07 Dezembro 2020
“Não temos soluções imediatas, mas há condições para uma revolta popular. Basta vir a vacina para a gente ir para a rua”, acredita Cândido Grzybowski, do Ibase.
A reportagem é de Eduardo Maretti, publicada por Rede Brasil Atual - RBA, 05-12-2020.
A taxa de desemprego vem batendo recordes, chegando a 14,6% no trimestre encerrado em setembro (14 milhões de pessoas), segundo o IBGE. O Produto Interno Bruto (PIB) do país caiu 3,9% em relação ao mesmo período de 2019, com retração de 3,4% no acumulado em 12 meses. Mas o cenário é visto com entusiasmo pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Olhando apenas para o movimento do segundo para o terceiro trimestre, ele comemora a alta de 7,7% desse momento, dizendo que “a economia (está) voltando em ‘V’ como nós dissemos antes”.
Para economistas críticos ao governo, a falta de respostas à crise de emprego não é um percalço, mas um projeto. Projeto este que está levando ao despertar da “cidadania autônoma”, na visão do sociólogo Cândido Grzybowski. Para ele, as eleições de 2020 demonstram uma percepção popular de necessidade de reagir ao ódio e à inércia que marcam o discurso do poder.
“Tanto o governo, quanto o mercado e a mídia de modo geral ainda dobram a aposta na agenda de reformas (administrativa e tributária), que trariam crescimento ao incentivar o investimento privado. Mas isso é muito difícil de ocorrer num cenário de baixíssima demanda e altíssimo desemprego”, diz o economista Marco Antônio Rocha, do Instituto de Economia da Unicamp.
“A única saída que eles enxergam são as reformas, como se fossem necessidades absolutas, mas a sociedade não participa do debate, como no caso das reformas da Previdência e trabalhista. Eles creem que essas reformas vão resolver e são completamente relutantes em pensar politicas de crescimento econômico”, destaca Ana Luiza Matos de Oliveira, professora da Flacso-Brasil.
Mas, para ela, as prioridades do governo de Jair Bolsonaro e Guedes não revelam “burrice”, como alguns avaliam. “A ideia de cortar direito e piorar a qualidade de vida das pessoas atende a interesses específicos, de uma elite que nunca aceitou os direitos sociais e se recusa a dividir com a população os frutos das riquezas do Brasil”, acrescenta a professora.
A constatação encontra exemplos clássicos na história brasileira moderna: a derrubada de Getúlio Vargas (1954), João Goulart (1964) e Dilma Rousseff (2016), governos populares que tentaram desenvolver politicas de inclusão no país. Em resumo, o cenário é sombrio, com a expectativa de uma “tragédia nos próximos dois anos”, nas palavras do economista Ricardo Carneiro.
Mas toda essa desconstrução de hoje – na opinião do sociólogo Cândido Grzybowski, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) – vem de há mais tempo. “Começou pela politica, e pela politica contaminou a economia. Então vem a pandemia, enfrentada por cada país com respostas diferentes, que dependem de condições políticas internas. Nação rica e poderosa, os Estados Unidos vivem situação similar à do Brasil.”
Não é por acaso. Ambos os países são governados pela extrema direita, com Donald Trump e Bolsonaro, que menosprezaram a “gripezinha”. “No nosso caso e dos americanos, é uma combinação de pandemia com pandemônio”, brinca o sociólogo.
Entretanto, é sob uma abordagem política, a partir das eleições municipais, mas não só, que Grzybowski enxerga motivos para otimismo. Para ele, a crise e sua potencialização pela pandemia de coronavírus fermentam nas bases da sociedade um movimento já perceptível, refletido nas eleições municipais – que mostraram também uma reação ao ódio alimentado por Bolsonaro e seu governo.
No triste Brasil de Bolsonaro percebe-se uma “reação de solidariedade” como há muito não se observava, na opinião do analista. “As eleições mostraram, sim, que a cidadania faz a diferença. Nunca tivemos uma eleição com tanta gente eleita por movimentos, mas movimentos autônomos. Esse fenômeno mostra que, em última análise, quem vai resolver as coisas no país é a cidadania.”
A superação não é fácil, principalmente pelo fato de a crise sanitária comprometer de maneira dramática a possibilidade de ação da cidadania no espaço público. “A pandemia criou grandes dificuldades nesse sentido. Ela afeta exatamente o espaço público da palavra e da ação. Mas eu vejo um ressurgir de algo maior do que os partidos, que não estão dando conta nem da pandemia nem da política. O que surge é uma cidadania mais autônoma.”
O movimento que se pode observar se refletiu em 2020 com indígenas, quilombolas, negros, LGBTs, mulheres de diferentes partidos de esquerda virando prefeitos e vereadores. “As mulheres se assumindo enquanto mulheres, e não tanto como PT, PSol, PCdoB etc. Isso é muito interessante como perspectiva”, aponta o sociólogo.
A comunidade LGBT celebrou mais de 450 mil votos e 48 candidatos eleitos em 15 de novembro. Ao menos 25 candidatos que se identificaram como transexuais, bissexuais, gays ou lésbicas se elegeram vereadores no primeiro turno das eleições. Linda Brasil (Psol), primeira trans eleita para a Câmara Municipal de Aracaju, foi a mais votada na capital de Sergipe (5.773 votos) e será a primeira trans a ocupar cargo político no estado. Em Belo Horizonte, outro exemplo, com a professora Duda Salabert (PDT) elegendo-se a primeira vereadora trans, com 37.613 votos.
Em 15 de novembro, foram eleitos oito prefeitos de origem indígena, 33% a mais do que em 2016. O número total de indígenas que concorreram nas eleições municipais subiu de 1.715, há quatro anos, para 2.216 em 2020.
Essa “cidadania autônoma”, na opinião de Grzybowski, é um movimento que “começa a corroer pelas bordas, e é pelas bordas que as coisas vão mudar”. “Poderemos ser surpreendidos com um grande movimento num futuro próximo. Pode não ser no ano que vem, mas no processo de 2022, que essa insubordinação que se exprime politicamente possa surgir e levar o processo de atropelo, como foram as Diretas Já”, diz.
O sociólogo do Ibase acredita que, das figuras políticas que surgiram no atual contexto, “menos presos a estigmas partidários”, se destacam Guilherme Boulos (Psol) e Manuela D’Ávila (PCdoB). “Eles foram muito maiores que os partidos.”
Para além das legendas partidárias, os laços “que se teceram” nas periferias das cidades são, no momento, imperceptíveis, em parte pelo isolamento forçado pela pandemia, e porque os meios de comunicação dominantes ignoram esse movimento. “Isso não é notícia, mas tem um potencial explosivo. Desconstrói o discursos das igrejas, que não constrói laços.”
A realidade surgida das eleições municipais representa clara derrota para Bolsonaro e de sua retórica do ódio, contra a diversidade e racista. Mas não só. Grzybowski vê no processo, também, uma ameaça às igrejas neopentecostais. “Não é que mudou estruturalmente, mas mudou a atitude de parte da sociedade em relação às igrejas.”
No entanto, o processo será longo e difícil, prevê o sociólogo, até porque, ao contrário de Bolsonaro, a direita não perdeu, está extremamente ativa e tem aliança com os meios de comunicação. “Vamos sofrer, porque institucionalmente não podemos tirar Bolsonaro. A crise é real, e Guedes é protegido pela direita um pouco mais civilizada. Eles lamentam Bolsonaro, mas apoiam Guedes”, diz Grzybowski.
“Não temos soluções imediatas à vista, mas temos condições para uma revolta popular. Basta vir a vacina para que a gente possa ir para a rua com segurança”, acrescenta. Não é por acaso que Bolsonaro faz o conhecido e errático discurso de sabotagem sistemática à imunização contra a covid-19 no país.
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‘Quem vai resolver as coisas no país é a cidadania autônoma’, afirma Cândido Grzybowski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU