“As soluções dominantes que estão no ar não servem para nada”, afirma o ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase ao comentar os desafios políticos contemporâneos
A leitura da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!” na quinta-feira, 11-08-2022, foi "uma novidade a saudar" no sentido que é uma manifestação da ação cidadã, disse Cândido Grzybowski. Entretanto, adverte, é preciso mais do que atos desse tipo. "Felicito o ato de leitura da carta pública porque mostra que está preocupado com a situação do país, mas isso tem que ser mais do que uma declaração pela institucionalidade democrática. Nós precisamos de muito mais. Se olhar bem, a conciliação de classe que nos levou a isso aí está embutida na Constituição de 88 e esse é o câncer que temos: que para governar tem que ser conciliador, quando, na verdade, para governar, temos que fazer certas rupturas", observa.
Apesar da iniciativa, constata, "o movimento dominante no jogo político nesta conjuntura está sendo em busca de alianças de forças partidárias; não está sendo em busca de mobilizar a sociedade. Esse é o vazio. O exemplo da leitura das cartas é o exemplo da sociedade tomando iniciativa, que é o que está faltando na conjuntura. Mas isso ainda pode ser feito, porque é nos próximos dias que vai começar a campanha eleitoral explícita. O que está acontecendo é um bom sinal, um sinal extremamente positivo. Mas como um ato como esse consegue agregar as várias cidadanias deste país? Nós somos extremamente diversos".
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele reflete sobre os desafios da participação cidadã à luz dos limites do Fórum Social Mundial - FSM e dos desafios do presente no Brasil e no mundo, como a instituição de uma economia do cuidado que aborde as diversas crises contemporâneas a partir de uma perspectiva ecossocial. "A participação é difícil e dura, mas é a única saída que temos para que o partido não nos diga o que fazer. O partido e a institucionalidade são necessários, mas as soluções têm que brotar da sociedade e não do Estado ou do mercado. Queremos um Estado que responda a uma pauta nossa e queremos um Estado que regule o mercado."
Cândido Grzybowski
Foto: Reprodução | Youtube
Cândido Grzybowski é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijuí, Rio Grande do Sul, mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor em Sociologia pela Sorbonne, Paris. É ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase.
IHU - O senhor já fez parte do comitê organizador inicial do Fórum Social Mundial - FSM, que reuniu inúmeros ativistas. Por que hoje se sente afastado dessa iniciativa? A que atribui a incapacidade do Fórum de gerar mudanças?
Cândido Grzybowski – O Fórum surgiu em um momento estratégico e muito importante de lutas, sobretudo no mundo eurocêntrico e colonizado, contra o G7 e o G8, contra a União Europeia, que começava a se enganchar na agenda neoliberal, contra Seattle, que foi o grande ode à liberação do comércio e a regras completamente independentes da Organização das Nações Unidas – ONU – porque outras organizações, como Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional - FMI, de algum modo, respondiam um pouco à ONU. A Organização Mundial do Comércio – OMC, não; ela é completamente desvinculada da ONU.
Naquele contexto de lutas crescentes, com a ascensão de lutas sociais, agendas pela democratização, governos progressistas se instalando na nossa região, a importância que o Brasil tinha como sétima economia naquele momento, tudo isso gerou espaço para surgir uma iniciativa como o Fórum. Ele dava a ideia de que poderíamos nos unir, ou seja, seria possível unir as agendas ao invés de ficarmos lutando de forma segmentada contra a OMC, o Banco Mundial, o FMI.
A realização do Fórum na Amazônia, em Belém, em 2009, foi uma tentativa de nos engancharmos em agendas emergentes porque a questão do clima e do desmatamento começava a ganhar força. Mas foi difícil convencer o comitê brasileiro do Fórum sobre [a sua realização lá]. Eu trouxe todos [os membros do comitê] para o sítio para discutirmos a realização do Fórum, até que eles se convenceram. Isso porque, na época, se voltássemos a realizar o Fórum na África, o que era uma opção, seria ignorar o que estava se passando no mundo naquele momento. Já tínhamos feito um Fórum em Nairóbi em 2007 – que foi mais ou menos, mas para a África foi bom. Então, posteriormente, defendi a bandeira de irmos a Belém porque necessariamente aquela era uma região Pan-Amazônica, cheia de povos indígenas, de extrativistas, pescadores, comunidades tradicionais em geral. Tratava-se de [defender] uma agenda ecossocial e não só ecológica, em torno de pessoas e de experiências interessantes, e de dizer que a relação tinha que mudar, não no sentido de ter áreas protegidas para gerar bens a partir delas, como advoga a economia verde, no sentido de explorar recursos para a indústria farmacêutica – que é a agenda do Banco Mundial e que foi adotada por organizações brasileiras, achando que essa era a saída, quando na verdade continua o capitalismo de sempre –, mas no sentido de alterar as relações entre as pessoas e a natureza.
Fomos a Belém e o Fórum foi interessante pela inclusão social que propiciou. Foi o mais popular deles, porque veio gente da Amazônia, do Peru. Mas o Fórum não resultou em mudanças. No Fórum temático de 2010, levantei publicamente o debate sobre o fato de que precisamos mudar ou estaremos perdidos. Não houve jeito. Ainda fui, em 2011, no Fórum de Dacar, para ver como seria, mas foi um desastre. Em 2012 também ocorreu a Rio+20 e eu defendia que tínhamos que entrar nas agendas que defendiam o ecológico e o social, e escrevi um texto sobre isso e organizei um seminário no Ibase com 80 ativistas do mundo inteiro para discutirmos uma proposta de biocivilização, a civilização da vida, o bem viver. Esse material foi divulgado em um dicionário publicado em 2018, em inglês e espanhol, sobre pluriverso, alternativas ao pós-desenvolvimento e à pluridiversidade de formas.
Fui a Tunes, no Fórum Social Mundial realizado em 2013 na Tunísia, e foi um desastre. Não vou entrar em detalhes, mas depois disso eu me desliguei do Fórum porque não há mudanças. Não quero ser considerado um dos pais fundadores do Fórum que é um velhinho que não quer mudar nada, como estão sendo vistos alguns, em nome do consenso. Aquela carta de princípios que fizeram, dizendo que só o trabalhador é quem pode dizer o que tem que ser feito, vem das posições mais derrotadas da história humana, que é a do partido e a do comunismo como um projeto de Estado e não como algo emergido da sociedade. Havia gente, à época, dizendo que o feminismo era uma agenda identitária, que não importava e não entrava nas causas de luta, como se o feminismo não enfrentasse problemas estruturais, como é o racismo. Mas o problema do racismo também é visto como identitário por alguns.
Inicialmente a ideia de consenso e de espaço aberto foi ótima para o Fórum porque trouxe diversidade, mas, no momento seguinte, surgiu o movimento Occupy Wall Street, que foi a primeira grande crítica social contra o Fórum por estarmos desligados de algumas agendas. A Primavera Árabe, em certo sentido, fez o mesmo. Mas para não perder aquela agenda, o Fórum foi realizado em Tunes, mas não conseguiu se engajar. Eu participei deste Fórum e havia quase 50 eventos de palestinos. Não era um espaço aberto; era um diálogo para o seu umbigo. O movimento 15M, na Espanha, que levou ao Podemos, foi outro crítico do Fórum, assim como o Syriza, na Grécia. Eles ficavam incomodados porque o problema real significava enfrentar a União Europeia, a troika, que estava impondo uma das agendas mais radicais de destruição da Grécia, mas o Syriza perdeu porque não teve solidariedade. Nesse sentido, o Fórum não conseguiu ter um papel mais do que simbólico.
Hoje, tem um dado ainda pior que é o contexto atual de crise de hegemonia dos EUA. A Europa apostou na crise, então, vai se desagregar, e os movimentos sociais aqui desta parte do mundo estão perdendo espaço. Quem provavelmente vai ressurgir com força são os movimentos sociais na Ásia. Na Europa, muitos movimentos sociais são contra manter uma posição crítica e o Fórum foi incapaz de fazer uma declaração sobre a guerra entre a Ucrânia e a Rússia no encontro que aconteceu no México.
Concordo com as críticas que os movimentos fizeram ao Fórum, sobre a sua incapacidade de dar solidariedade ou de dar a oportunidade para eles exporem suas ideias no evento. Eles queriam. Na verdade, o Fórum se recusa a ser um ator político no mundo que está sob a ameaça de barbárie.
Os movimentos queriam apoio explícito, seja ao Occupy, ao 15M, ao Syriza, que queria fazer um governo mais radical do que os nossos e não conseguiu nada; conseguiu muito menos do que os nossos. Não por demérito deles; é que foram deixados sozinhos. Nenhum partido europeu foi solidário com eles. Não houve solidariedade do mundo com o que estava se passando na Grécia, a fim de tentar romper com as regras do FMI. É isso que estamos precisando no mundo todo. Ainda tem um ranço entre nós de que o feminismo não é transformador, nem o antirracismo. Essas são agendas que nos dividem. Eu entrevistei uma feminista negra que me disse que não imaginamos o que é o patriarcalismo negro. Então, veja os problemas que temos. Temos que enfrentar esses problemas entre nós mesmos.
IHU – Como o senhor vê a discussão sobre as chamadas pautas identitárias no interior da esquerda e a própria crise interna entre os progressistas? Quais as causas disso?
Cândido Grzybowski – Não as considero pautas identitárias porque elas são pautas estruturais. Por exemplo, as pautas indígenas não se encontram nos textos marxistas, mas são experiências que, na região, sim, tentam se inspirar em Marx e fazer releituras. Todo movimento tem a identidade como a sua primeira conquista para ser reconhecido na igualdade e na diversidade. Essa é a questão central que grandes setores de esquerda não entenderam. Não é que as pautas ditas identitárias são menos importantes; são pautas estruturais porque o patriarcalismo é estrutural e o feminismo o enfrenta, mas, ele sendo estrutural, é parte da dominação capitalista. É uma dominação capitalista de homens. Essa é a história do capitalismo.
Essas questões ainda não estão bem elaboradas. Claro que neste ponto o Fórum foi sensível, mas pagava passagem para os velhos pensadores: gastávamos para deixá-los no melhor hotel em Porto Alegre. Essa foi a primeira briga que comprei em 2004. Na Índia, em Mumbai, eu disse que – porque eu buscava recursos nas agências – não iria mais buscar recursos para trazer figurões para o Fórum porque eles poderiam fazer como muitos movimentos fazem, isto é, pagar suas passagens, porque tínhamos que criar um fundo para pagar as daqueles que não podiam: os favelados, os indígenas etc. Então, criamos um fundo de solidariedade para isso e, em 2005, o Fórum de Porto Alegre foi um pouco diferente, e o de Belém foi o mais espetacular em termos de inclusão.
Na esquerda, temos que mudar o modo de pensar. Por exemplo, de onde vem a economia do cuidado? Alguns tentam limitá-la ao trabalho doméstico e à criação dos filhos, quando o cuidado envolve todo o sistema de saúde e a própria relação com a natureza. Cuidar das sementes não é cuidado? Não é a mesma filosofia de produzir orgânicos e preservar a floresta? Isso tudo não é cuidado? Ter outra relação com a floresta, com a água, não é cuidado? O cuidado é uma das grandes pautas ecossociais transformadoras e não uma agenda identitária. Mas são as mulheres que nos trouxeram esse tema. No debate sobre o racismo, finalmente, se reconheceu que esse é um problema estrutural. Mas quem aceita isso, assim, na esquerda clássica? Alguns ainda pensam com os termos de um capitalismo que não é a mesma coisa hoje. O capitalismo chegou nas nossas casas, nas nossas cabeças. Estamos sendo colonizados e essa colonização penetrou profundamente em nós. As pautas maiores nas redes sociais são dadas por quem? Temos que entender essas coisas, esse bloco de contradições, e enfrentá-lo em conjunto.
Eu reli Rosa Luxemburgo, que é a primeira grande crítica ao bolchevismo e ao comunismo enquanto projeto de partido e de Estado, que levou a um autoritarismo que não foi à la Bolsonaro, mas matou e reprimiu muita gente porque não havia liberdade nem se queria participação. Quem fez a ocupação do Palácio de Inverno e iniciou a revolução em 1917 foram os sovietes, que eram comitês operários da ação cidadã; não eram bolcheviques. Mas, depois, como tinha um projeto – o comunismo –, o partido chegou e tomou conta. Lenin, antes de morrer, defendeu a ideia da ditadura para poder fazer as reformas. Fizeram, sim, reformas nada sustentáveis. Onde está a Rússia hoje? É um dos regimes esquisitos que temos neste mundo em crise. Qual é o legado disso? Teve, sim, qualidade de saúde e de educação [para a população], a pau e fogo. É isso que queremos? Ou era uma sociedade de liberdade para ir pescar, como dizia Marx, quando se quisesse? É claro que ele estava pensando sobre o jugo do trabalho, que é uma parte da sociedade, mas o cuidado também é trabalho. O que os indígenas fazem cuidando da floresta é um trabalho não reconhecido.
A grande experiência histórica de esquerda é a União Europeia e a social-democracia, que acabou – o tal do capitalismo social. Tanto é assim que os partidos de esquerda estão perdendo a disputa e ela está sendo entre o menos bárbaro – tipo um PSDB –, como foi Macron, e a barbárie, com Marine Le Pen. Nos EUA, os democratas são os grandes promotores do neoliberalismo no mundo. Foram os que mais apostaram nisso - contra um movimento operário, por sinal. Um dos movimentos mais fortes no início da Segunda Guerra é o americano. Não foi por nada que Roosevelt se obrigou a inventar o estado social de direitos, porque havia pressão - e pressão contra entrar na guerra. Mas os EUA estavam muito bem vendendo armas para os outros, que estavam se matando. O fato é que tudo isso lhes deu hegemonia mundial e esta está em crise, mas, junto com ela, as várias coisas que não se atualizaram estão em crise também. O Partido Trabalhista Britânico, onde está? Gerou uma figura não autoritária como Bolsonaro, mas uma figura que não merece grande respeito. A Itália vai para onde? Volta para a direita mais séria, que não é uma direita bárbara, mas uma que reivindica abertamente o mundo do legado fascista.
IHU - E no Brasil?
Cândido Grzybowski – No Brasil, temos um cara que é um executor da tortura do regime militar. É um típico criado para ser um [Carlos Brilhante] Ustra. Esse é Bolsonaro. Mas ele tem uma história ligada à milícia, foi expulso do Exército e depois foi perdoado. É uma figura de uma geração de militares aposentados, como os que ele convidou para o governo. Bolsonaro é uma versão nossa de uma crise que não é só nossa; está no mundo todo de diferentes maneiras.
Onde temos a esquerda propondo coisas mais sérias, não derrotadas? Ela faz aquelas alianças de forças meio esdrúxulas para evitar o pior, como aconteceu na França. Como dizem, “tapou o nariz e votou no Macron”. Do contrário, ele não ganhava. Nós estamos caminhando para isso ao aguentar as forças que estão se juntando na aliança com Lula. Concordo com a expressão de um texto de Jean Marc von der Weid, não com a análise, quando ele diz que “tudo indica que vamos ganhar com Lula, mas vamos perder o governo”. É isso, temos que colocar Lula lá; é a opção que temos. Mas o que Jean Marc von der Weid quer dizer com isso? Que as alianças que estão sendo feitas são piores do que as alianças feitas quando Lula se elegeu em 2002. Claro que em guerra temos que nos aliar, mas quando não se tem projeto para fazer a aliança, quem tem projeto vai impor o seu. É isso que vai acontecer – ou pode acontecer porque sempre podemos nos surpreender, uma vez que a política é um movimento.
Na situação atual temos a figura ameaçadora de Bolsonaro que, se ganha, pode radicalizar, e, se perde, também pode causar tumulto. Ele criou condições para causar tumulto. O que vejo é que na nossa situação não há um consenso entre as Forças Armadas, a Marinha, a Aeronáutica e Exército. Inclusive a posição do comandante do Exército é muito clara, porque ele próprio manifestou total respeito à urna eletrônica – já que Bolsonaro tem manifestado questionamentos à eleição.
Bolsonaro tirou do armário uma direita resiliente. Esse é um problema que a sociedade tem e que não enfrentamos suficientemente bem na própria sociedade civil. Eu sou muito gramsciano neste ponto: o que discutimos e o imaginário que criamos é determinante no movimento político. Não é o jogo bruto de forças que importa. Esse não tem sustentação. Ele pode ganhar uma batalha, mas cai na segunda. A força em si é necessária, mas é subordinada a uma direção política. Qual é a direção política de Bolsonaro? Ela entrou em um vazio e o vazio explica Bolsonaro. Ele poderia ter sido um formulador como foi Mussolini, mas ele vem do socialismo, ou seja, de um quadro preparado por socialistas para destruir tudo.
IHU - O que significaria mais um governo Bolsonaro para o país?
Cândido Grzybowski – Aí é a barbárie completa. Ele vai se sentir legitimado no desmonte institucional e ele sabe criar tumulto para decretar um estado de exceção, que é o que ele pode fazer antes da eleição, para evitá-la.
IHU – Há espaço na sociedade de hoje para algo desse tipo?
Cândido Grzybowski – Se aguentamos isso tudo até agora... Vamos inverter a questão: onde estão os movimentos sociais que são a força da sociedade? E nós, como estamos? Houve alguma greve neste momento de plena crise em que há inflação, problemas com salários?
IHU - O que acontece com a sociedade brasileira hoje? Por que faltam mobilizações nas ruas diante do contexto de aumento da pobreza, da fome, do custo de vida e da inflação, apesar do ato de leitura da carta pública em defesa da democracia no dia 11-08-2022?
Cândido Grzybowski – A leitura da carta é uma novidade a saudar. Para mim, que participo de um pequeno grupo que faz análise de conjuntura, a ação cidadã faz diferença. Mas o movimento dominante no jogo político nesta conjuntura está sendo em busca de alianças de forças partidárias; não está sendo em busca de mobilizar a sociedade. Esse é o vazio. O exemplo da leitura das cartas é o exemplo da sociedade tomando iniciativa, que é o que está faltando na conjuntura. Mas isso ainda pode ser feito, porque é nos próximos dias que vai começar a campanha eleitoral explícita. O que está acontecendo é um bom sinal, um sinal extremamente positivo. Mas como um ato como esse consegue agregar as várias cidadanias deste país? Nós somos extremamente diversos.
Quem nunca se entregou e acampou em Brasília e mais sofreu com esse governo são os indígenas. Eles nunca se calaram, mas eles são mais o nosso simbólico do que a nossa força real. Eles são um patrimônio nosso porque se identificam com a cidadania e não com o Estado.
Mas o movimento operário continua sendo importante e nunca deixou de ser. Entretanto, a causa dos que trabalham para as empresas de tecnologia não foi assumida pelos sindicatos. O trabalho deles não se tornou um trabalho quase essencial nesta pandemia? Eles começaram a se organizar, mas qual foi a solidariedade que receberam? Tudo isso é sintomático; é uma revelação que a barbarização das relações de trabalho não seja uma pauta também da Central Única dos Trabalhadores - CUT, por exemplo. Ou, se é, não aparece publicamente.
Quem teve expressão como movimento foi o movimento do Boulos, que está tendo impacto, mas ele é único. Tem muitas coisas acontecendo nas favelas, mas não há articulação. É nas favelas que o desemprego é presente, o racismo é presente, o machismo, a violência e a destruição ambiental são presentes. É a única pauta que liga tudo. A pauta indígena é muito parecida, mas indígena não procura emprego. A periferia urbana é a que vive uma situação de extrema injustiça ecossocial. Lula vem daí, em certo sentido.
A renovação da força do operariado tem suas raízes em favelas, basicamente, e nas famílias operárias tradicionais também. Mas onde está este debate? Eu temo uma campanha oficial que seja muito de paz e amor enquanto o outro propõe o ódio. Não temos que entrar na agenda do ódio, mas qual é a nossa agenda que diz que não é isso, mas é outra coisa? É claro que vai se retomar a campanha contra a fome, mas por que a questão da fome não foi sustentável? Por que não emancipou a gente? Porque não foi visto como conquista de um direito cidadão, mas como um favor de Lula.
IHU - O que se pode esperar de outro governo Lula? Ele apostará mais em pautas e políticas ambientais, sociais, na reforma agrária, considerando a problemática da questão fundiária no país e na Amazônia, tendo em vista o que foram os governos petistas?
Cândido Grzybowski – Tenho uma relação bastante boa com Lula, apesar de ter deixado o PT em 1989, quando decidiram fazer aquelas alianças malucas ao invés de apostar nos núcleos que estavam surgindo – eu entrei no partido por isso e porque estou ligado à ação cidadã.
O que Lula tem de mérito é sua sensibilidade às agendas e não exatamente o compromisso [com elas]. Ele ouve e elabora ouvindo. Ele não tem formação como nós, mas é superinteligente e um brilhante líder que a sociedade criou. Mas cabe a nós, cidadania, cuidar e fazer diferença exigindo participação no governo. E ele é sensível a isso. Mas temos que exigir mais do que foi exigido.
Luiz Dulci, ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo Lula, me dizia que havia uma “escuta forte” [por parte do governo]. Mas o que rendeu aquilo tudo que era elaborado em conferências fantásticas? Foi ignorado. Aquelas conferências e debates eram feitos para nos deixar satisfeitos com a ideia de que estávamos construindo outro país. Mas tem que haver compromisso, participação, um governo participativo.
Esse foi o esforço de Porto Alegre com o orçamento participativo. Foi pequeno, mas muito mais significativo porque na verdade estava tornando vozes de favelas sujeitos de decisão na vida pública. Esperávamos o primeiro governo Lula extremamente participativo, mas foi um governo de “escuta forte”.
Agora, temos o desafio de, sim, usar a nossa arma, que é a participação. Mas eu sou mais radical: constituintes somos nós; o Lula vai ser mandatário pela sociedade. Ele não pode vir como quem tem o poder, como fez no primeiro mandato. Os companheiros do PT diziam que nós só incomodávamos. Mas o nosso papel é incomodar. A participação é difícil e dura, mas é a única saída que temos para que o partido não nos diga o que fazer. O partido e a institucionalidade são necessários, mas as soluções têm que brotar da sociedade e não do Estado ou do mercado. Queremos um Estado que responda a uma pauta nossa e queremos um Estado que regule o mercado.
IHU – Mas, de algum modo, não lhe parece que a ação cidadã se articula nas favelas, nos bairros, com grupos que se mobilizam e buscam alternativas para resolver seus problemas, inclusive usando da própria institucionalidade?
Cândido Grzybowski – Não dá para fazer isso sem o Estado e sem mudar a economia. Se lutarmos por água e o Estado privatizar a água, não tem mais discussão sobre o assunto. Lutamos para regularizar terras, mas o Estado está vendendo terras para a especulação imobiliária. O Estado que exigíamos não era aquele que construiu Belo Monte, expulsando indígenas de suas áreas em benefício de nem ter energia para a Amazônia, mas gerar energia para o capitalismo poder continuar se expandindo com seu poder colonizador. Belo Monte é uma obra colonizadora.
Alguns vão dizer que precisamos de energia. Sim, precisamos, mas desse jeito? Lembro das expulsões que deram origem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST e ao Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB por causa da construção de Itaipu. O MST levantava essa questão. Havia um projeto técnico dos militares que dizia que três barragens, ao invés de uma, produziriam mais energia e não fariam desaparecer as sete quedas [Salto de Sete Quedas] do rio Paraná, mas elas sumiram. Mas interessava um projeto grande, ou seja, ter a maior hidrelétrica do mundo à época, com essa ideia de Brasil grande. O Brasil grande é destrutivo.
Nos últimos anos, baseamos as políticas sociais na mineração e no agronegócio. Ou há outra fonte de políticas sociais nas políticas petistas? Isso é inaceitável. O nó mais duro que vamos ter é o que o governo Lula vai fazer com a Petrobras. Lembra que ele a defendeu como tábua de salvação, como Chávez fez na Venezuela? Chávez deixou um país que esperava a bonança entrar na situação na qual entrou quando o preço do petróleo baixou, porque não se fez a transição. Temos que apostar em alguma coisa para não depender do petróleo. Não adiante dizer que o petróleo é a nossa tábua de salvação. Ele não foi em lugar nenhum, aliás. Além disso, a exportação de minérios não paga nem imposto de exportação.
O que nós podemos fazer? Temos que assumir esse compromisso. Por isso felicito o ato de leitura da carta pública, porque mostra que estão preocupados com a situação do país, mas isso tem que ser mais do que uma declaração pela institucionalidade democrática. Nós precisamos muito mais. Se olhar bem, a conciliação de classe que nos levou a isso aí está embutida na Constituição de 88 e esse é o câncer que temos: que para governar tem que ser conciliador, quando, na verdade, para governar, temos que fazer certas rupturas. Por exemplo, uma coisa estrutural na qual nunca se mexeu é a Reforma Agrária. No governo petista se calou a boca do MST porque ele é ligado ao PT. Mas o movimento engoliu um sapo grande.
Outro exemplo do qual quase não se fala é o da Articulação no Semiárido Brasileiro – ASA e a proposta de que não era mais para investir em obras de engenharia porque isso não resolve a seca. A proposta da ASA era a de que é preciso conviver com a seca porque se avaliou que as experiências mais bem-sucedidas consistiam em conviver com as condições climáticas e no território que se tem. O semiárido brasileiro tem três vezes mais chuva do que o semiárido da África. Lá não se fala em secas periódicas e desastres como observamos aqui. Então, a convivência significa aproveitar a chuva que vem em quantidade grande em certa época do ano. A criação de açudes, nesse sentido, não favorece essa gente, o pobre, o camponês, ou seja, a maior comunidade brasileira de campesinato. As cisternas, sim, colhendo água da chuva.
O governo Lula teve sensibilidade de apoiar esse projeto da ASA. Mas a mesma ASA que inventou isso teve que se opor ao governo na transposição do Rio São Francisco, que foi um projeto que teve investimento grandíssimo e ficou incompleto e, inclusive, envolveu corrupção. Não vou entrar em detalhes, mas são os caminhos para os quais as alianças levam. Claro que é preciso de alianças para poder governar, mas por que temos que ceder o nosso lado?
Eu saúdo a iniciativa de negros, feministas e indígenas, de criarem fortes bancadas no Congresso. Isso vai fazer diferença. Eles já conseguiram algum resultado nas eleições municipais dois anos atrás. Eles vão em qualquer partido, ou seja, estão adotando uma estratégia de direita em que mais importante que o partido é o agronegócio, a mineração. Ou seja, não se trata de ser fiel ao partido, mas aos interesses. Se aparecerem mais bancadas com identidades assim dentro do Congresso, com pautas marcadas, não há mais o que negociar com o centrão porque ele não tem nada a oferecer para elas. Vale a pena prestar a atenção nesse movimento, que pode ser uma das novidades desta eleição, com o risco de nem ganharmos, mas pode ser que essa semente germine e seja uma renovação.
IHU - Apesar das inúmeras críticas feitas aos partidos políticos nas últimas décadas, à hegemonia do PT na esquerda, e à gestão Bolsonaro nos últimos anos, aqui estamos novamente, numa disputa entre o ex-presidente Lula, tendo Alckmin como vice, e Bolsonaro. Como analisa o processo que nos levou até aqui, e por que uma terceira via é difícil de ser constituída?
Cândido Grzybowski – Porque a polarização que se criou a torna inviável. Todos os partidos estão divididos. Querem fazer o novo, mas o novo como? Os partidos são oportunistas, mudam de nome como mudam de roupa. O grande poder é que deve ser enfrentado, mas ele apoiou o autoritarismo. Essa é a nova chave. Se aliar com o centrão para derrubar Bolsonaro é de alto risco. Mas, talvez, necessário. Mas tem que ser estrategista. Lula é, mas sei lá o quanto. O fato é que o PT também está sendo marcado por uma lógica partidária e foi difícil costurar uma proposta com o PSOL, que deixou claro que vai apoiar a candidatura, mas não quer participar do governo porque tem restrições a esse tipo de aliança. Há uma coalizão das esquerdas nesse sentido, sem o PDT, que seria importante, mas tem essa figura esdrúxula que é o Ciro, que provavelmente vai ficar confuso se houver um segundo turno. Mas o que mais me chama a atenção não é bloco de esquerda, é o “blocão”, afinal, o vice é Alckmin. Qual é a coisa boa que Alckmin fez? Não me lembro, mas deve ter alguma para Lula se aproximar dele. Ou porque ele não tinha espaço dentro do PSDB, tanto é assim que o PSDB está se destruindo.
Os que apoiaram Bolsonaro o fizeram, em parte, por oportunismo, e claro que Lula já conseguiu dividi-los, mas se isso é suficiente, não sei. O ponto é que por enquanto Lula está na frente. Ganhar a eleição é necessário. O caminho institucional, por mais frágil que seja, é o melhor caminho para evitar o pior. Mas não podemos achar que acabou nossa tarefa dando a vitória a Lula. Como cobrar desse mandato para que se faça aquilo que é necessário? Aí entra a participação e isso vai depender do quanto isso vai gerar esperança entre nós para fazer o governo Lula ser diferente, ser ao menos o que foi – e com alguma inovação maior para que não aconteça de novo o que aconteceu. Essa é a questão que temos pela frente.
IHU - Recentemente, o senhor escreveu sobre a necessidade de pôr o "cuidado" no centro do debate e das propostas políticas. O que isso significa em termos práticos, de propostas e políticas públicas?
Cândido Grzybowski – Considero o cuidado como o princípio fundador de uma nova economia. Trata-se de pensar que está no centro uma reformação da relação entre nós e de nós com a natureza. Temos que ter cuidado com as pessoas e com a natureza que as afeta. Não dá para definir a pobreza somente como falta de renda. Pobreza é não ter água, esgoto, renda e emprego, ou seja, é muito mais complexo. Não dá para ver os indígenas como alguém que está perdendo somente sua terra e a sua água; eles estão preservando a biodiversidade, que é o maior bem comum que temos para a humanidade. Ter cuidado com a água não significa privatizar a água, mas essa agenda está prosperando. O quanto um governo de esquerda vai se apoiar nisso, dada a desestruturação fiscal do Estado?
Tem possibilidades novas, sim, se arregaçarmos as mangas e transformarmos as nossas agendas em agendas que se somam às outras; esse seria um processo virtuoso. Não acho que a ideia de convivência com o semiárido é a única, por exemplo. Nós temos, provavelmente, sementes que surgem lá, mas também no Brasil todo, que são exemplos de luta contra o agronegócio. Mas por que essa é uma agenda localizada e não pode se transformar em uma política consistente de recuperar as nossas sementes? Estou dando esse exemplo, mas nas cidades, ao invés de apostar em cidades com viadutos para carros, poderiam priorizar o transporte público; inverter a agenda. Claro que de algum jeito vão ter que ser feitas combinações com o setor privado, porque o Estado não vai ter todo o dinheiro, mas é possível.
Já se fez, em Curitiba, com o Lerner, um sistema humano de transporte, ao invés dessas latas de sardinha dos ônibus das concessionárias, que são as grandes financiadoras de prefeitos e de corrupção. Temos agendas para reindustrializar o país, as quais não precisam e não dependem de importações porque temos minérios. Ao invés de exportar pedras para a China, vamos industrializar, gerando emprego e atendendo as nossas necessidades. Temos agendas e todas são de uma economia que ainda não é do cuidado, mas tem o princípio do cuidado orientando: a prioridade são as pessoas e a natureza.
IHU - O senhor passou quase 30 anos à frente do Ibase, trabalhando com análises de conjuntura e formação cidadã. Tem esperança no futuro? O que lhe dá esperança para pensar particularmente o futuro do país?
Cândido Grzybowski – Só é possível mudar se aparecer o imaginário mobilizador, mas ele só vai aparecer se acharmos que é possível. Então, a equação consiste em acreditarmos que é possível. Vamos supor que Lula vença – é melhor e é possível ser mais do que isso. Essa é uma equação nossa, não é do sistema, não é do poder e não é do mercado. Esses vão tentar aprisioná-lo, como levaram Lula a fazer a Carta ao povo Brasileiro em 2022, antes do segundo turno da eleição. Aquilo pareceu uma jogada política, mas não foi; foi consequência de ter Meirelles no Banco Central, ou Palocci, que saiu do trotskismo para virar a figura que virou.
Mas a história está repleta de exemplos de que o que pode fazer diferença sobre o Estado e o mercado é a cidadania ativa.
Ao sair do ativismo prioritário no Fórum Social Mundial, me voltei para um ativismo planetário, me liguei a grupos que refletem novos paradigmas. No Ibase, publicamos “Jornada para Terralanda. A Grande Transição para a Civilização Planetária”, um texto de um grupo que há uns 20 anos vem pensando linhas gerais para uma grande transição, com propostas, incorporando as agendas mais diversas.
Este é um exemplo de reflexões que existem e não são bem conhecidas aqui. Temos três cenários possíveis.
A barbárie, que está presente e está acontecendo através dos imperialismos, com a guerra na Europa e com a posição e os erros estratégicos dos EUA e da Europa. A barbárie avança e nas Filipinas venceu o filho do ditador [Ferdinand Marcos Sr.], Bongbong Marcos, que é horrível e pior que o nosso presidente.
Outro cenário possível pode ser uma agenda de New Deal, uma agenda verde, como é o discurso da ONU, de algumas organizações multilaterais e alguns governos democratas, que não altera a lógica do sistema, mas consegue minimamente preservá-lo – apesar de ser um sistema que, sim, é injusto e cria desigualdades. Esse é um cenário em que essa situação se ajeita com uma agenda tipo a dos Objetivos do Milênio e da Agenda 2030 da ONU, ou com o novo contrato social.
Mas o terceiro cenário é o da agenda que chamo de grande transição, de um novo paradigma. Que experiências temos sobre isso? A do Chile e a da Colômbia são uma aposta, mais do que a da Bolívia, que mostram que cidadania é ação e derruba governo. Não altera as coisas, mas pode criar algo novo, como levou cem anos na Colômbia para criar [Gustavo] Petro, que veio da guerrilha e mudou e se aliou ao movimento de uma liderança negra genial, que vem do trabalho doméstico. Há sinais assim como pode haver uma reversão que mostra que a barbárie ainda não se instalou, mas está, sim, mais radicalizada. Não se sabe o tamanho da destruição que o risco de uma implosão nuclear na Europa pode causar no mundo, e isso está no limiar.
O rearmamento que está ocorrendo é pela defesa de privilégios, e não pela mudança. As pessoas não estão se armando para se defender, mas para impedir que surjam alternativas. Biden é um “ganso manco”, como chamam os americanos. Ele já não tem mais autoridade, além de ser velho. Então, pode voltar Trump, com a barbárie, com a ideia de isolamento. Deveríamos abrir o olho diante desses três cenários.
A história se fez porque possibilidades foram aproveitadas. Sempre é possível. Essa é a primeira coisa a considerar. Segundo, quem pode fazer possível? Quem acredita. Agora, esse é um caminho a desbravar. Não tem um caminho a seguir, mas um caminho a definir, e com surpresas. O fato é que as soluções dominantes que estão no ar não servem para nada.