas, não pode ser deficitário. E diante dessa tragédia humana, que produz quilométricas filas de pessoas no Anhangabaú em busca de emprego enquanto outros milhares se arriscam clandestinamente nos vagões de trem para vender água, biscoitos de polvilho e fones de ouvido produzidos na china, qual a ação do governo?
A resposta é: nenhuma. Não há qualquer ação que vise diretamente minimizar a penosa situação dessas pessoas. Não há qualquer movimento que vise fomentar a demanda agregada via investimentos públicos porque, lembremos da máxima, “não há espaço fiscal!”. Não há também em curso uma reforma do sistema previdenciário que vise ampliar, ou mesmo garantir, uma renda minimamente humanitária àqueles trabalhadores que estão na informalidade, pois, reza a máxima, o sistema não pode ser “deficitário”, pois isso elevaria a relação dívida/PIB a níveis insustentáveis. E soma-se a essa tragédia a recente ameaça de interrupção do pagamento de salários aos servidores, medida que reduziria ainda mais a renda em circulação. Tudo em nome do “equilíbrio fiscal” e contenção do endividamento público.
E qual seria o limite máximo do endividamento público? Não se sabe. A rigor, não há qualquer resposta da ciência econômica a essa questão. Tudo dependeria das condições de financiamento do governo, e, dizem alguns, da “disposição dos investidores em emprestar ao governo” e sob qual taxa de retorno. E aqui volta a questão que o texto de Resende nos traz: Quem determina a taxa de juros? De onde vem a moeda?
Se estiver correta a teoria segundo a qual a soberania do Estado sobre a cunhagem da moeda o livra de restrições financeiras, colocando como limite de seus gastos apenas a capacidade da economia, que hoje opera com enorme capacidade ociosa, estaríamos então experimentando fortes doses de sofrimento humano sem razão alguma?
Aqui, como pode notar o leitor, a questão não está mais restrita a uma mera controvérsia “acadêmico-científica”, como se tratasse de um “mundo das ideias” desconectado do mundo real. Ao contrário disso, não são os fundamentos científicos que orientam a ação pública e oferecem as credenciais de verdade ao discurso do Ministro da Fazenda e estabelecem as fronteiras entre o possível e o impossível, entre a “necessidade” e o “populismo irresponsável” daqueles que não compreendem a verdade?
Ora, poderá pensar o leitor que sucumbo aqui a uma ingenuidade teoricista, como se o mundo real pedisse licença às teorias para operar seus interesses mais mesquinhos. Não se trata disso. Não resta qualquer dúvida de que os donos do dinheiro grosso, aqueles diretamente interessados em moeda, dívida pública e taxa de juros, são atores fundamentais nesse jogo. No entanto, permanece a questão: se a base sobre a qual se apoia o programa do governo está em xeque, o que teria ele a nos dizer? O ministro da Fazenda vai refutar cientificamente aqueles que lhe roubam a verdade? Sabemos que não, pois não é sua função.
Mudará então o fundamento do seu discurso, desnudando os interesses setoriais e mesquinhos sobre os quais se apoiam suas propostas? Tampouco, pois isso lhe solaparia qualquer fundo de legitimidade. O que lhe resta então é se agarrar à verdade de seu discurso e apostar em ameaças e omissões enquanto o avanço do conhecimento corrói como traças os consensos estabelecidos.
Aqui fica claro porquê a polêmica teórica instaurada por André Lara Resende é importante demais para ficar restrita a um debate entre especialistas. Ela traz à tona questões que dizem respeito às condições de vida de todos. É urgente que a “verdade” que desclassifica as necessidades do cidadão comum em nome de uma necessidade da “economia” seja traduzida em linguagem simples. Até porque essa verdade, ao que tudo indica, está morta. Seu enterro pode ajudar a desnudar os interesses e orientar a luta política.
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O economista-deus está morto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU