"Já não há um mundo unipolar, mas multipolar. Este fato exaspera a arrogância dos norte-americanos, especialmente os supremacistas neocons, que afirmam ser necessário continuar a guerra na Ucrânia para sangrar e eventualmente arrasar a Rússia e neutralizar a China para confrontá-la numa fase posterior. Desta forma – esta é a pretensão neocon – se voltaria ao mundo unipolar sob o domínio dos EUA", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor de A busca da justa medida: o pescador ambicioso e o peixe encantado, Vozes, 2022 e Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal?, Vozes, 2021.
No dia 29 de junho do corrente ano de 2022 aconteceu a Cúpula de Madrid com os países que compõem a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, em português), à qual pertence como ator principal os EUA. Aliás, a relação entre estes países europeus e os EUA é de humilhante subordinação.
Nesta Cúpula se estabeleceu um “Novo Compromisso Estratégico”, que de certa forma vai além dos limites europeus e recobre todo mundo. Para reforçar esta estratégia globalista se fizeram presentes também o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia. Aí declarou-se algo extremamente perigoso e provocador de uma eventual terceira guerra mundial. Reafirmou-se a Rússia como o inimigo direto e a China como inimigo potencial de amanhã. A OTAN não se apresenta apenas defensiva, passou a ser ofensiva.
Introduziu-se a perversa categoria do “inimigo” a quem deve-se enfrentar e derrotar. Isso nos remete ao jurista nazifascista de Hitler Carl Schmitt (1888-1985). Em seu O Conceito do Político (Vozes, 1992), publicado em 1932, diz: “a essência da existência política de um povo é sua capacidade de definir o amigo e o inimigo” (p. 76). Definindo o inimigo, combatê-lo, ”tratá-lo como mau e feio e derrotá-lo”; isso instaura a identidade de um povo.
Novamente a Europa se faz vítima de seu próprio paradigma da vontade de poder e do poder como dominação sobre os outros, inclusive sobre a natureza e a vida. Este paradigma fez com que só no século XX se fizessem duas grandes guerras com 100 milhões de vítimas. Parece que ela não aprendeu nada da história e muito menos da lição que a Covid-19 está duramente dando, pois caiu como um raio sobre o sistema e seus mantras.
Sabe-se hoje que por detrás da guerra que ocorre na Ucrânia está se dando o confronto entre os EUA e a Rússia/China no sentido de quem detém o domínio geopolítico do mundo. Até agora vigorava um mundo unipolar, com a predominância completa dos EUA sobre o curso da história, não obstante as derrotas sofridas em várias intervenções militares, sempre brutais e destruidoras de antigas culturas.
O nosso mestre em geopolítica Luiz Alberto Moniz Bandeira (1935-2017), em seu minucioso livro A desordem mundial: o espectro da total dominação (Civilização Brasileira, RJ 2016), apontou, claro, os três mantras fundamentais do Pentágono e da política externa norte-americana:
(1) um mundo - um império (EUA);
(2) full spectrum dominance: dominar todo o espectro da realidade, na terra, no mar e no ar com cerca de 800 bases militares distribuídas no mundo inteiro;
(3) desestabilizar todos os governos dos países que resistem ou se opõem a esta estratégia.
Não mais via golpe de estado com tanques na rua, mas mediante a difamação da política, como o mundo do sujo e do corrupto, destruição da fama das lideranças políticas e uma articulação político-midiático-jurídica para afastar os chefes de estado resistentes. Efetivamente isso ocorreu em Honduras, na Bolívia e no Brasil com o golpe desta natureza contra Dilma Rousseff em 2016 e posteriormente com a injusta prisão de Lula. Agora o Novo Compromisso Estratégico da OTAN obedece a esta orientação, imposta pelos EUA, valendo para todos sob a pretexto de segurança e estabilidade do mundo.
Ocorre que o império norte-americano está à deriva por mais que ainda se apele ao seu excepcionalismo e ao “destino manifesto” segundo o qual os EUA seriam o novo povo de Deus que irá levar para as nações a democracia, a liberdade e os direitos (sempre entendidos dentro do código capitalista). No entanto, a Rússia se refez da erosão do império soviético, armou-se com armas nucleares potentes, com misseis inatacáveis e disputa um forte espaço no processo de globalização. Irrompeu a China com projetos novos como o caminho da seda e como uma potência econômica tão potente a ponto de, dentro de pouco, ultrapassar a norte-americana. Paralelamente a isso surgiu no Sul Global um grupo de países do BRICS do qual o Brasil participa. Em outras palavras, já não há um mundo unipolar, mas multipolar.
Este fato exaspera a arrogância dos norte-americanos, especialmente os supremacistas neocons, que afirmam ser necessário continuar a guerra na Ucrânia para sangrar e eventualmente arrasar a Rússia e neutralizar a China para confrontá-la numa fase posterior. Desta forma – esta é a pretensão neocon – se voltaria ao mundo unipolar sob o domínio dos EUA.
Eis aqui postos os elementos que podem gerar uma terceira guerra mundial que será suicida. O Papa Francisco, em sua intuição clara, tem falado repetidas vezes que estamos já dentro da “terceira guerra mundial em pedaços”. Por esta razão conclama em tom quase desesperado (mas sempre pessoalmente esperançoso) que “estamos todos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva” (Fratelli tutti n.32). Não denuncia outra coisa, e com frequência, o eminente intelectual Noam Chomsky. Enfaticamente afirma que há suficientes loucos no Pentágono e na Rússia que querem essa guerra que pode colocar um fim à espécie humana. É a razão tornada irracional, enlouquecida e suicida.
Desta forma se reforça o letal paradigma do dominus (senhor e dono) da modernidade e se debilita a alternativa do frater (irmão e irmã), proposto pelo Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti, inspirado no melhor homem do Ocidente, Francisco de Assis. Ou nos confraternizamos todos entre nós e com a natureza ou então estamos, nas palavras do secretário da ONU António Guterrez, "cavando a nossa própria sepultura".
Por que se optou pela vontade de poder e não pela vontade de viver dos pacifistas Albert Schweitzer, Leon Tolstói e Mahatma Gandhi? Por que a Europa que produziu tantos sábios e santos e santas escolheu este caminho que pode devastar todo o planeta até fazê-lo inabitável? Acolheu como orientador o mais perigoso dos arquétipos, segundo C. G. Jung, aquele do poder, capaz de nos autodestruir? Deixo aberta esta questão que Martin Heidegger levou sem resposta à sepultura. Pesaroso, deixou escrito para ser publicado na pós-morte: "Só um Deus nos poderá salvar."
Pois é nesse Deus vivo e fonte de vida que colocamos nossa esperança. Isso ultrapassa os limites da ciência e da razão instrumental-analítica. É o salto da fé que também representa uma virtualidade presente no processo global cosmogênico. A alternativa a esta esperança são as trevas. Mas a luz tem mais direito que a trevas. Nessa luz cremos e esperamos.