03 Setembro 2022
Quando a minha relação com Deus é uma relação de medo, de interesse ou uma relação de alienação, quando confio a Deus os problemas que eu posso e devo resolver e os confio a ele por medo, por covardia, por falta de informação, evidentemente eu os resolvo construindo um ídolo.
A reflexão é de Arturo Paoli (1912-2015), presbítero italiano, irmãozinho de Charles de Foucauld, que viveu 45 anos na América Latina. Foi fundador dos projetos de promoção humana e social no Brasil promovidos pela associação OreUndici.
O texto abaixo foi retirado de um de seus livros editados em 1968 por Piero Gribaudi, com o título “Il lavoro e la pace” [O trabalho e a paz], que reúne duas conferências proferidas pelo Ir. Arturo na Argentina, “sua pátria adotiva e seu campo de trabalho” naqueles anos.
A reflexão foi publicada na revista OreUndici, n. 9, de setembro de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O ser humano moderno, em uma sucessão que desorienta, apresenta a visão de um ser humano que parece forte, responsável, senhor do universo. Apesar disso, no exato momento em que afirma seu poder, esse homem se mata. Por quê? Porque não é capaz de encontrar uma razão de viver realmente profunda.
Aqui me lembro do engenheiro do filme “La dolce vita”, um engenheiro atômico que, absorvido por um interesse científico pessoal, historicamente muito válido, se mata. Por quê? Porque está ameaçado pela fragilidade do mundo e pela fragilidade da sua própria pessoa.
Quando o conceito de pessoa não é apenas pensado, mas também descoberto em uma relação profunda e real com Deus, esse valor de pessoa é um valor sério, inalienável, absoluto, que eu encontro a cada momento, tanto na alegria quanto no desespero, tanto nos momentos de integração humana quanto nos instantes de solidão. É um valor que acompanha constantemente e que é o fundamento, a constância da força de viver.
Mas essa relação com Deus não pode ser como a relação que se estabelece com um ídolo; deve ser uma relação com o Deus vivo. Se eu a estabeleço com um ídolo, esse ídolo facilmente se desvaloriza. O progresso da ciência, o progresso dos conhecimentos humanos influenciam direta e necessariamente a desvalorização do ídolo, não de Deus.
O Pe. Moeller falou recentemente dessa desvalorização de Deus, de um ateísmo moderno que não é uma ausência do Deus verdadeiro nem uma negação do Deus verdadeiro, mas sim a negação de uma apresentação mitológica de Deus.
Quando a minha relação com Deus é uma relação de medo, de interesse ou uma relação de alienação, quando confio a Deus os problemas que eu posso e devo resolver e os confio a ele por medo, por covardia, por falta de informação, evidentemente eu os resolvo construindo um ídolo.
A minha relação com Deus não deve ser pré-fabricada. Há no Êxodo uma definição estupenda de Deus, que nós deixamos de lado porque foi “absorvida” por toda a cultura filosófica grega.
A definição da Bíblia é muito simples. Moisés deve se apresentar diante do povo. Deve dizer alguma coisa sobre Deus. “Quando eu me dirigir aos filhos de Israel, eu direi: ‘O Deus dos antepassados de vocês me enviou até vocês’; e se eles me perguntarem: ‘Qual é o nome dele?’ O que é que eu vou responder?’” Então Deus disse a Moisés: “Eu sou aquele que sou” (Ex 3,13-14).
Essa não é uma descrição da realidade de Deus, é uma apresentação da existência de Deus. “O ser humano sabe que Eu existo, que Eu sou, não apenas que Eu estou na escuridão, nas trevas, no invisível, mas sabe algo mais; sabe que Eu estou profundamente interessado pelo trabalho do ser humano, pela vida e pelo destino das pessoas. Eu envio você como profeta, como líder. Eu sou aquele que guia este povo que agora deve me procurar, me conhecer, me implorar.”
A definição do Êxodo desperta uma inquietação, uma curiosidade sobre Deus; coloca o ser humano no itinerário de Deus. Essa definição não o enquadra, nem o insere em um polígono, nem o coloca dentro de um conceito filosófico específico, dando-lhe um estilo inequívoco. Indica apenas um itinerário: “Que o ser humano me busque; ele sabe que Eu sou e existo, e sabe não apenas quem Eu sou e que Eu existo, mas sabe também que Eu sou a própria definição do Ser”.
Nós esquecemos essa visão de busca, essa atitude de curiosidade, de tensão e de atenção a Deus. Nós definimos Deus, o enquadramos; forjamos uma imagem doméstica d’Ele, uma espécie de altar a ser posto em casa para proteger a nossa vida e os nossos bens, para garantir as nossas concepções políticas e sociais, os nossos amores, os nossos ódios.
Acima de tudo, apresentamos Deus ao mundo dessa forma, e esse mundo o rejeita cada dia mais.
Não é suficiente que eu me ponha em relação com Deus; é necessário – como diz a Bíblia continuamente, da primeira à última página – que eu me ponha em relação com o Deus vivo, com o Deus que vive, com o Deus que é Deus na sua realidade.
Eu tenho que me pôr em relação com esse Deus; e a única forma possível de fazer isso é uma relação de ignorância, de busca, de ingenuidade, de simplicidade. Jesus falava da atitude da criança que não sabe, que não conhece, que está disposta a tudo porque não tem ideias pré-fabricadas; a atitude mais verdadeira para encontrar Deus é uma atitude de abandono, de confiança total, sabendo que Ele tudo preenche e tudo dirige.
A segunda relação é com as pessoas.
A minha pessoa se faz e se desfaz na relação com os homens e as mulheres. Há pessoas que parecem espiritualmente rejuvenescidos em 10 ou 20 anos; em troca, há aquelas que a vida encontra envelhecidas, deprimidas e amarguradas a cada dia que passa. Há rugas na sua vida espiritual. O que é que as envelheceu tanto? A resposta muitas vezes é esta: a sua relação com as pessoas não é saudável nem autêntica.
Aqui eu gostaria de me dirigir particularmente aos jovens, para defendê-los de um escândalo que nós, velhos – ou quase velhos –, provocamos. O escândalo é este: nós consideramos como algo normal e evidente, apresentando-o como um fenômeno de experiência e de sabedoria, o fato de o ser humano, aos 59 anos, desconfiar do seu semelhante. É normal que as pessoas se esqueçam de trancar a porta de casa aos 20 anos. Mas é igualmente normal que, aos 50 anos, as pessoas a tranquem com quatro chaves? Esse é o resultado de uma relação insana e injusta entre as pessoas.
Se, aos 50 anos, estou amargurado, ferido, solitário, fechado em mim mesmo, desconfiado de tudo e de todos, não posso me justificar dizendo: “Sou assim porque tive uma vida miserável, cheia de decepções, fui enganado e perseguido, sofri muito, tudo se acumulou sobre a minha pessoa”. Essa resposta significa que eu não me inseri bem na comunidade.
Porque a vida é útil e tem apenas um significado. A vida é um progresso no amor. A pessoa que amadurece, que floresce, que progride humanamente deveria progredir no amor.
Ao ler os escritos de um teólogo místico, encontrei uma frase que me impressionou muito: “Todos os santos morrem de amor”. Eles também poderão morrer de alguma enfermidade, mas certamente morrem de amor. Alcançam uma plenitude, uma superabundância, um enriquecimento tal de amor que, em um dado momento, esse amor não pode mais ser contido nos limites da pessoa.
Quando a minha história pessoal é um caminho para a desconfiança, para a solidão, para a separação das pessoas, isso significa que é um caminho patológico, não é normal.
A minha pessoa deve estabelecer relações saudáveis com os outros. Como? Eu diria de duas maneiras. Em primeiro lugar, trabalhando pela afirmação e pelo triunfo dos direitos dos outros, de modo que a minha convivência com os outros não seja estática, mas motivada por essa busca comum: o bem, a justiça, o crescimento.
Em segundo lugar, devo insistir no desejo, na aspiração, no gosto pelo diálogo. […] Mas o que é o diálogo? O diálogo é descobrir uma pessoa e a sua história real, pessoal, irrepetível; e cada pessoa tem um mundo atrás de si, muito além das ideias, da associação ou do clã que a classifica.
Mas não deveria me interessar a sua classificação política, nem a sua visão religiosa ou cultural; eu quero conhecer a sua história, o esforço pessoal que ela fez para chegar a ser pessoa. Gostaria de ver o que se esconde por trás do seu pertencimento a um grupo político ou religioso. […]
O cristão é uma pessoa que, superando divisões políticas, divisões sociais, tem uma abertura, uma capacidade de diálogo, porque tem o senso da pessoa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A vida é progredir no amor, com simplicidade. Artigo de Arturo Paoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU