19 Julho 2022
“Francisco tem um perfil como todo papa. E alguns gostam do seu perfil. Outros não e preferem a de outro Papa. É natural que seja assim. Além disso, ele comete erros como todo ser humano. Mas as coisas começam a se complicar a partir de preconceitos ideológicos. E fica ainda mais complicado quando ficamos apenas com sua dimensão política e não levamos em conta sua dimensão religiosa”, escreve Sergio Rubin, biógrafo do Papa Francisco, em artigo publicado por TN, 17-07-2022.
A cada pouco, alguma afirmação ou gesto do Papa Francisco levanta a poeira. Particularmente, aquilo que tem ou pode ter voltagem política. O exemplo mais recente é de poucos dias atrás quando disse a duas jornalistas mexicanas que tem “uma relação humana” com o ex-presidente de Cuba, Raúl Castro.
Esta afirmação suscitou a imediata crítica de exilados cubanos dos EUA, entre outras vozes que se levantaram nesse e outros países – especialmente na Argentina – por entender que o irmão de Fidel, como parte de uma cruel ditadura, não merece a menor consideração.
Claro, isso deve ser enquadrado dentro daqueles que consideram que Francisco simpatiza com os regimes autoritários de esquerda. E há até quem acredite – entre eles alguns católicos – que “Cristina Kirchner e Nicolás Maduro escondem dinheiro no Vaticano”, como apontou o arcebispo de La Plata, Víctor Manuel Fernández, muito próximo do pontífice.
Isso sem falar na atual acusação de promover os muito pobres, apesar de suas repetidas críticas ao populismo e do fato de destacar a importância central do trabalho para progredir.
Além do fato de que o Papa – obviamente – pode ser criticado como qualquer outro mortal, que pode ou não gostar de seus pensamentos e atitudes e, em suma, que às vezes ele diz ou faz coisas que não são fáceis de entender, há uma questão fundamental que nem sempre, ou melhor, quase nunca é levada em conta: sua dupla condição política e religiosa.
Política, porque ele é um chefe de Estado à frente de 1,3 bilhão de crentes em todo o mundo. E religioso porque é padre. Para os católicos, seu significado espiritual é superlativo: ele é o Vigário de Cristo na terra.
Esta dupla condição implica que muitas coisas que Francisco pode dizer ou fazer – este Papa ou outro Papa – não são compreendidas se forem consideradas apenas a partir de sua dimensão política (como também, embora aconteça muito menos, se ele fosse visto apenas como um sendo).
É verdade que é mais fácil para o crente – ou deveria ser – apreciar sua dimensão religiosa do que para quem não o é. Além disso, a imprensa não-confessional – como é lógico – totaliza tudo que tem – ou pensa que tem – voltagem política. Mas a dupla dimensão ainda existe.
O caso da afirmação de que ele tem “uma relação humana” com Castro é muito demonstrativo. Do ponto de vista político é totalmente compreensível que seja incompreensível e até repudiável.
Como admitir uma ligação pessoal com um expoente de uma ditadura sinistra? Mas se for visto a partir da dimensão religiosa, é irrepreensível. Como sacerdote, Francisco é chamado a construir “uma relação humana” com todos os seres humanos, o que de forma alguma implica aprovar sua conduta.
Há um exemplo que pode ser muito esclarecedor. Os capelães prisionais – assim como os voluntários prisionais – frequentemente visitam as unidades prisionais seguindo o mandato de Jesus no Evangelho – “Eu estava na prisão e você me visitou” – e muitas vezes estabelecem “uma relação humana” com assassinos e estupradores, mas isso não não implica que eles concordam com o crime que cometeram. A sua missão é oferecer-lhes assistência espiritual pela simples razão de serem pessoas.
De resto, nessas declarações, Francisco também disse que Cuba “é um símbolo”, não “um exemplo”. E, de fato, Cuba é um símbolo. Para muitos, de uma opressão desumana que durou demais e da resistência heroica de um povo. Para outros, da construção do paraíso comunista em combate ao imperialismo capitalista. Talvez o erro de Francisco seja ter sido muito ousado ou imprudente, sabendo que é um assunto muito delicado.
Seja como for, num livro que escreveu em 1998 sobre a visita de João Paulo II a Cuba (“Diálogos entre João Paulo II e Raul Castro”), Jorge Bergoglio – depois de destacar a perseguição sofrida pela Igreja nos primeiros anos da Revolução – assinala que “o socialismo cometeu um erro antropológico ao considerar o homem apenas em seu papel como parte da estrutura do corpo social”, enquanto “para a concepção cristã, a sociabilidade do homem não se esgota no Estado”.
Entre outras coisas, Bergoglio destaca no livro “a firmeza” do Papa polonês em exigir “liberdade, dignidade e democracia” na ilha. E destaca a importância de Cuba superar seu isolamento auto-imposto, assim como a importância de os Estados Unidos deixarem de lado o embargo porque seus motivos “estão totalmente superados”. Nesse sentido, ele cita a famosa frase que João Paulo II pronunciou ali: “Que Cuba se abra ao mundo e o mundo se abra à Cuba”.
Em suma, Francisco tem um perfil como todo papa. E alguns gostam do seu perfil. Outros não e preferem a de outro Papa. É natural que seja assim. Além disso, ele comete erros como todo ser humano. Mas as coisas começam a se complicar a partir de preconceitos ideológicos. E fica ainda mais complicado quando ficamos apenas com sua dimensão política e não levamos em conta sua dimensão religiosa.
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O Papa Francisco entre suas dimensões política e religiosa: chave para entendê-lo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU