06 Setembro 2022
A descrição da prática litúrgica feita por Francisco recupera o valor do rito como uma dimensão significativa na antropologia além do teologia, com implicações para a Igreja também no espaço público.
O comentário é de Antonio Ballarò, publicado por Il Mulino, 05-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O triênio 2022-2025, o intervalo em que cai o sexagésimo aniversário da celebração do Concílio Vaticano II (1962-1965), já apresenta duas ressonâncias importantes em relação ao último grande momento de encontro e reforma da Igreja Católica. A primeira é o sínodo de outubro de 2023, ao qual o Papa Francisco convocou toda a Igreja em 2021, prevendo diversas fases – local, nacional, continental e universal; a segunda é a confirmação da retomada, durante este pontificado, da liturgia como elemento decisivo para a recepção e implementação do Concílio.
O último elemento que confirma a centralidade da liturgia para o pontificado de Francisco é a publicação, em 29 de junho, da carta apostólica Desiderio Desideravi, "sobre a formação litúrgica do povo de Deus". O documento deve ser lido no contexto inaugurado pelo motu proprio de julho de 2021, Traditionis custodes, com o qual Francisco limitou as chamadas "missas em latim", as celebrações segundo o rito de Pio V anteriores à reforma litúrgica do Vaticano II. A decisão do Papa Bergoglio nascia de uma investigação sobre as condições de "saúde litúrgica" das comunidades eclesiais, especialmente em relação à Igreja global e para evitar derivas sectárias após a liberalização do rito pré-conciliar (que se considerava revogado pelo Vaticano II) concedido pelo Papa Bento XVI em 2007.
Mas se o desenvolvimento do sínodo em todas as suas fases e a teologia da sinodalidade (como tornar estruturais as consequências de uma Igreja que considera os sínodos essenciais para sua identidade, com o intuito de se libertar do modelo monárquico-clerical ainda vigente), que emerge das indicações e declarações do Vaticano e do pontífice, permanecem em grande parte por esclarecer, diferente é o juízo sobre a visão litúrgica de Francisco, uma visão madura em particular no plano das convicções e dos objetivos, que pode contar com as aquisições do movimento litúrgico e com a contribuição do Vaticano II. Isso evita que seja considerado uma questão "interna", de pouco interesse para os não especialistas. Pelo contrário, a recuperação de Francisco da teologia da liturgia do Vaticano II tem implicações para a Igreja também no espaço público.
Através da Desiderio desideravi, cujo título retoma as palavras de Jesus durante a última Ceia na versão do evangelista Lucas (cf. Lc 22,15), o papa reflete sobre a ideia de celebração vivida nas comunidades eclesiais e reitera a importância do vínculo entre o catolicismo de hoje e a liturgia imaginada pelo Concílio: "As grandes constituições conciliares não podem ser separadas umas das outras e não é por acaso que este único grande esforço de reflexão do concílio ecumênico – a mais alta expressão da sinodalidade da Igreja de cuja riqueza sou chamado a ser, com todos vós, guardião – começou com a reflexão sobre a liturgia" (DD 29).
O texto tem uma abordagem sistemática, mas a intenção é pastoral, pois delineia uma relação entre iguais em nome de uma fé comum: "A ação da celebração não pertence ao indivíduo, mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo" (DD 19). A liturgia simboliza essa relação e é uma “dimensão fundamental da vida da Igreja” (DD 1), de extensão universal porque “ninguém ganhou lugar naquela Ceia, todos foram convidados” (DD4). Garante um acesso a Cristo por meio do rito: "Não teríamos tido outra oportunidade de um verdadeiro encontro com Ele senão aquela da comunidade que celebra". De fato, "a Igreja desde o início esteve ciente de que não se tratava de uma representação, ainda que sagrada, da Ceia do Senhor" (DD 9), pois "para nós não serve uma vaga lembrança da Última Ceia" (DD 11).
O documento fala de atenção à liturgia citando razões que não podem ser limitadas à esfera religiosa. O papa volta ao risco do "mundanismo espiritual", a tendência de fazer das próprias prioridades a agenda da Igreja, que ele extrai do teólogo francês Henri de Lubac (1896-1991) e à qual contrapõe a liturgia como antídoto. Isso significa rejeitar uma fé subjetivista e narcísica (cf. DD 17-20), uma abordagem autorreferencial (que contrasta com a subjetividade plural da liturgia) e reduzida ao self-making (oposto ao caráter radicalmente não meritocrático da mesma).
A carta é um exemplo de fidelidade ao Concílio em sentido quase "constitucional" (para retomar a importante proposta do teólogo Peter Hünermann), pois considera incompreensíveis as perplexidades sobre a reforma litúrgica conciliar sem a rejeição do Vaticano II: " Não vejo como é possível dizer que se reconheça a validade do Concílio - embora me surpreenda que um católico ouse não fazê-lo - e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum concilium que expressa a realidade da liturgia intimamente ligada à visão de Igreja tão admiravelmente descrita na Lumen gentium" (DD 31).
A descrição da prática litúrgica pelo Papa Francisco recupera seu valor do rito como dimensão significativa tanto na antropologia como na teologia (as secções mais substanciais do texto são os números 27-47 e 48-60, reunidos em parágrafos dedicados à necessidade de uma formação litúrgica e à ars celebrandi). Assim denuncia-se a incapacidade do ser humano pós-moderno "de confrontar-se com a ação simbólica que é característica essencial do ato litúrgico" (DD 27) e a banalidade de interpretar as tensões em torno da celebração "como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades em relação a uma forma ritual” (DD 31).
A questão eclesiológica resultante coloca o tema da formação litúrgica, que para o papa coincide com o que o teólogo ítalo-alemão Romano Guardini havia afirmado: "Devemos mais uma vez aprender a nos colocar diante da relação religiosa como homens em sentido pleno" (cf. DD 34). É um desafio que consiste em um "fazer" ao mesmo tempo elementar e concreto, "exatamente o oposto de abstrações espirituais" (DD 42). Para o papa "a arte de celebrar não se aprende porque se frequenta um curso de oratória ou técnicas de comunicação persuasiva" (DD 50).
O ato litúrgico não é um exercício piedoso nem uma convenção. É uma ação pública, antielitista, que nesse sentido diz respeito a também à vida civil. Como escreveu Francesca Lacqua, em nossas sociedades democráticas contempla-se uma ritualidade que "se estrutura pela mobilização do simbólico que se atua na rua e, mais em geral, na prática direta e coletiva do espaço". A Ars celebrandi requer uma interação entre sujeitos e espaços, uma convivência que é viver e fazer viver um lugar com outros, mas também ser tocados pela interação mútua. Prevendo a participação e não a cooptação, a liturgia prepara a uma convivência plural determinada pelas possibilidades que derivam dos espaços.
Além disso, esse tipo de convivência pressupõe uma ideia dos sujeitos que não coincide com a subjetividade sustentada pelo populismo. O povo reunido na sala litúrgica não é uma massa indistinta, mas um conjunto reconhecível (e, teologicamente, reconhecido) de sujeitos que celebra como coletivo, em virtude de um sacerdócio comum. Além disso, a assembleia não é destinatária de um apelo que parte do representante de plantão, mas daquele de Deus somente, que a convoca e a habilita para a celebração conjunta.
Perder o sentido da liturgia é perder o sentido de viver e celebrar juntos, o que explica por que o Vaticano II tenha colocado a Eucaristia no centro da vida eclesial como celebração, o rito ao qual se acede como sujeitos em relação entre si. A formação litúrgica descrita em Desiderio Desideravi nasce da celebração e leva à celebração. Ela persegue uma cura do implícito de nossas vidas e de sua necessária relação com o explícito. Celebrar juntos não é uma proposta tradicionalista, é o que o tradicionalismo não consegue pensar.
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A liturgia católica não é apenas uma questão católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU